Como a pandemia de coronavírus impacta o ensino no Brasil

Escolas fechadas, alunos em casa, conteúdo curricular deixado para trás. Além de afetar a saúde pública e a economia, covid-19 deve ter graves consequências para a educação, afetando o calendário e a qualidade do ensino.

A partir de meados de março, prefeitos e governadores determinaram a suspensão das aulas nas redes pública e privada. A duração da pausa no ano letivo ainda é incerta, mas deve levar de um mês e meio a três meses, conforme a evolução dos casos e a avaliação dos gestores.

Diante desse cenário, o presidente Jair Bolsonaro publicou na última quarta-feira (1º/04) uma medida provisória que desobriga as instituições de ensino a cumprirem o mínimo de 200 dias letivos exigidos por lei, desde que mantidas as 800 horas mínimas de aula.

Essa possibilidade, que já era prevista na Lei de Diretrizes e Bases para situações emergenciais, deixa as escolas livres para concentrar o conteúdo curricular no segundo semestre, quando o isolamento social deverá ter sido relaxado.

A norma não resolve problemas práticos enfrentados por professores e gestores da educação, que buscam maneiras de manter os alunos ativos intelectualmente longe da escola, mas muitas vezes não têm a experiência pedagógica ou os recursos tecnológicos para tal. E tampouco detalha como as escolas deverão suprir as aulas perdidas após o isolamento, seja adiando o fim do atual ano letivo para o ano seguinte, usando finais de semana ou feriados ou estendendo a carga horária nos dias úteis.

Como as secretarias de ensino têm reagido

Uma pesquisa realizada pelo Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB), em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e a Fundação Lemann, divulgada na última sexta-feira, radiografou a reação da maioria dos gestores públicos do setor educacional do país até o dia 26 de março.

O questionário foi respondido por 3.011 secretarias municipais de educação (54,5% do total nacional) e 21 secretarias estaduais (77,8% do total nacional).

Segundo o levantamento, 84% das secretarias municipais já editaram normas sobre a suspensão das aulas, mas a maioria delas –63% – ainda não definiu qual estratégia adotará para manter os alunos engajados nesse período.

Entre as que adotaram recursos tecnológicos para manter contato com os estudantes, as técnicas mais usadas são o envio de materiais digitais pelo professor aos estudantes, envio de orientações genéricas via redes sociais pelo professor para que os estudantes acessem em casa com apoio de livros didáticos, e disponibilização de videoaulas gravadas pelos professores e enviadas aos estudantes por redes sociais para que eles assistam em seus aparelhos.

Uma minoria das secretarias – 7,7% das municipais e 20% das estaduais – estabeleceu o cumprimento de carga horária letiva durante o período de suspensão das aulas. Nas demais, as atividades remotas servirão para manter os alunos estimulados intelectualmente durante o isolamento social, mas não para formalmente substituir as aulas, que deverão ser repostas no futuro.

A adesão dos alunos a essas atividades é, na prática, facultativa na maioria do país: mais de 85% das secretarias respondentes, estaduais e municipais, não sabiam ainda como fazer o registro de presença e a avaliação de aprendizagem dos estudantes durante o isolamento.

Ensino remoto na pandemia

Segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil, o uso da internet nesse período para promover atividades de ensino é útil para manter os alunos vinculados ao ambiente escolar e ativos, mas não deveria em regra substituir a presença dos estudantes nas salas de aula, tem o risco de acentuar as desigualdades entre os estudantes e esbarra na falta de preparo das instituições de ensino e professores.

Lucia Delagnello, diretora-presidente do CIEB, afirma que os países que melhor conseguiram adaptar seus sistemas de ensino para este período de isolamento social e “manter uma certa normalidade” são aqueles que já tinham experiência no uso de tecnologia na educação, como China, Cingapura e Estônia.

Não é o caso do Brasil. Segundo Delagnello, a maioria das secretarias estaduais de ensino do país não tem plataforma nem metodologia estabelecida para oferecer aulas remotas. A exceção, diz, são estados na região amazônica, que usam o ensino à distância para chegar às comunidades ribeirinhas.

Isso não impede que a tecnologia seja usada para estimular os alunos durante o período de isolamento, sem substituir as aulas. “O que as secretarias de educação estão fazendo agora é manter os alunos engajados em atividades educativas, mas sem se preocupar em substituir a aulas comuns e em cumprir o currículo”, diz.

Delagnello, para quem a escola é essencial como espaço de socialização e de aprendizado, lembra que os dilemas do uso da tecnologia no contexto brasileiro são potencializados pela desigualdade de acesso às ferramentas pelos alunos, já que parte deles não tem os equipamentos necessários ou uma conexão de banda larga em casa.

Para contornar esse problema, uma alternativa que vem sendo adotada por alguns estados é usar a TV aberta para transmitir as atividades educativas, já que esses aparelhos têm uma penetração maior nos lares do que a internet de banda larga.

João Marcelo Borges, diretor de estratégia política da organização Todos Pela Educação, afirma que o Maranhão iniciou na últimas segunda-feira a apresentação de aulas remotas ao vivo pela TV pública, rádio e internet, e que Pernambuco fará o mesmo a partir da próxima semana. Há também conversas entre secretários de educação para lançar rede nacional educativa em TV aberta em meados de abril.

Na faixa dos alunos mais velhos, na qual o uso de celulares é mais difundido, o uso de plataformas digitais tem mais chance de sucesso. O problema, no caso, é que os estudantes resistem a gastar o limite de dados de seus pacotes de celular com as atividades didáticas, segundo Delagnello.

Uma solução buscada por alguns governos estaduais é negociar com as operadoras de celular para que permitam o acesso aos materiais de ensino sem descontar os dados transmitidos dos planos dos usuários. Um exemplo é o estado de São Paulo, que lançou na sexta-feira um aplicativo de celular para alunos e professores da rede pública, cujo acesso não será cobrado pelas operadoras de telefonia.

Dificuldades além da tecnologia

Mesmo que a barreira tecnológica tenha sido resolvida, há outros problemas. Muitos professores não receberam treinamento para usar essas ferramentas. E os pais e mães dos alunos, que também podem estar trabalhando de casa nesse período, podem se sentir pressionados a ajudar os filhos nas tarefas sem ter tempo suficiente para isso.

“Há que se buscar um equilíbrio entre manter os alunos em atividades sem sobrecarregá-los e as suas famílias”, afirma Delagnello.

O acesso a ferramentas tecnológicas é “mais simples” para os alunos da rede privada, especialmente devido à maior conectividade desses alunos, mas, mesmo assim, “em termos metodológicos e pedagógicos, muitas escolas privadas também não têm experiência para ensinar à distância”, diz ela.

Borges, da Todos Pela Educação, afirma que o importante é as redes públicas manterem “algum tipo de atividade didática e pedagógica à distância, a despeito das limitações”, para evitar aumentar ainda mais o “fosso” entre os alunos da rede pública e da rede privada.

Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, também defende que as escolas públicas mantenham algum tipo de contato com os alunos, “nem que seja pelos Correios”, para oferecer atividades que ofereçam estímulo cognitivo. Porém, ele é contra contabilizá-las como aulas normais.

“Em um país com enormes dificuldades educacionais, é ingênuo achar que, se os alunos não aprendem na modalidade presencial, vão aprender à distância. Sem banda larga, sem um responsável que possa acompanhá-lo e sem autonomia intelectual para dar conta desse tipo de ensino”, afirma.

“Além disso, neste período de isolamento está ocorrendo uma alta nos casos de violência doméstica. Grande parte dos estudantes não vive em casas que deem condições de concentração para o estudo”, complementa.

Alternativas para repor o tempo perdido

Diante da impossibilidade técnica e dos efeitos nocivos da substituição total das aulas presencias pelas virtuais, há outras opções em debate no setor de educação para dar conta do programa do ano eletivo após a reabertura das escolas.

Uma delas, diz Delagnello, é os gestores serem mais flexíveis em relação ao currículo estabelecido para o ano e, em vez de cumpri-lo à risca, “identificar e selecionar quais conteúdos e habilidades são mais essenciais e trabalhar com eles”, diz.

Outro caminho, afirma Cara, é a conclusão do ano letivo de 2020 no ano seguinte, combinado com atividades complementares aos sábados e domingo e ao acréscimo de uma hora diária de aula nos dias úteis.

“Será em algum grau extenuante, e todos precisarão fazer um esforço, os alunos e os professores”, diz ele, lembrando que a solução para cada escola e rede de ensino dependerá das condições e estruturas de cada uma e do período total de isolamento.

Borges pondera que, como as redes públicas de ensino já estão acostumadas com greves que interrompem as aulas e precisam ser repostas posteriormente, têm experiência para lidar com “anos letivos que superam o ano do calendário”.

Outros desafios à frente

Além do esforço para manter um contato constante com os alunos no período de isolamento e, depois, repor as aulas perdidas, Borges afirma ser importante que o governo federal adie a data de realização do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, previsto para outubro.

“A manutenção da data do Enem pode prejudicar ainda mais os alunos das redes públicas em relação aos das redes privadas. Até a China, que em tese controlou a pandemia, adiou o seu exame de acesso às universidades”, diz.

Borges também estima que pelo menos um quinto dos alunos possa desenvolver sintomas de estresse pós-traumático em função da pandemia, além do agravamento de outros quadros de saúde mental, exigindo do poder público um esforço para oferecer assistência de saúde mental nesse período.

Por fim, Borges prevê dificuldades fiscais crescentes para o setor, já que a queda da arrecadação decorrente da recessão prevista reduzirá o volume de recursos disponível para a educação, enquanto despesas com salários dos professores da rede pública permanecerão estáveis e se somarão a gastos extras com a reposição de aulas no período de férias. “Haverá desafios fiscais pela frente, impondo desafios aos gestores para sustentar as atividades”, diz.

Deutsche Welle

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