Bolsonaro quer domar o trabalhador como o pantaneiro domava o cavalo

José Geraldo de Santana Oliveira*

Ao longo de mais dois séculos, o processo de doma do cavalo pantaneiro – considerado pela Embrapa como tradicional (Documento 104/2009, “A interação do homem pantaneiro com o seu cavalo”) – consistia na sua subjugação, pela força e pelo medo.

Segundo apurou o mestre do jornalismo José Hamilton Ribeiro, em reportagem para o “O Globo Rural”, há mais de duas décadas, o cavalo era amarrado a um tronco no curral, sem comer e beber, durante vários dias, para que o seu “orgulho fosse quebrado”; o que nada mais era do que a sua completa humilhação.

Ao depois, era montado, por cerca de uma semana, tosado e amarrado a uma tora que o obrigava a manter a cabeça baixa; em seguida, procedia-se à sangria, retirando-lhe aproximadamente um litro de sangue, processo que era repetido após seis meses.

Conforme a Embrapa, “neste momento, o cavalo era considerado ‘golpeado’”, isto é, humilhado e submisso; àquele que se rebelava contra essa submissão se denominava “bardoso”,“queixudo”, “mesquinho”, recebendo o rótulo de “sem destino”; ao que a aceitava sem resistir chamavam de “redomão corrente”, ou seja, pronto para lida com o gado.

Na região pantaneira, apesar de ainda existir, esse método cruel já não mais representa a regra, sendo substituído pela chamada doma racional, que o rejeita.

Pois bem! Se a doma tradicional deixou de ser regra naturalmente aceita na região pantaneira, no governo Bolsonaro ela adquiriu a condição de bússola reguladora. Não mais para golpear os cavalos, mas, sim, para a impiedosa e plena subjugação dos trabalhadores e de seus sagrados direitos fundamentais sociais, escolhidos pelo presidente e os seus auxiliares os inimigos a serem abatidos, de modo a não deixar remanescer nenhum deles; havendo entre as duas domas muitas semelhanças, sendo, no entanto, a bolsonariana – neologismo – muito mais cruel do que a pantaneira.

Para humilhar os trabalhadores e fazê-los arrastar-se em meio às mazelas que lhe são e serão impostas, de cabeça baixa e sem resistência, além de satanizar os seus direitos, por ele considerados excessivos e nocivos ao Brasil que ele almeja, de domínio absoluto do capital, sem limites e barreiras, Bolsonaro, de plano, golpeou dois de seus mais importantes símbolos, que encerram lutas seculares, travadas com sangue e suor: o Ministério do Trabalho – criado pelo Decreto N. 19433, de 26 de novembro de 1930 – e o salário mínimo, implantado pelo Decreto N. 2162, de 1º de maio de 1940, apesar de ser legalmente previsto desde a Constituição Federal (CF) de 1934.

Ao longo de seus oitenta e oito anos, um mês e cinco dias de existência, o Ministério do Trabalho – desde Ministério do Trabalho e Emprego (MTE ) – representou o limiar entre a selvageria e a proteção mínima nas relações de trabalho, em que pesem os nada saudosos períodos de brutal intervenção na organização sindical, sobretudo entre 1937 e 1945 e 1964 a 1988; cabia-lhe, dentre outras funções:

fiscalizar – com poderes de autuação e interdição – a regular aplicação dos direitos assegurados pelas leis trabalhistas – a partir de 1º de maio de 1943, com o Decreto-lei N. 5452 – consolidadas, em sua quase totalidade, na CLT, por normas esparsas – como as que regulamentam o 13º salário, Lei N. 4090/1962 e 4742/1965 –, nas convenções e acordos coletivos de trabalho;

baixar normas de proteção mínima à segurança e à saúde do trabalho, bem como zelar pela sua observância;

combater e coibir as condições precárias de trabalho, com destaque para as análogas à escravidão;

regular a criação de sindicatos, até o advento da CF de 1988; e, a partir dela, analisar e (in) deferir os seus pedidos de registro sindical, com a observância da unicidade sindical, fazendo-o por força da Súmula N. 667 do Supremo Tribunal Federal (STF).

Por tudo isso, a sua extinção, com a hipotética diluição de suas precípuas funções em outros ministérios, representa o rompimento da última barreira administrativa, para o estabelecimento definitivo da selvageria nas relações de trabalho, sem qualquer empecilho por parte do Poder Público, que passa a ser o seu garante principal.

A título de ilustração do que simboliza a extinção do MTE, toma-se a transferência do registro sindical, previsto no Art. 8º, inciso II, da CF, para o Ministério da Justiça e Defesa, dirigido pelo inquisidor Sérgio Moro; esta transferência, a toda evidência, deve ser entendida como a senha para o retorno das sumárias e infundadas intervenções na organização sindical, tão em voga nos períodos de ditadura, 1937 a 1945 e 1964 a 1988, não obstante serem expressamente vedadas pelo citado Art. 8º, inciso I, da CF.

A tunga de R$ 8,00 no salário mínimo, fixado em R$ 998,00 – muito embora o previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) –, pelo Decreto N.9661, de 1º de janeiro de 2019 – primeiro ato governamental de Bolsonaro –, também se reveste de gigantesca simbologia; o que se discute não se restringe à redução de seu valor, que, numericamente, é de pequena monta, ainda que multiplicada por 48 milhões – número de trabalhadores que o têm como base remuneratória, segundo Nota Técnica N. 188, do Dieese – perfaça valor considerável; a essência dessa redução é clara substituição da valorização do trabalho humano – fundamento primeiro da ordem econômica, conforme o Art. 170 da CF – pelo seu desprezo (desvalor), como a dizer aos trabalhadores que, no governo dele, eles serão tratados como párias sociais.

Para que se tenha a dimensão do salário mínimo, quarto dos direitos fundamentais sociais, dentre os trinta e quatro elencados no Art. 7º da CF, basta que se tomem alguns dados contidos na Nota Técnica N. 188 do Dieese, de janeiro de 2018, quais sejam: aproximadamente, 48 milhões de pessoas o têm como referência remuneratória; mais de 22 milhões dos 34 milhões de benefícios previdenciários, correspondem a ele; e que – segundo Álvaro Sólon, 2018, “A IMPORTÂNCIA DA PREVIDÊNCIA PARA OS MUNICÍPIOS” – cerca de 3.872 dos 5.570 municípios brasileiros têm como principal fonte de riqueza os benefícios previdenciários a ele equivalentes.

Concretizadas a extinção do MTE e a tunga do salário mínimo, a ira de Bolsonaro se volta para a Justiça do Trabalho – criada pelo Decreto-lei N. 1237, de 1º de maio de 1941, e constitucionalizada pela CF de 1946–, a quem, consoante o Art. 114, da CF, compete:

“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II as ações que envolvam exercício do direito de greve;

III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;

IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;

V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;

VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;

VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;

VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;

IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.

§ 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito”.

Como se constata pela simples leitura do Art. retro, a Justiça do Trabalho se reveste da condição de especializada, tendo como objetivo precípuo a garantia de efetividade dos direitos fundamentais sociais, elencados nos Arts. 7º (salário, FGTS, 13º salário, férias, horas extras etc), 8º (organização sindical), 9º (greve), 10 (participação de representantes de empregados em órgãos colegiados) e 11 (representante por empresa) da CF; daí decorre a razão de o presidente Bolsonaro, embaixador do capital, cogitar a sua extinção, para que não subsista nenhum reduto institucional que os proteja.

Sem a Justiça do Trabalho, a tênue simetria nas relações de trabalho (se é que se concretiza) que lhe cabe garantir, não subsistirá; não é demais lembrar que o STF, no julgamento do recurso extraordinário N. 590415, que abriu largos para a prevalência do negociado sobre o legislado, com vistas à redução de direitos, reconheceu que as relações individuais de trabalho têm como marca indelével a assimetria, ou seja, o desequilíbrio total entre as forças que a compõem: patrão e empregado.

Sem a Justiça do Trabalho, o preconizado equilíbrio entre os valores sociais do trabalho e os da livre iniciativa, que se constituem no quarto fundamento da República Federativa do Brasil (Art. 1º, inciso IV, da CF), será relegado à condição de mero protocolo de intenção, ou, parafraseando Ferdinand Lassale na sua conferência transformada em livro, “A Essência de uma Constituição”, não será mais do que simples folha de papel, desprovida de qualquer valor. Aliás, é o que Bolsonaro, despudoradamente, busca.

Por isso, pode-se e deve-se afirmar, com plena convicção, que a Justiça do Trabalho é cláusula pétrea (que não pode ser reduzida e/ou suprimida) do Estado Democrático de Direito, implantado pela CF de 1988.

Portanto, a todos quanto cultuam o Estado Democrático de Direito impõe-se a inarredável obrigação de, prontamente, porem-se na trincheira de combate à insana pretensão de se extingui-la.

Se esse crime de lesa democracia for perpetrado, desprezando-se a condição de cláusula pétrea, o que não pode ser desprezado, ainda que isso demande a aprovação de Emenda Constitucional, por 60% dos deputados federais (308) e dos senadores (49), a quem competirá processar e julgar as causas trabalhistas? A Justiça Federal ou a Estadual, ou nenhuma?

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), assim conceitua a Justiça Estadual, a do Trabalho e a Federal:

“O que é a Justiça Estadual: A Justiça Estadual, integrante da justiça comum (junto com a Justiça Federal), é responsável por julgar matérias que não sejam da competência dos demais segmentos do Judiciário – Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar, ou seja, sua competência é residual.

O que é a Justiça do Trabalho: A Justiça do Trabalho concilia e julga as ações judiciais entre empregados e empregadores avulsos e seus tomadores de serviços e outras controvérsias decorrentes da relação do trabalho, além das demandas que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive as coletivas.

O que é a Justiça Federal: De acordo com o disposto nos artigos 92 e 106 da Constituição Federal, a Justiça Federal, ramo integrante da estrutura do Poder Judiciário, é constituída pelos Tribunais Regionais Federais e pelos juízes federais. A Justiça Federal, juntamente com a Justiça Estadual, compõe a chamada justiça comum. Compete, especificamente, à Justiça Federal julgar as causas em que a União, entidades autárquicas ou empresas públicas federais sejam interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes; as causas que envolvam estados estrangeiros ou tratados internacionais; os crimes políticos ou aqueles praticados contra bens, serviços ou interesses da União; os crimes contra a organização do trabalho; a disputa sobre os direitos indígenas, entre outros. Exclui-se da competência da Justiça Federal as causas de falência, as de acidente de trabalho e as de competência das justiças especializadas. Em razão de inclusão definida pela Emenda Constitucional n. 45/2004, a Justiça Federal também passou a julgar causas relativas a graves violações de direitos humanos, desde que seja suscitado pelo Procurador-Geral da República ao Superior Tribunal de Justiça incidente de deslocamento de competência”.

Para além da quebra de proteção mínima dos direitos fundamentais sociais, que se busca sofregamente com a eventual extinção da Justiça do Trabalho, há outros objetivos, não revelados pelos que a propugnam.

Segundo o Relatório do CNJ, “A Justiça em Números”, relativo ao ano de 2017, divulgado em setembro de 2018, o tempo médio de tramitação de processos judiciais, na fase conhecimento, nas três esferas da Justiça, é o seguinte:

I Justiça Estadual: 3 anos e 7 meses, no primeiro grau; e 11 meses, no segundo.

II Justiça Federal: 3 anos e 8 meses, no primeiro grau; e 2 anos e 9 meses, no segundo.

III Justiça do Trabalho: 11 meses, no primeiro grau; e 8 meses, no segundo.

Ainda, segundo o realçado Relatório, em 2017 havia um estoque de 80,1 milhões de processos, em todas as esferas judiciais, dos quais 79,3%, na Justiça Estadual, 12,9%, na Federal, e 6,9%, na do Trabalho.

Merece destaque a observação abaixo, extraída integralmente no citado Relatório:

“Chama atenção a diferença entre o volume de processos pendentes e o volume que ingressa a cada ano, conforme observado na Figura 47. Na Justiça Estadual, o estoque equivale a 3,1 vezes a demanda e na Justiça Federal, a 2,7 vezes. Nos demais segmentos, os processos pendentes são mais próximos do volume ingressado e, em 2017, seguiram a razão de 1,3 pendente por caso novo na Justiça do Trabalho e 1,1 pendente por caso novo nos Tribunais Superiores. Na Justiça Eleitoral e na Justiça Militar Estadual ocorre o inverso: o acervo é menor que a demanda. Tais diferenças significam que, mesmo que não houvesse ingresso de novas demandas, e fosse mantida a produtividade dos magistrados e dos servidores, seriam necessários aproximadamente 2 anos e 7 meses de trabalho para zerar o estoque. Esse indicador é denominado “tempo de giro do acervo”. O tempo de giro do acervo na Justiça Estadual é de 2 anos e 11 meses; na Justiça Federal é de 2 anos e 10 meses; na Justiça do Trabalho é de 1 ano e 2 meses; na Justiça Militar Estadual é de 8 meses e nos Tribunais Superiores é de 1 ano”.

Eis, pois, mais algumas razões para os inimigos dos trabalhadores e de seus direitos buscarem a extinção da Justiça do Trabalho.

Ante tudo o que foi dito, voltando-se à comparação da doma tradicional do cavalo pantaneiro com o tratamento dispensado aos trabalhadores e aos seus direitos, pelo governo Bolsonaro, pode-se concluir o seguinte:

Os trabalhadores que se recusarem a aceitar a fazer a funesta escolha, que lhes é apresentada por Bolsonaro, qual seja “emprego ou direitos”, receberão o carimbo de desempregados, que, no bordão da mencionada doma do cavalo pantaneiro, equivale a “bardoso”, “mesquinho”, e sem destino.

Aqueles que a aceitarem receberão a “carteira de trabalho verde amarela”, que os excluirá dos direitos assegurados pela CLT e por convenções e acordos coletivos; que, no bordão pantaneiro, corresponde a “redomão corrente”, ou seja, totalmente submisso.

*José Geraldo de Santana Oliveira é Consultor Jurídico da Contee

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