Aquilo foi uma ditadura, isto não é educação

Vai ser difícil apagar essa ditadura da história do Brasil. Terão que tirar dos arquivos. Terão que apagar a si próprios

Por João Batista da Silveira*

O quadro “A traição das imagens”, mais conhecido como “Ceci n’est pas une pipe” (ou “Isto não é um cachimbo), de René Magritte — no qual está retratada a pintura realista de um cachimbo —, se tornou uma das grandes referências da arte moderna e da corrente surrealista, bem como da provocação sobre a tentação (e prática linguística) de se tomar a imagem de algo como o objeto em si.

Obviamente, a pintura de um cachimbo não é um cachimbo, e essa é a primeira relação lógica que se constrói da análise do quadro frente à inscrição que ele traz. Há, no entanto, algo mais profundo na paródia de Magritte: um esvaziamento do sentido da palavra, de modo que o observador, ao se deparar com o conflito entre o objeto do quadro e a frase, não sabe mais como chamá-lo.

Talvez pudéssemos falar da existência de alguma pincelada de surrealismo no governo Bolsonaro, se esse tivesse suficiente capacidade artística para tanto — o que, embora há pouco mais de três meses no poder, já deu mostras de que não tem.

De todo modo, estão lá tanto a valorização do que é irracional e incoerente quanto a despreocupação com a ética e a moral, características, entre tantas outras, atribuídas ao movimento.

Assim como está a tentativa de esvaziamento da linguagem, quando, diante de tantas provas documentais e testemunhos sobre o golpe civil-militar de 1964 e a repressão, as torturas, os assassinatos e as ocultações de cadáver que o seguiram são transformados no pastiche resumido na ideia exaustiva e mentirosamente repetida de que “aquilo não foi uma ditadura”.

Os próprios militares e integrantes do governo de Costa e Silva, que inaugurou o período conhecido, não sem razão, como “anos de chumbo”, vocalizaram a palavra ditadura. Foi nas vozes do então presidente da República e de alguns de seus ministros de Estado, na reunião do Conselho de Segurança Nacional em que se discutiu e aprovou a redação do Ato Institucional nº 5, ou apenas AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968.

Nela, o economista Delfim Neto declarou: “Eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente”.

No mesmo encontro, o coronel Jarbas Passarinho ponderou: “Sei que a Vossa Excelência repugna, como a mim e a todos os membros deste Conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples. A mim parece que é essa que está diante de nós. Eu seria menos cauteloso do que o próprio ministro das Relações Exteriores quando disse que não sabe se o que restou caracterizaria nossa ordem jurídica como não sendo ditatorial: eu admitiria que ela é ditatorial. Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”.

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Magalhães Pinto, ex-governador de Minas Gerais, concordou: “Eu também confesso, como o vice-presidente da República, que realmente, com este ato, nós estamos instituindo uma ditadura. E acho que, se ela é necessária, devemos tomar a responsabilidade de fazê-la”.

O general Costa e Silva, presidente da República, ao final da reunião, fez o seguinte pronunciamento ao declarar a aprovação do AI-5: “Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e ideias que adoto uma medida como essa. Mas adoto porque estou convencido que é do interesse do país, é do interesse nacional que ponhamos um basta à contrarrevolução”.

O único voto contrário foi o do foi do então vice-presidente Pedro Aleixo: “Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado este caminho, o que nós estamos é, com a aparente ressalva da existência dos vestígios dos Poderes Constitucionais existentes em virtude da Constituição de 24 de janeiro de 1967, instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura”.

O revisionismo histórico — ou, quem sabe, melhor seria dizer negacionismo — atingiu seu ápice na última semana, contudo, quando o ainda ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez declarou ao jornal Valor Econômico que, para que os estudantes possam ter uma “ideia verídica, real do que foi a sua história”, o ministério realizará “mudanças progressivas” nos livros didáticos, com a intenção de transformar a maneira como o golpe de 1964 (que, segundo ele, não existiu) e a ditadura civil-militar (que, para ele, foi um “regime democrático de força”) são retratados nas escolas.

Provavelmente as aulas se tornariam mais ou menos um espetáculo inspirado no Teatro de Absurdo (que, aliás, é herdeiro do movimento surrealista): “Vejam essa fotos de torturados, crianças! Vejam esses cartazes de desaparecidos, meninos! Vejam essa censura! Não, isso não foi uma ditadura”.

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Vélez Rodríguez pode ter caído menos de uma semana depois dessa última patacoada, entre tantas, mas o perigo é que essa ideia não caiu com ele, porque permeia todo o governo Bolsonaro. O sucessor à frente do ministério da Educação, Abraham Weintraub, além de representante do capital aberto — responsável por um amplo e nefasto processo de financeirização da educação — e defensor de primeira ordem da privatização do ensino e da previdência capitalizada, é também mais um notório discípulo de Olavo de Carvalho na cruzada contra o “comunismo” e o “marxismo cultural” nas universidades (um delírio que nem Salvador Dalí ousaria).

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O novo titular do MEC reúne, portanto, todas as condições para o aprofundamento do obscurantismo aliado à repetição daquilo que a ditadura também soube executar muito bem, além de torturar, matar e fazer desaparecer: a destruição da educação pública. Continuarão tentando apagar a história, assim com tentam apagar a educação.

Entretanto, está documentado. Vai ser difícil apagar essa ditadura da história do Brasil. Terão que tirar dos arquivos, dentre os milhares de outros existentes, os registros das falas de Costa e Silva e de alguns de seus ministros de Estado, citadas aqui. Terão que apagar a si próprios.

*João Batista da Silveira é secretário de ensino, advogado, professor de História e membro das diretorias executivas da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), da Federação Sindical dos Auxiliares de Administração Escolar no Estado de Minas Gerais (Fesaaemg) e do Sindicado dos Auxiliares de Administração Escolar de Minas Gerais (Saaemg)

Da Carta Educação

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