Bia, o que é hipocrisia?

Por Luís Antonio Paulino

Na edição de 17 de abril, a centenária revista inglesa The Economist traz uma interessante matéria de capa cujo título é “The polítical CEO” (O CEO político). A revista chama atenção para o fenômeno recente, nos Estados Unidos, do envolvimento dos altos executivos de grandes empresas americanas com causas “politicamente corretas”, que vão da defesa do meio ambiente, igualdade de gênero, liberdade de expressão, democracia, direito ao voto, combate ao racismo e à xenofobia, etc. Cita particularmente o caso do Estado da Georgia, onde grandes empresas com sede em Atlanta, como a Delta Airlines, posicionaram-se publicamente contra as tentativas dos Republicanos, apoiadores da reeleição de Trump, de impor medidas restritivas com o objetivo de dificultar o voto da população negra daquela estado, francamente favorável aos democratas e a John Biden.

A revista aponta os riscos de tais atitudes serem interpretadas como hipócritas.  “Mesmo que esses objetivos sejam individualmente louváveis, tudo isso equivale a uma mudança no papel dos negócios que acarreta riscos subestimados. Uma é de uma exibição de hipocrisia que desacredita a todos. Muitos fundos de investimento com consciência social estão entupidos de ações de gigantes da tecnologia acusados de violações antitruste. Os membros da Mesa Redonda de Negócios que se comprometeram a cuidar de todos os seus stakeholders cortaram centenas de milhares de empregos no ano passado e estão ocupados fazendo campanha contra os aumentos de impostos para pagar o custo social da pandemia”. No caso da Delta, a revista lembra que a empresa, além de ter feito lobby privadamente para a mudança na legislação eleitoral, “Faz parte de um oligopólio que prejudica os consumidores, acaba de receber US $ 8,5 bilhões em dinheiro do governo, reduziu sua força de trabalho em 19% durante a pandemia e é um importante poluidor”[i].

No Brasil, na mesma semana em que o CEO de um grande banco participava em jantar de apoio do “PIB brasileiro” ao presidente Jair Bolsonaro, que quando deputado declarou que não estupraria uma deputada porque “era muito feia”, o mesmo banco lançava na televisão uma estranha campanha de luta contra o assédio a um robô de relacionamento entre o banco e seus clientes que responde por um nome de mulher e utiliza uma voz feminina. Se, de um lado, esse tipo de “assédio” revela o quão doentia tornou-se nossa sociedade, a ponto de pessoas dirigirem-se em tons ofensivos a uma máquina só porque tem nome e voz de mulher, por outro lado, leva-nos a pensar por que tantos aplicativos têm nome e voz de mulher.

Em vez de Bia, Alexa, os nomes poderiam ser Pedro, João e ter voz de homem. Por que então nome e voz de mulher? Porque na sociedade capitalista a mulher vem sendo relegada há séculos a papéis subordinados, de assistentes, secretárias, telefonistas, governantas, atendentes em geral. Embora isso esteja mudando, sobretudo para as mulheres de classe média, no mundo do trabalho, a mulher sempre ocupou posições subordinadas e com possibilidades limitadas de ascensão profissional, uma vez que sempre se partiu da suposição de que em algum momento iriam se casar e deixar o emprego para cuidar da família e que, portanto, não valia muito a pena investir em suas carreiras profissionais ou lhes dar maiores oportunidades profissionais ou cargos de maior responsabilidade.

Tudo isso nos obriga a refletir sobre os usos do discurso “politicamente correto” como forma de camuflar as contradições mais profundas da sociedade, as quais nos dividem não entre homens e mulheres, brancos ou negros, mas entre segmentos e classes sociais com interesses frequentemente antagônicos que não podem ser superados com uma demão de verde nas empresas, campanhas publicitárias hipócritas ou jogadas de marketing supostamente para promover a igualdade racial ou de gênero.

Se queremos construir uma sociedade mais justa é preciso manter as empresas o mais longe possível da política, que deve ser o domínio dos cidadãos e não das corporações, como infelizmente está ocorrendo.  Vimos como na campanha eleitoral dos Estados Unidos o veredito sobre o que era ou não verdade ou mentira passou para a esfera privada. Muitos aplaudiram a censura a Trump feita pelo Twiter, pelo Google e pelo Facebook. Mas o grande risco que corremos é ver as funções de governo serem assumidas diretamente por corporações e empresas privadas, dispensando a mediação da política. A convivência entre capitalismo e democracia sempre foi problemática. A acumulação do capital nunca viu com simpatia os limites impostos pela democracia. Se houve períodos em que a democracia prevaleceu, isso se deveu a circunstâncias históricas muito particulares. O capitalismo em sua condição “natural”, como assistimos hoje com o ascenso do neoliberalismo, não tolera freios.

[i] The Economist. Companies and democracy. The political CEO. Business and politics are growing closer in America, with worrying consequences. The Economist, April 17th, 2021.

Bonifácio

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