Amazônia sitiada

Sob Bolsonaro, clubes de tiro explodem em áreas de conflito da Amazônia Legal

As placas na beira da rodovia indicam dois pontos esportivos numa estradinha de terra que corta a BR-158 em Redenção, no Pará: uma pista de motocross e um clube de tiro. Localizado às margens da cidade, o Clube de Tiro de Redenção Esporte e Caça Almir Ricci Júnior começou a funcionar em 2019, um ano depois do registro do CNPJ. O homem que dá nome ao clube, já falecido, não era dono, tampouco figura no quadro de sócios. Era um latifundiário.

Só uma de suas fazendas, a Cabocla, tinha 30 mil hectares. Em 2005, uma operação do Ibama o notificou por desmatamento de uma área de 15 mil hectares. Hoje, as fazendas passaram para os herdeiros, da mesma família de seu irmão, Edson Godoy de Bueno, fundador da Amil. Já as terras dos donos e sócios do clube de tiro que homenageia Ricci somam pouco mais de 5 mil hectares. É numa delas, a Chácara Redenção, com 247 hectares, que funciona o clube.

O CTREC Almir Ricci Junior foi um dos clubes de tiro que pipocaram na região nos últimos anos. Só nos primeiros meses sob a gestão de Jair Bolsonaro, outros dois empreendimentos do tipo surgiram na cidade de 85 mil habitantes – e mais um surgiria no ano seguinte. Só outras duas cidades paraenses possuem tantos clubes de tiro: a capital Belém e Marabá, a 350 km de distância, que tem uma população três vezes maior, com 285 mil habitantes. Não por acaso, a região de Redenção e Marabá é, também, uma das campeãs em conflitos fundiários e violência armada no país.

Só nos últimos dois anos, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, a CPT, foram 393 ataques contra camponeses ou povos indígenas no Pará. O estado concentra sete das 13 cidades mais violentas da Amazônia. Bannach, Floresta do Araguaia e Cumaru do Norte, na região de Redenção, estão entre elas. Em quatro décadas, a CPT registrou 75 assassinatos de lideranças nas regiões sul e sudeste do Pará.

Intercept passou meses debruçado sobre o número de clubes de tiro nos estados da Amazônia legal. Descobrimos que, assim como no resto do país, o número desse tipo de estabelecimento aumentou muito depois da flexibilização das regras assinada por Jair Bolsonaro em 2019. Mas, na Amazônia, a expansão de clubes de tiro segue uma lógica muito própria: a do avanço do agronegócio e da violência rural.

Pesquisadores apontam que a facilidade no acesso a armas na região já é sentida no campo. Para piorar, não dá para saber ao certo o tamanho do problema, já que nem sempre dá para confiar nos dados registrados pelo Exército, responsável por documentar esse tipo de estabelecimento. Nós encontramos clubes de tiro que escaparam da contagem oficial.

Nas próximas semanas, a série Amazônia Sitiada irá mostrar como a expansão dos clubes de tiro impactou algumas das regiões mais violentas do país – um desafio que Luiz Inácio Lula da Silva terá de enfrentar a partir do ano que vem, já que herdará o legado armamentista de Bolsonaro.

Velho oeste, velho agro

Foi com o lema “Integrar para não entregar”, no começo da década de 1970, que o governo militar criou estratégias para colonizar a Amazônia. Uma delas era atrair empresários do agronegócio, com benefícios e facilidades na aquisição de terras, para fundar cidades modernas e planejadas, como aconteceu, principalmente, no centro-oeste e norte do Mato Grosso. A outra passava pela abertura de novas rodovias – entre elas, a BR-163, que conectaria a capital Cuiabá até Santarém, no Pará.

A partir dali, os conflitos fundiários e a violência contra os povos indígenas se intensificaram – a ditadura assassinou 8 mil indígenas durante as obras dessas estradas, segundo a Comissão da Verdade. Mais tarde, o estado se transformou no maior produtor de soja e gado do país.

Cidades como Sinop, Sorriso, Nova Mutum e Lucas do Rio Verde nasceram às margens da BR-163. Nesta última, em 1986, surgiu o primeiro clube de tiro do estado ainda em funcionamento – a Sociedade Esportiva Recreativa e Cultural Seriema. “O agronegócio vem com seus circuitos auxiliares, não se trata apenas de uma dinâmica de apropriação de terras. É a expansão de um modo de pensar o mundo. Surgem festas sertanejas, redes atacadistas e clubes de tiro, sob a ideia da arma como única forma de defesa”, explicou Bruno Malheiro, doutor em Geografia, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e coordenador do Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-Existência na Amazônia. “Lugares de expansão do agronegócio coincidem com a expansão de clubes de tiro. Assim como é possível ver que essas cidades por onde os circuitos se espalham votaram em Bolsonaro em 2018, por exemplo, o que indica uma subjetividade autoritária e fascista”, disse Malheiro.

A abertura dos clubes na região caminha lado a lado com a cronologia da pavimentação da BR-163 e, consequentemente, com o avanço do agronegócio. Em 2003, o asfalto só havia chegado até a cidade de Sinop – dali a Cuiabá, há maior incidência de clubes de tiros fundados até 2018. Bolsonaro assumiu a presidência e Tarcísio de Freitas, então ministro da Infraestrutura, cumpriu a promessa de asfaltar o trecho da rodovia que chega até o distrito de Miritituba, no Pará. O agronegócio festejou a redução de 26% no frete com as obras – e a região se tornou ainda mais atraente. Junto com o asfalto e a expansão da soja, novos clubes surgiram nos entornos da rodovia.

Em 2020, Colíder, Marcelândia e Peixoto de Azevedo abriram suas primeiras casas de tiro. Mais a oeste, em Alta Floresta, onde os conflitos predominantes envolvem garimpeiros e madeireiros ilegais, foram abertos três novos estabelecimentos. “Aquela região [de Alta Floresta] é de dar medo, há uma forte presença de pistoleiros. E há muitos rumores de que esses clubes de tiro funcionam com uma fiscalização mínima, alguns com a licença vencida, quase na informalidade”, me disse o padre Luis Cláudio Silva, da Comissão Pastoral da Terra, CPT, de Mato Grosso.

Na região do Parque Estadual do Araguaia, próxima à fronteira com o Tocantins, fica a BR-158, outro corredor de produção e escoamento da soja. Por lá, segundo relatos de moradores e da CPT, empresas de segurança privada cuidam das fazendas, expulsam posseiros e até fecham o acesso a algumas estradas. “Essa lógica das armas e da contratação de empresas de segurança privada torna a defesa da propriedade um bang-bang. Ou seja, legitima a lógica histórica do jagunço, mas agora com uma nova roupagem”, avaliou Malheiro.

Nas cidades próximas à BR-158, só no Mato Grosso, existem 13 clubes de tiro. Seis deles foram abertos nos últimos quatro anos.

A explosão

Em março de 2017, no governo de Michel Temer, o então comandante logístico do Exército, o general Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, assinou uma portaria que alterava regras para atiradores esportivos. Daquele mês em diante, os CACs poderiam transportar armas com munição até os locais de competição ou treinamento e registrar um segundo endereço de armazenamento do acervo, o que antes não era permitido.

Para Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, essa foi a primeira brecha para pessoas que queriam andar armadas. “Vem com a justificativa de que é para proteger o acervo do atirador no deslocamento, mas na prática tem sido usado para o porte de arma 24 horas”. Foi o primeiro marco na explosão de registros de CACs e, na Amazônia, não foi diferente.

Se em 2016 os estados da Amazônia Legal registraram apenas nove novos clubes de tiro, o ano seguinte fechou com 17 estabelecimentos recém-abertos. E seguiria em alta: em 2018, com os discursos pró-armas de Bolsonaro, outros 30 clubes surgiram nessa região.

Eleito, Bolsonaro cumpriu as promessas de governo e desceu a caneta para armar a população. Logo em 2019, expandiu o limite de armas permitidas para os CACs. Até então, eles podiam ter, no máximo, 16. Com a mudança, quem tem o registro passou a poder ter até 60 – quase quatro vezes mais. E 30 delas podem ser de calibre restrito, caso dos fuzis.

Novos CNPJs de clubes de tiro se multiplicaram nos últimos quatro anos. Levantamento usou dados do Exército cruzados com a data de abertura das empresas.

Bolsonaro facilitou também o acesso às munições. Antes, quem quisesse fazer recarga por conta própria precisava de uma autorização especial para compra de insumos como pólvora e projétil. Hoje, os CACs podem comprar 20 quilos de pólvora, e os clubes de tiro podem vender munição aos seus associados. “Essa alteração favorece os clubes da Amazônia Legal. Isso porque a principal fábrica de munição fica no estado de São Paulo, é quase um monopólio. Então existia um problema logístico para abastecer de munição essa região”, disse Langeani. “Na perspectiva do controle e fiscalização é muito ruim, porque é uma munição sem nenhum tipo de rastreabilidade”.

As consequências da flexibilização atingiram os nove estados da Amazônia Legal. Considerando a data do primeiro clube em funcionamento (1974, no Maranhão) até 2017, antes dos discursos armamentistas ganharem repercussão, a região levou 43 anos para acumular 86 desses estabelecimentos. Bolsonaro conseguiu a proeza de entupir a Amazônia de armas, com 84 novos clubes apenas nos dois primeiros anos de governo.

Em fevereiro de 2021, Bolsonaro tentou afrouxar ainda mais as regras. Com quatro decretos, autorizou CACs a portarem – ou seja, carregarem para todo lado – até duas armas, além de permitir que menores de idade participassem de clubes de tiro sem a necessidade de autorização judicial, entre outros pontos. A tentativa, no entanto, foi frustrada pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu 13 pontos dos decretos.

No fim de setembro, o STF também vetou, provisoriamente, a portaria que aumentava o número de munições liberadas para compra por mês, parte do decreto que autorizava os CACs a comprar e portar armas de uso restrito, e ficou estabelecido que só têm direito a posse de arma quem comprovar essa necessidade, por questões pessoais ou profissionais.

Ignorados pelo Exército

Aflexibilização nas regras para CACs, no entanto, já provoca efeitos – e não se sabe exatamente a dimensão do problema, já que a lambança das Forças Armadas com a fiscalização de armamentos é notória. Já mostramos que, desde 2018, desapareceram quase 3 mil armas dos acervos de clubes de tiro e CACs, sigla para caçadores, atiradores e colecionadores. Recentemente, o Exército afirmou não saber quantas armas de CACs existem em cada cidade, e ainda editou um ato para pausar as fiscalizações de armas importadas até janeiro de 2023.

A contagem oficial é feita com os dados oficiais entregues periodicamente via Lei de Acesso à Informação ao Instituto Sou da Paz. Ela mostra que, em todo o país, os clubes de tiro registrados passaram de 151 em julho de 2019 para 1.906 em novembro de 2021. Um aumento de 1.162%, segundo dados oficiais registrados no Sigma, o Sistema Militar de Gerenciamento de Armas.

Pedimos ao Exército a lista de todos os clubes de tiro nos estados da Amazônia legal – Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Roraima, Rondônia e Tocantins. Levantamos, então, as datas de abertura de cada empresa pelo CNPJ – o Exército não fornece essa informação porque “a data de início de funcionamento não é lançada no Sigma”.

Assim como alguns clubes de tiro com CNPJ ativos escapam do Exército, outros não aparecem no mapa. Para saber a localização exata de cada um deles, foi preciso checar um a um – às vezes, por telefone. Alguns recusaram ou pediram documentos (segundo eles, para controle dos visitantes e segurança dos sócios). Em Marcelândia, o dono de um clube de tiro alegou que uma das estradas era fechada pela polícia – e qualquer pessoa só poderia passar a partir dali se informasse o destino. Em alguns casos, encontramos o clube pelas imagens de satélite (dá para visualizar os muros de contenções dos estandes ao ar livre). Em cerca de 10% do levantamento, no entanto, não foi possível precisar a localização exata.

Descobrimos também que os dados oficiais não coincidem com a quantidade de clubes de tiro abertos no país. Em 2018, por exemplo, havia pelo menos 36 clubes com CNPJs ativos no Mato Grosso. Mas, segundo os dados oficiais em julho do ano seguinte, a 9ª Região Militar – que abarca Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – não tinha nenhum estabelecimento com registro ativo. Entramos em contato com o Exército para questionar a divergência. Mais de um mês se passou e até agora não tivemos uma resposta.

É só a partir de 2020 que os dados do sistema do Exército e o número de CNPJs abertos começam a coincidir. Desde que Bolsonaro assumiu a presidência, os clubes de tiro quase dobraram na Amazônia Legal – passando de 116 para 223. Essa expansão aconteceu principalmente nas áreas marcadas pela expansão do agronegócio – o chamado “arco do desmatamento“. No Mato Grosso e nas fronteiras da Bahia, do Piauí e do Tocantins, as regiões são marcadas pela expansão da soja, do milho e do algodão. Na Amazônia, passando pelo Acre, Mato Grosso, Pará e Rondônia, o arco é marcado pelo intenso processo de desmatamento para formação de pastagens. A região também coincidiu com uma votação massiva em Jair Bolsonaro.

Com a oferta de clubes de tiro, a população não para de se armar. Só para se ter ideia, em fevereiro de 2020 só o CTREC Almir Ricci Júnior, em Redenção, anunciou em suas redes sociais a emissão de 49 novos certificados de registro para CACs – caçadores, atiradores e colecionadores.

É uma bomba-relógio. Segundo um relatório do Anuário de Segurança Pública lançado em 2022, a Amazônia já concentra 10 das 30 cidades brasileiras com maior índice de mortes violentas. Todas estão localizadas próximas a terras indígenas e fronteiras. Segundo a CPT, a Amazônia é responsável por 77% das mortes por conflitos no campo nos últimos 10 anos no país. Nos municípios classificados pelo IBGE como rurais, onde há baixa densidade populacional, a violência letal na Amazônia é 14,6% superior na Amazônia do que a média brasileira.

The Intercept Brasil

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