A ofensiva do capital x trabalho após o impeachment

O Brasil e os trabalhadores acumulam derrotas desde o golpe do impeachment; as eleições gerais de 2022 poderão ser marco decisivo para reversão desse inferno

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

O correspondente da Agência Reuters na Segunda Guerra Mundial, Cornelius Ryan, intitulou, em seu livro que vendeu mais de 4 milhões de exemplares, o dia 6 de junho de 1944 como o mais longo dos dias; nessa data, desencadeou-se a Operação Overlord, que consistiu no desembarque das tropas aliadas nas praias da Normandia, França, em célebre contraofensiva às forças nazistas, representando os estertores do temido poderio dessas, antecedido por gigantescas batalhas cruciais, como a Stalingrado, encerrada em fevereiro de 1943.

Pois bem! Passados mais de 77 anos desse feito histórico, enfrentam o Brasil e todos quantos vivem do trabalho, desde o impeachment da presidente Dilma, consumado aos 31 de agosto de 2016, não apenas o mais longo dos dias, mas, sim, o mais longo de todos os lustros (período de 5 anos) da história brasileira.

Desde então, ao final de cada noite, ao invés de se irem os fantasmas e as ilusões, como diz velha metáfora, vão-se apenas as ilusões, ficando todos os fantasmas das noites anteriores, acompanhados de outros mais medonhos, que lhes fazem companhia, produzidos pela guerra sem fronteira, declarada ao mundo do trabalho pelos representantes do capital, logo ao dia 1º de setembro de 2016 (invasão da Polônia), data em que Temer foi confirmado como presidente da República, por ironia, o mesmo dia em que foi declarado o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, que ceifou a vida de mais de 70 milhões de pessoas.

O estado de beligerância contra os trabalhadores e seus direitos assenta suas garras nos Três Poderes da República, saciando seu ódio profundo – parafraseando o poeta Castro Alves, no belíssimo poema O Livro e a América –, com o explícito e ostensivo apoio da Presidência da República, com Temer/Bolsonaro, no Congresso Nacional, com livre trânsito nas duas casas legislativas, sendo mais sedento na Câmara Federal, no Supremo Tribunal Federal (STF) –  que, nas judiciosas palavras do desembargador do TRT da 10ª Região, DF e TO, Grijalbo Fernandes Coutinho, representa a justiça política do capital, sendo este o título que dá ao seu pertinente e necessário livro sobre as decisões desse tribunal, no âmbito dos direitos fundamentais sociais do trabalho; cravando no primeiro título a seguinte afirmação: “EROSÃO DO DIREITO DO TRABALHO PELO STF COMO ATO POLÍTICO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL INVERTIDA DO JUSLABORALISMO: O SUPREMO COMO PERSONA DO CAPITAL; –, e, nos últimos anos, também no Tribunal Superior do Trabalho (TST), cuja atual presidente, sem pejo algum, afirma e reafirma que a Lei N. 13.467/2017 – lei da (de) reforma trabalhista –, não é supressora de direitos, e que “vamos acabar não mais distinguindo segunda de domingo (16 de dezembro de 2019).

Na mesma trilha, caminha o STF, como se colhe de excerto do voto ministro Gilmar Mendes, relator da ADI 5.685, que discutia a constitucionalidade da Lei N. 13.429/2017, que, além de autorizar a terceirização atividade fim, autoriza também a criação de empresa de locação de mão de obra, e que foi considerada constitucional por 7×4 votos.

Eis o que assevera o referido ministro, em defesa da precarização sem fronteira dos direitos sociais:

 “4. Paternalismo e a necessária refundação do Direito e da Justiça do Trabalho.

Nelson Rodrigues já dizia que ‘subdesenvolvimento não se improvisa; é fruto de séculos’. Os dilemas que hoje o mercado nos impõe, e que exige que reflitamos a respeito do nosso modelo de direitos sociais, nomeadamente os trabalhistas, são fruto de uma cultura paternalista que se desenvolveu há décadas. O Direito do Trabalho brasileiro baseia-se em uma premissa de contraposição entre empregador e empregado; na prática, uma perspectiva marxista de luta entre classes…”

Por força dessa guerra, cada dia que se sucede no calendário é de grandes e crescentes tormentas, ou seja, abre-se a caixa de Pandora, mas sem que nela se encontre a esperança, como na mitologia grega; nela, só se encontram medidas, constitucionais, legais e jurisprudenciais, de absoluta negação da cidadania, da dignidade do trabalho e dos trabalhadores, dos valores sociais do trabalho, todos fundamentos da República Federativa do Brasil (Art. 1º, da CF); bem assim da valorização do trabalho humano, fundamento primeiro da ordem econômica (Art. 170, caput, da CF), do primado do trabalho, fundamento da ordem social (Art. 193, da CF).

Assim, a pomposa “ponte para o futuro”, de Temer, não passa de ponte para o passado, pois as políticas públicas e os direitos trabalhistas caminham no sentido anti-horário, da luz para as trevas; Bolsonaro, insista-se, com o generoso beneplácito do Congresso Nacional e do STF, cumpre à risca sua meta, anunciada logo ao início de seu tenebroso mandato, nos seguintes termos, aos 30 de abril de 2019: “não vim construir nada, estou aqui para destruir”.

Isso ele faz com eficiência e presteza; em tudo mais, seu governo é teratológico, como se representasse vingança das forças da natureza contra o Brasil e seu povo laborioso.

O legado de trevas desses dois governos pode ser aquilatado pelas mais de 619 mil mortes por covid-19, decorrentes, principalmente, de deliberada política genocida, pela reintrodução do Brasil no mapa da fome, do qual saíra em 2014. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), divulgada no dia 26 de novembro de 2021, revela significativa e crescente perda de qualidade de vida, em todas as faixas salariais, no campo e na cidade, envolvendo seis dimensões (moradia; acesso aos serviços de utilidade pública; saúde e alimentação; educação; acesso aos serviços financeiros e padrão de vida; transporte e lazer); sendo que a perda no campo representa o dobro daquela verificada na cidade.

A faixa com menor perda individual de qualidade de vida concentrava 13,7% da população e a faixa com mais perdas, 10,3%. A maior parte dos brasileiros se encontra na zona intermediária de perdas acumuladas de qualidade de vida.

O Índice de Perda de Qualidade Vida (IPQV) dos 10% com menor renda é mais de quatro vezes superior ao 10% com maior renda.

Os dados do inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), divulgado em agosto de 2021, relevam números catastróficos sobre esse crucial tema: ao menos 19 milhões de brasileiros e brasileiras, equivalentes a 9% da população, passam fome, no sentido mais amplo do termo; e 116,8 milhões sofrem de alguma insegurança, com maior ou menor grau de intensidade.

O relatório da FAO, órgão da ONU voltado para a agricultura, divulgado em julho de 2021, revela que 23,5% (49,6 milhões de pessoas) da população brasileira estão em situação de insegurança alimentar moderada ou severa, entre 2018  e 2020 – 12,1 milhões a mais do que entre 2014-2016.

Não menos alentadora é a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), divulgada aos 30 de novembro último; eis os abomináveis dados:

I          população desocupada, 13,5 milhões (12,6%);

II         população ocupada, 93 milhões;

III        nível de ocupação, 54,1%;

IV        taxa composta de subutilização, 26,5%;

V         população subutilizada, 30,7 milhões;

VI    população subocupada por insuficiência de horas trabalhadas, 7,8 milhões;

VII       população fora da força de trabalho, 65,5 milhões;

VIII      percentual de desalentados, 5,1 milhões;

IX        empregados com carteira assinada, 33,5 milhões;

X         empregados sem carteira, 11,7 milhões:

XI         trabalhadores por conta própria, 25,5 milhões;

XII        trabalhadores domésticos, 5,4 milhões;

XIII    taxa de informalidade, 38 milhões, 40,6% da  população ocupada;

XIII         rendimento real habitual, R$ 2.459,00, 11,1% menos que no mesmo período de 2020.

Este é o  Brasil que emergiu da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 – que congelou os investimentos públicos por 20 anos –; da Lei N. 13.429/2017 – que rompeu todos os limites e barreiras da terceirização –; da Lei N. 1.367/2017 – que (de) reformou a CLT, para ‘modernizar’ as relações de trabalho –; da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e do M T E – último reduto administrativo de proteção aos trabalhadores e seus direitos –; da EC 103/2019 – que tornou a previdência social, especialmente a aposentadoria, inacessível a dezenas de milhões de brasileiros/as; da lei de liberdade econômica –; das medidas provisórias 905/2019, 927/2020 e 1.046/2021, do Decreto N. 10.854/2021 – que rompem quase todo o pouco que restou da CLT; e da farta jurisprudência do STF, concedendo foro constitucional a todos os ataques aos direitos fundamentais sociais.

Como se não fosse suficiente esse cenário dantesco, que deixa envergonhado o nono círculo do Inferno, da obra de Dante Alighieri, “A Divina Comédia”, de 1317-1321, por infligir castigos ao povo trabalhador muito maiores que os deste; o Ministério do Trabalho e Previdência Social – em verdade, ministério do capital) divulgou, no dia 29 de novembro, os “RELATÓRIOS DOS GRUPOS DE ESTUDOS TEMÁTICOS”, elaborados pelo Grupo de Altos Estudos do Trabalho (GAET) –  sob a coordenação do algoz mor dos direitos trabalhistas, Ives Gandra Martins Filho, ministro do  TST –, instituído pela Portaria SEPRT/ME N. 1001, de 4 de setembro de 2019, sobre os seguintes assuntos: economia do trabalho, direito do trabalho e segurança jurídica, trabalho e previdência e liberdade sindical.

Esses relatórios primam pela total perversidade contra os valores sociais do trabalho, direitos trabalhistas, organizações sindicais e a Justiça do Trabalho, como derradeiro reduto institucional de proteção dos trabalhadores, em cada linha das milhares que os compõem.

Talvez, a simples revogação dos Arts. 7º e 8º da CF, e de toda a CLT, fosse menos danoso do que o GAET propõe para os destacados temas.

 Esses relatórios põem abaixo o Art. 8º da CF, como se constata pelos quatro objetivos registrados em seus relatórios, e que são: “a) adoção dos termos do art. 2º da Convenção 87 da OIT como marco definitório da liberdade sindical a ser vivenciada no Brasil; b) não utilização da noção de categoria ou de sistema confederativo para a conceituação de sindicatos, admitindo-se a organização de sindicatos por empresa ou setor produtivo, o que não descarta de plano, em face da ampla liberdade organizativa, aqueles conceitos; c) a representatividade básica dos sindicatos será de seus associados, o que estimulará a filiação, mas admitir-se-á, em negociação coletiva, a abrangência dos trabalhadores que desejarem gozar dos benefícios de determinada norma coletiva que lhes seja mais favorável, obtida por determinado sindicato, mediante o desconto de taxa negocial, limitada a um dia de salário, o que se mostra justo, diante do esforço negocial sindical; d) o instituto da substituição processual do trabalhador pelo sindicato passa a ser tratado expressamente na Constituição, limitado aos associados do sindicato, mas também com possibilidade de adesão de novos trabalhadores no curso do processo, visando estimular a filiação sindical, especialmente dos trabalhadores empregados, de modo a evitar que litiguem contra o empregador no curso da relação empregatícia.

De igual modo, o faz com o poder normativo da Justiça do Trabalho, o que importará o fim dos dissídios coletivos econômicos, até mesmo por comum acordo.

Reescrevem o Art. 7º da CF, para inverter os objetivos de seu caput “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, acrescendo-lhe três incisos, XXXV, XXXVI e XXXVII, para criar, constitucionalmente, a pálida figura de trabalhador sem direitos heterônomos e autônomos e/ou em grau menor do que aquilo que restará da CLT.

Isso vem a calhar com o que dizia Bolsonaro, na campanha eleitoral e nos primeiros meses de mandato, que o trabalhador teria de escolher se queria emprego ou direito; e, com outras palavras, o que afirma o ministro Gilmar Mendes, na citada ADI 5.685.

Para completar a reescrita da CLT, não concluída pela Lei N. 13.467/2017 e pelo Decreto N. 10.854/2021, transformando-a, em definitivo, na consolidação das leis do capital (CLC), propõem mais de uma centena de modificações na CLT, com cerca de 5 dezenas de acréscimos de artigos, 60 de alterações de redação de outros e 16 revogações, que desprotegem por inteiro o trabalhador; e, ao reverso, protegem à exaustão os interesses do capital; trazendo de volta todos os malefícios consagrados nas medidas provisórias 905/2019, 827/2020 e 1.046/2021, avultando-se, dentre eles, os seguintes:

I           proibição de reconhecimento de vínculo empregatício de trabalhador em aplicativo; afrontando o Art. 3º, da própria CLT, que define os elementos constitutivos do vínculo empregatício, a mais singela e a maior garantia de todo trabalhador;

II            isenção da empresa de qualquer responsabilidade, por acidente de trabalho e/ou doença profissional, se o trabalhador recusar-se ‘injustificadamente’ a usar equipamento de proteção individual – EPI (Art. 166 da CLT) transferindo-lhe os riscos do empreendimento, em total afronta ao que preconiza o Art. 2º, da CLT e a jurisprudência do TST sobre responsabilidade objetiva da empresa, em caso de acidente;

III            exigência de teste de gravidez, como condição para a garantia de estabilidade provisória da trabalhadora gestante,  rasgando o que estipula o Art. 7º, I, da CF, combinado com o 10, II, ‘b’, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias  (ADCT), que exige tão somente a confirmação da gravidez;

IV               perda do direito à estabilidade provisória, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, se a empregada gestante dispensada arbitrariamente recusar-se a ser reintegrada ao emprego; igualmente, rasgando a garantia do Art. 7º, I, da CF, e o 10, II, ‘b’, do ADCT;

V        a aposentadoria voluntária será causa de extinção do contrato de trabalho, desonerando o empregador da responsabilidade pelo pagamento de aviso prévio, da multa de 40% do FGTS e de outros consectários de demissão sem justa causa; afrontando a jurisprudência do STF, firmada na ADI 17.704, recentemente reafirmada (maio de 2021) no recurso extraordinário (RE) 1.299.638, que não a admite;

VI           validação de toda alteração contratual lesiva ao empregado, que não for judicialmente reclamada no prazo de cinco anos; violando o que estabelece o próprio Art. 468 da CLT, no qual essa aberração é acrescentada, que declara nulo de pleno direito as alterações dessa natureza;

VII         os sindicatos somente poderão substituir processualmente os associados; fazendo tabula rasa do que asseguram o Art. 8º, III, da CF, e a jurisprudência pacífica e sólida do STF e do TST;

VIII       quitação geral de todas as obrigações do contrato de trabalho, mediante ‘acordo’ extrajudicial, ainda que o trabalhador nada receba; ressuscitando o jabuti introduzido na MP 1.045/2021, rejeitada pelo Senado, que tinha exatamente esse nefasto conteúdo; tendo como claro o vil propósito de impedir o trabalhador de tentar reaver seus direitos descumpridos ao longo do contrato, bem assim de impedir a Justiça do Trabalho de cumprir usa função primeira e mais importante: proteger o trabalhador e seus direitos mínimos;

 IX               restrição de repouso semanal aos domingos, bastando um a cada sete semanas; transformando a garantia constitucional, inserta no Art. 7º, XV, da CF, que o assegura preferencialmente aos domingos, em de vez em quando aos domingos:

X      redução do intervalo para repouso e alimentação a 15 minutos, para quem cumpre jornada de até 6 horas, em caso de realização de horas extras; deixando claro que para o GAET trabalhador não deve ser tratado como ser humano, mas, como simples instrumento de trabalho, como fazia o império romano com os escravos;

XI      redução do adicional de insalubridade, por meio de ‘acordo’ individual, em contraposição até mesmo à (de) reforma trabalhista, que a proíbe no Art. 611-B, XVIII, da CLT;

XII        autorização para aplicação de lei nova restritiva de direitos aos contratos de trabalho em vigor, para reduzir seus direitos; representando total insegurança jurídica ao trabalhador e absoluta insegurança à empresa que o lesar, além de rasgar, em pedaços minúsculos, os princípios da probidade e da boa-fé, que devem reger os contratos de trabalho, consoante o Art. 422, do Código Civil (CC).

Diante de tamanha treva e tanto calvário, o Brasil e os que vivem do trabalho são obrigados a parafrasear os primeiros versos da belíssima música “A flor e o espinho” – de Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha, 1957 – para dizer ao presidente da República, ao Congresso Nacional, ao STF e ao TST, tirem seu cínico sorriso do caminho, para passarem com sua imensa dor.

Não obstante isso, se é fato que o Brasil e os trabalhadores acumulam derrotas sobre derrotas, desde o golpe do impeachment, também o é que não foram vencidos; que venha 2022, que poderá ser marco decisivo para reversão desse inferno: será ano de eleições gerais.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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