“Bolsonárias” é lançado, por Reale Jr, contra ataques à democracia

O professor da Faculdade de Direito da USP, considerado um conservador, repudia a tentativa de desmonte do Estado de direito no Brasil

O livro Bolsonárias, que Miguel Reale Júnior, da Faculdade de Direito da USP, acaba de lançar reúne 46 artigos que publicou no jornal O Estado de S. Paulo entre 2018 e 2022, denunciando o que considera “ataques” do presidente Jair Bolsonaro ao Estado democrático de direito no Brasil. No livro, ele defende que é preciso ser mais enérgico que Jair Bolsonaro (PL) em “velar pela segurança da República” para evitar sua destruição. Além de ser considerado um jurista conservador liberal, ele foi autor do pedido de impeachment golpista contra Dilma Rousseff. Mesmo assim, espanta-se com o comportamento autoritário do presidente.

Ele acredita que, nos últimos anos, o Brasil assiste a uma persistente manobra de “desconstrução da República”. Ele elenca uma lista desses momentos em seu livro. Através de decretos presidenciais, por exemplo, a participação da sociedade civil em conselhos que definem os objetivos da administração pública foi substituída por representantes de órgãos oficiais – até que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu tratar-se de ato inconstitucional. Durante a pandemia de covid-19, prefeitos e governadores entraram em conflito com um presidente que ridicularizava o combate ao vírus e fazia campanha contra a vacina. Desde o início de seu mandato, sem nenhuma prova, Bolsonaro gerou desconfiança em relação ao sistema de apuração de votos no Brasil e divulgou fake news sobre o tema. Em 15 de março de 2020, em Brasília, participou de ato contra a ordem constitucional, que pedia o fechamento do Congresso e a volta do Ato Institucional Número 5 – o decreto de 1968 que aumentou a repressão do regime militar então no poder contra opositores.

O título do livro é inspirado nas Catilinárias – os quatro célebres discursos proferidos pelo orador e cônsul romano Cícero, em 63 antes de Cristo, contra o senador Lúcio Sérgio Catilina, que conspirava contra a República romana. Publicado pela GZ Editora, o livro tem 254 páginas, conta com apresentação do professor de Direito Constitucional Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e traz, como apêndice, a íntegra do pedido de impeachment de Bolsonaro encabeçado por Reale Júnior e entregue em novembro de 2021 ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. O livro revela um intelectual equivocado e titubeante diante da realidade concreta, tentando passar um pano sobre seu nome a cada mancha conquistada.

“Orgia de desatinos”

O artigo Orgia de Desatinos, de 2019, lembra que hoje se vive “o tempo da urgência” – em que se quer tudo o mais rápido possível -, o professor destaca que esse pragmatismo é especialmente perigoso quando se trata de dar voz a pessoas “mimadas” que, estando em posição de mando, utilizam o poder para conseguir o objeto de seus desejos.

É preciso observar, no entanto, que o comportamento verbal do presidente nunca está dissociado de uma estratégia calculada e orientada por ideólogos de extrema direita. Ou seja, embora o artigo mencione pessoas movidas por suas emoções básicas, não é o caso de Bolsonaro. Tudo nele faz parte de uma “conspiração” contra a ordem institucional, contra a democracia e a favor de governos autoritários. Bolsonaro não é apenas mimado, mas sua ação política dialoga com esse eleitorado frustrado de forma direta, ainda que mal calculada, a maior parte do tempo. Foi o caso recente da reunião com embaixadores para atacar o sistema eleitoral, que gerou repercussão negativa até entre seus apoiadores.

No mesmo artigo, Reale Júnior cita ações do presidente que, realizadas com o objetivo de obter rapidamente o resultado desejado, trazem prejuízos para o País e para o Estado de direito. Uma dessas ações se refere à defesa que Bolsonaro fez do projeto de lei que retirava a punição de produtores rurais que atirarem em invasores.

“A palavra do presidente propondo nova disposição legal que legitime o uso da violência armada é grave exemplo para os concidadãos”, afirma o professor, lembrando que a defesa da propriedade e a legítima defesa já são garantidas pelo Código Civil e pelo Código Penal. “Assim, propõe-se ser o conflito possessório resolvido legitimamente na base do revólver. Bolsonaro pretende instalar o faroeste com consagração do uso arbitrário das próprias razões.”

Em 2019, através do Twitter, o presidente transmitiu a seguinte mensagem: “O ministro da Educação, Abraham Weintraub, estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia. O objetivo é focar em áreas que geram retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina”. Para Reale Júnior, ao impor a redução de verbas para as ciências humanas, Bolsonaro busca eliminar o pensamento diferente do oficialmente aceito pelo governo. “Faz-se, sem cerimônia, tábula rasa das conquistas do espírito ao longo de nossa civilização.”

No artigo Prevenindo o Golpe, de 2021, Reale Júnior cita “três caminhos” trilhados pelo presidente para permanecer no poder: a entrega do governo ao Partido Progressistas (PP), para evitar o impeachment, o financiamento do novo Bolsa Família – agora chamado Auxílio Brasil -, para obter popularidade entre a população pobre, e a defesa do voto impresso, para contestar uma possível derrota eleitoral. Esses três caminhos trazem consideráveis riscos para o País, considera Reale Júnior.

A narrativa contra o atual sistema eleitoral é uma farsa utilizada para negar a legitimidade das eleições em caso de fracasso eleitoral, como fez o presidente norte-americano Donald Trump, continua o professor. Contra esses riscos, Reale Júnior estimulava a necessidade de reação no País: “Cabe à sociedade civil, por diversos setores e importantes figuras, se antecipar e sair a campo em defesa da legitimidade do processo eleitoral, desfazendo a empulhação do voto impresso para impedir o golpe”.

O “direito” à mentira

Em outro artigo publicado em Bolsonárias, intitulado O “Direito” à Mentira, também de 2021, Reale Júnior reproduz palavras ditas por  Bolsonaro durante a solenidade de entrega do Prêmio Marechal Rondon de Comunicações, realizada naquele ano. Na ocasião, o presidente afirmou: “Fake news fazem parte da nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada?”. E, contrário ao controle de plataformas sociais que disseminam notícias falsas, completou: “Não precisamos regular isso aí, deixemos o povo à vontade”.

Para Reale Júnior, o presidente tenta banalizar a mentira e normalizar a desinformação porque sabe que o falseamento da verdade foi o principal expediente utilizado por ele para vencer a eleição presidencial de 2018. “Por isso, visa a proteger o ‘direito’ à inverdade, proibindo por medida provisória a exclusão de falsidades pelas próprias plataformas.”

Reale Júnior menciona um estudo realizado por pesquisadores da USP e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De acordo com esse estudo, somente quatro entre as 50 imagens mais compartilhadas em 347 grupos bolsonaristas da plataforma WhatsApp eram verdadeiras. Nessa altura, o jurista consagrado pela mídia corporativa já devia estar bem arrependido do que estimulou. A maior parte das mentiras bolsonaristas usa sua argumentação antipetista para insuflar o ódio e eleger seu mito.

Diante do perigo que ameaça a democracia brasileira, Reale Júnior considera pertinente, no prefácio de Bolsonárias, repetir – com uma pequena adaptação – as frases iniciais do primeiro discurso de Cícero contra Catilina: “Afinal, Bolsonaro, até quando abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo esse teu furor ainda zombará de nós? Até que ponto tua audácia sem freios se voltará contra nós?”.

Com informações do Jornal da USP

Vermelho

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