Como o Brasil falha em proteger suas crianças e adolescentes

Por Laís Modelli

Apesar de uma legislação infanto-juvenil avançada, metade das crianças e adolescentes brasileiros (49,7%) não tem acesso a pelo menos um dos seguintes direitos fundamentais: educação, informação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, água e saneamento. Além disso, mais de 34% de meninas e meninos de até 17 anos vivem em casas com renda per capita insuficientepara comprar uma cesta básica, ou menos de 350 reais.

O cruzamento desses dados – que fazem parte do relatório do Unicef Pobreza na infância e na adolescência, divulgado em agosto – revela que, no Brasil, a pobreza na infância e na adolescência é complexa e tem múltiplas dimensões, que vão além do dinheiro e da legislação.

“O Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo para proteger crianças e adolescentes, mas também é um dos países onde crianças e adolescentes estão mais desprotegidos”, afirma o coordenador da Comissão da Infância e do Juventude do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo), Ariel de Castro Alves.

Ele se refere ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Aprovado em 1990, o ECA é referência mundial como legislação de proteção à criança e ao adolescente e foi formulado a partir da Constituição Federal de 1988, uma das primeiras a contemplar a proteção integral e os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente.

“A legislação brasileira é excelente, uma das mais modernas do mundo, mas não é cumprida. Começamos pelo descumprimento da própria Constituição, já que crianças e adolescentes, na prática, jamais foram prioridade no Brasil”, diz a presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB, Silvana do Monte Moreira.

De acordo com o Unicef, mais de 18 milhões de meninas e meninos vivem na pobreza. Entre os direitos fundamentais, o acesso ao saneamento é o direito mais descumprido e afeta mais de 13,3 milhões de crianças e adolescentes, seguido pela educação (8,8 milhões), água (7,6 milhões), informação (6,8 milhões), moradia (5,9 milhões) e proteção contra o trabalho infantil (2,5 milhões). Quase 14 mil crianças e adolescentes não têm acesso a nenhum dos seis direitos.

Um relatório de 2017, também do Unicef, mostrou que o Brasil é, entre os países onde não há conflito armado, o quinto em assassinato de crianças e adolescentes, atrás apenas de Venezuela, Colômbia, El Salvador e Honduras. A Fundação Abrinq afirma que o número de mortes violentas de pessoas menores de 19 anos passou de 5 mil, em 1990, para 10,9 mil, em 2015.

Realidade é outra

Antes do ECA, a criança fora da escola, explorada no trabalho infantil ou vítima de violência, entre outros exemplos de violação de direitos, não era considerada um “sujeito de direito”. “Com a promulgação do estatuto, quem passou a estar em situação irregular foi a família, o Estado e toda a sociedade, que não garantiram proteção integral às crianças e aos adolescentes”, diz Alves.

O ECA prevê que todo município tenha os seguintes programas especializados para crianças e adolescentes: atendimento de famílias e fortalecimento de vínculos; enfrentamento ao abuso e exploração; erradicação do trabalho infantil; atendimento de drogadição; atendimento às vítimas de maus-tratos e violência; convivência familiar e comunitária, incluindo programas de apoio sociofamiliar e acolhimento institucional; medidas socioeducativas e programas de oportunidades e inclusão, visando o preparo dos jovens para o mercado de trabalho.

Só que essa não é realidade na maioria das cidades. Parte do problema pode ser explicada pela política de cortes orçamentários em políticas públicas e programas sociais, que enfraqueceu principalmente órgãos de formulação e monitoramento da população infanto-juvenil, como o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), o PPCAAM (Programa de Proteção de Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte) e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). “Esses cortes e a falta de atenção ao ECA têm ampliado as desigualdades sociais e gerado mais pobreza para as crianças, adolescentes e seus familiares”, analisa Alves.

Moreira também ressalta a incapacidade do Estado em atender demandas protetivas do público infanto-juvenil. “As varas da infância acumulam competências com outras áreas, como criminal em algumas comarcas, do idoso em outras, além de não terem equipes técnicas para atender os casos que lá chegam. E, quando têm, os técnicos são insuficientes”, comenta.

Soluções simplistas

O desrespeito aos direitos básicos gera, junto com a pobreza, um outro problema: a criminalidade infanto-juvenil. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem 189 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas. Em 2015 eram 96 mil. O aumento no número de menores infratores fomenta discussões sobre a redução da maioridade penal, hoje em 18 anos, e coloca em evidência o ECA, que é atacado por aqueles que defendem a diminuição da maioridade para 16 anos.

Para os especialistas, a redução da maioridade penal é uma medida simplista para um problema complexo. “Essa proposta, que ganha força em períodos pré-eleitorais, é demagógica e ilusória”, afirma Alves. “O principal argumento contra é que cuidado e prevenção, através de políticas sociais, custa muito menos que repressão: cada aluno na rede pública custa, em média, 2 mil reais por ano, enquanto que um interno na Fundação Casa de São Paulo custa cerca de 10 mil reais por mês”, argumenta o coordenador, citando dados do Condepe.

A redução da maioridade penal também lançaria mais cedo o menor infrator dentro de um sistema que, na prática, é de formação de criminosos. “Teríamos criminosos ‘profissionalizados’ nas cadeias mais cedo, dentro de um sistema prisional falido, que é dominado pelo crime organizado e pela corrupção e que nunca resolveu o problema da violência, pois a reincidência, conforme dados da CPI do Sistema Carcerário, é de 70%”, afirma Alves.

O atual encarceramento dos jovens infratores na Fundação Casa também não é a solução. “A Fundação Casa de São Paulo tem apresentado reincidência de 20%, e esse percentual não leva em conta os jovens que completam 18 anos e vão para as cadeias pela prática de novos crimes“, informa Alves.

“De socioeducativas, as unidades voltadas aos jovens infratores nada têm. São apenas espaços amontoados de adolescentes jogados em locais imundos, insalubres e em número superior à capacidade”, afirma Moreira. “É cômodo para o Estado tender a medidas retrógradas, como a redução da maioridade penal ou o aumento do tempo de internação do adolescente infrator, pois é mais fácil punir que prevenir, prender que educar.”

“Temos que incluir socialmente e garantir oportunidades à juventude. Se o adolescente procura escola, trabalho e profissionalização, mas não encontra vaga, ele vai para o crime. O crime só inclui quando o Estado exclui”, diz Alves.

Carta Capital

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