Como rebaixar o debate público sobre a reabertura das escolas?

O argumento embasado e a análise rigorosa sucumbem à desqualificação, à falácia e à condenação moral – de prefeitos a bebedores de cerveja. E, como era de se esperar, isso não melhora a confiança das comunidades escolares nos protocolos sanitários de retorno

Escola, shopping center, bar, praia lotada, prioridade, reabertura, retorno seguro, eleição municipal – corte tudo em fatias finas e misture em uma tigela com uma pitada de sal e um fio de azeite. Leve ao liquidificador até formar uma pasta homogênea. Espalhe em uma travessa e disponha os seus argumentos sobre essa base. Diga que não faz sentido priorizar o comércio e abandonar as escolas. Que não faz diferença reabrir as escolas agora ou em 2021, já que a situação de não imunização da população permanecerá a mesma no país. Prefira o simples ao complexo. Se não for possível eliminar a controvérsia, dicotomize. Menos é mais.

Para temperar, critique a demagogia dos prefeitos, ofenda os sindicatos de professores e tome as famílias dos estudantes por tolas ou paranoicas. Ponha a culpa na “política” ou, se preferir, nos partidos políticos. Para contrabalançar a acidez, pondere que não está defendendo uma reabertura imediata ou incondicional das escolas, mas o desenvolvimento de protocolos para um retorno seguro e a qualificação do debate público. Decore com ervas frescas e comentários genéricos sobre a aprendizagem e a saúde mental das crianças, dos quais ninguém discorda. Sirva durante alguns meses.

Com a retomada paulatina de diversos setores do comércio no Brasil, as medidas para o relaxamento da quarentena não tardariam a bater nos portões das escolas. As redes de ensino já não têm condições de defender as virtudes de seu precário “ensino remoto”, que mais aprofundou desigualdades educacionais do que garantiu aprendizagens ou preservou vínculos entre estudantes e escolas. A pressão pela retomada das atividades presenciais era uma questão de tempo.

Os primeiros a defender publicamente a reabertura foram os proprietários de escolas privadas, desejosos de manter seus negócios e representados por diligentes sindicatos patronais. Desde o final de junho, por meio de notas tranquilizadoras, pressões sobre governadores e investidas negacionistas, eles bem que tentaram criar um clima favorável à retomada das aulas presenciais, mas seus apelos não convenceram comunidades escolares nem autoridades educacionais.

Até agora, o Amazonas foi o único estado do país a reabrir massivamente suas escolas; as privadas em julho e as públicas em agosto. Três semanas depois, no início de setembro, 7,6% dos profissionais da educação da rede estadual amazonense estavam no período de transmissão ativa do coronavírus – ou seja, haviam sido infectados recentemente. Em outros estados e municípios houve adiamentos, autorização para reabertura facultativa e atividades de reforço, além de disputas judiciais. Também era esperado que as eleições municipais alterassem a disposição dos prefeitos em liberar o retorno das atividades presenciais nas escolas. Diversos municípios da Grande São Paulo, por exemplo, anunciaram que suas escolas só reabrirão em 2021.

Em agosto, uma pesquisa do Datafolha indicou que 79% dos brasileiros acreditavam que a reabertura das escolas iria agravar a pandemia. Um mês depois, o Ibope levantou que 72% dos brasileiros das classes A, B e C não eram apenas contra a reabertura naquele momento, mas defendiam que ela só ocorresse quando disponibilizada vacina contra o coronavírus. No final de setembro, depois de dois meses de uma pauta intensamente favorável à reabertura na grande imprensa, o Datafolha mostrou que 75% dos eleitores na cidade de São Paulo ainda preferem que as escolas permaneçam fechadas.

Não obstante a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter alertado que não se deve esperar a disponibilização em massa de uma vacina antes de 2022, uma escola estadual na cidade de São Paulo convocou seu conselho escolar, que deliberou e decidiu (por 29 votos a um) que a reabertura só ocorrerá quando houver vacina. Uma faixa comunicando a decisão foi afixada no portão da escola, mas a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) “orientou” a retirada do comunicado.

Por mais radical que pareça a decisão de retornar só depois de disponibilizada uma vacina, importa menos desqualificar a radicalidade dessa decisão do que entender o contexto em que ela foi tomada:

1) O Brasil nunca controlou adequadamente a pandemia, e não há previsão de que as redes de ensino adotarão protocolos de testagem em massa e de rastreamento de contatos nas comunidades escolares, o que lhes permitiria conter novos surtos em escolas ou distritos escolares por meio de fechamentos localizados;

2) Como se isso fosse pouco, o passivo histórico de falta de investimentos em infraestrutura escolar nas redes públicas tem cobrado um alto preço: salas mal ventiladas, banheiros insuficientes ou sem manutenção, classes superlotadas, falta de insumos;

3) Por fim, as equipes escolares, já numericamente defasadas desde antes da pandemia, não conseguem absorver todo um conjunto de novas rotinas escolares de limpeza, medição de temperatura, vigilância da atenção aos protocolos, isolamento de pessoas com sintomas de Covid-19, controle do fluxo de pessoas nos ambientes escolares etc. etc.

A despeito do falso otimismo dos sindicatos patronais, a situação nas instituições privadas não é muito diferente das públicas. Ainda que a manutenção dos sanitários possa estar em dia, grande parte das escolas particulares – escolas de bairro com ensino apostilado massificado – funciona em edifícios ainda mais apertados que os das escolas públicas.

As escolas de elite que contratam hospitais renomados para desenhar protocolos de retorno sofisticados não representam o setor, embora a revista Veja, em exultante reportagem de capa (23 set. 2020), informe que as “120 melhores escolas no Brasil” estão prontíssimas para receber os estudantes. A foto da capa mostra uma criança vestindo uma roupa hospitalar usada em UTIs – o que, paradoxalmente, só faz confirmar que esse tão sonhado retorno às escolas não é lá muito seguro.

Alarmismo e paranoia

O Brasil tem 184 mil unidades escolares, cujas condições são amplamente conhecidas por quem as frequenta. É por conhecerem as escolas que profissionais da educação, estudantes e famílias não acreditam que o Estado e os proprietários de escolas privadas sejam capazes de garantir uma reabertura segura neste momento. É isso o que se vê nas pesquisas de opinião, nas enquetes realizadas pelas redes de ensino e nas deliberações dos conselhos escolares. Mas nem todo mundo interpreta as coisas assim.

Viviane Senna declarou à Folha de S.Paulo que “Existe agora um movimento de trazer esse outro lado [favorável à reabertura das escolas], inclusive na imprensa, que até agora estava alimentando a paranoia”. Este diagnóstico tem sua razão de ser, visto que a própria entrevistadora, a colunista Laura Mattos, comenta um pouco antes que “É curioso como, dentre grupos de pais, haja pouca repercussão de conteúdos favoráveis à abertura das escolas, enquanto notícias alarmantes têm destaque”. A entrevistada concorda, e crê que a desconfiança e o medo das pessoas com relação à insegurança nas escolas tenham sido alimentados pela imprensa.

A presidente do Instituto Ayrton Senna e os seus pares nas fundações, institutos e coalizões empresariais-educacionais são, hoje, os mais apaixonados defensores da reabertura das escolas no país. Entre longas entrevistas e artigos tendenciosos, eles têm dominado a feira de opiniões pró-reabertura na grande imprensa, auxiliados por uma legião de colunistas amigos e usualmente alinhados às suas agendas. Como é de praxe, os veículos que publicam os seus artigos não se responsabilizam pelas opiniões neles expressas, mas chancelam-nas todas, à medida em que nem se dignam a responder os pedidos de réplica. O contraditório, assim, fica restrito às mídias alternativas e, nos grandes veículos, a comentários pontuais em matérias que repercutem decisões oficiais ou a pequenos painéis em que duas pessoas defendem teses diametralmente opostas. Dicotomia SIM; aprofundamento NÃO.

O “movimento” que Viviane Senna e outros estão produzindo na imprensa é, na verdade, uma reação ao jornalismo factual que vem cobrindo a situação das escolas nos últimos meses. A falta de segurança sanitária nas escolas é um fato. E se esses atores desqualificam o jornalismo factual como “alarmismo” e a insegurança das comunidades escolares como “paranoia”, é porque entendem que os fatos noticiados não deveriam despertar alarme. Como uma gripezinha.

Arrogantes, os apaixonados defensores da reabertura só conseguem encarar a resistência das comunidades escolares como uma guerra a ser vencida. Querem ganhar a opinião pública agora e a qualquer custo – desqualificando interlocutores, fabricando equivalências e espalhando a desinformação.

“Se até os shoppings foram reabertos, por que não as escolas?”
Faça uma pergunta que acione as bússolas morais das pessoas e as caixas de comentários começarão logo a pipocar: “Quer dizer que pode bater perna em shopping, mas criança não pode estudar? Que país é esse?”; “Nossas crianças estão sofrendo por nossa incapacidade de agir”; “Onde já se viu reabrir bar antes de escola? Só no Brasil…”. Em um debate dominado pelo moralismo e pela culpa individual torna-se desnecessário explicar que reabrir escolas neste imenso país envolve modificar a rotina de 48 milhões de estudantes e de mais alguns milhões de profissionais da educação e outros trabalhadores. Explicar que educação é direito social e dever do Estado. E que tudo isso é muito diferente de poder sair para tomar uma cerveja no bar da esquina, “direito” que só existe nos corações mais boêmios e dos que podem pagar por isso.

Priscila Cruz, presidente-executiva da coalizão empresarial Todos pela Educação, afirmou em entrevista ao Estadão que “O Brasil vai se arrepender de ter optado por uma reabertura fora de ordem”. Ela entende que manter as escolas fechadas gera um prejuízo ainda maior do que manter bares e shoppings com as portas abaixadas. Este é um problema que também aflige o diretor-executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne, para quem “A retomada deve se dar o quanto antes e temos que discutir de que forma, pois corremos o risco de retomar essa discussão apenas em 2021 e ficar sem aula no ano que vem também”.

Antes de tratar escolas, bares e shoppings como uma coisa só, os defensores da reabertura deveriam contar ao seu público que a “normalidade” econômica de fato depende de as escolas públicas poderem voltar a receber os filhos dos trabalhadores. A reabertura das escolas é condição necessária para uma reabertura plena do comércio, da indústria e dos serviços. A ordem, aqui – e nisto concordo com Priscila Cruz –, importa muito.

No Brasil, reabrir escolas significa devolver cerca de 30% da população ao transporte público e ao comércio e serviços nos entornos escolares. Isso sem contar a massa de pessoas adultas que estão cuidando de crianças e adolescentes em casa, e que, com escolas reabertas, poderiam voltar às suas rotinas de trabalho. Um problema dessa magnitude não admite a insinuação leviana de que a população fora da escola, em vez de estudar, estaria se esbaldando em shoppings, praias e bares. Até onde se sabe, a decisão de manter as escolas fechadas não tem a ver com o estímulo à vadiagem, mas com a proteção da vida.

Em vez de moralizar o debate para se desviar das premissas, por que não explicar o que é que se entende por “priorizar”? Se for uma reabertura imediata ou incondicional, as escolas provavelmente continuarão sem alunos, pois as comunidades escolares, se não estão imunizadas contra o novo coronavírus, estão muito bem vacinadas contra os “especialistas” em educação que as tomam por imbecis. Mas se a prioridade for qualificar o debate e criar condições para reabrir as escolas, será preciso entender os problemas e enfrentá-los em uma lógica de solidariedade e de diálogo com as comunidades escolares. E aceitar que nenhuma adesão massiva à reabertura se dará de hoje para amanhã.

Além de objetivas – adequado controle da pandemia, prédios e equipes escolares preparados, protocolos locais bem azeitados –, as condições necessárias para reabrir as escolas são também subjetivas – sensação de segurança, confiança nas autoridades e nos protocolos etc. Mas infelizmente tudo isso ainda está muito distante, tanto do debate público quanto das ações concretas das redes de ensino.

Embora os discursos em prol da reabertura não tenham alterado a percepção de insegurança das pessoas, a sua leviandade também não passou incólume das críticas. Houve algum recuo. Priscila Cruz, por exemplo, em artigo bem mais ponderado assinado com Olavo Nogueira Filho, passou a afirmar que “a relutância da população em relação ao retorno, revelada em pesquisas de opinião, é compreensível”, e que “a premissa básica para uma reabertura segura é o controle da pandemia”.

Os autores ainda insistem na crítica à partidarização das decisões dos prefeitos e à priorização de bares e shoppings (“Como não questionar isso?”), mas já reconhecem que a equação “possível” da reabertura das escolas é também “difícil”. Enquanto eles suavizam a prepotência, outros intensificam a baixaria e se abraçam ao negacionismo mais chulo. Já deveríamos ter aprendido que um debate público rebaixado não tem piso térreo e nem limite inferior.

Em entrevista a Laura Mattos, o diretor do Colégio Bandeirantes, tradicional escola privada da capital paulista, criticou o prefeito Bruno Covas por ter adiado para novembro a decisão sobre a reabertura das escolas na cidade de São Paulo. Mauro Aguiar tratou o prefeito (e ex-aluno do Bandeirantes) como um menino travesso, comparando-o a Mario Covas, que “não adiaria o retorno como o neto tem feito”. Em resposta, o prefeito de São Paulo se disse triste por “ver um diretor de escola contando em um jornal o que o pai ou a mãe de um aluno falava sobre ele”; “não tenho medo de cara feia”. Eis o nível da discussão.

Controvérsias científicas

A presunçosa constatação de que as análises críticas à reabertura incondicional das escolas se fundamentam em trabalhos científicos amplamente refutados já virou clichê. Tal argumento sinaliza uma profunda incompreensão do papel da controvérsia na construção da ciência, pois não é incomum que resultados de pesquisas científicas sejam refutados diversas vezes até que se produza um corpo de evidências que explique adequadamente um conjunto de fenômenos.

Mas a refutação dos resultados de uma pesquisa, por óbvio, não pode ser feita por platitudes à la Jair Bolsonaro. O discurso científico nasce da controvérsia, se esforça o quanto pode para domar as incertezas e é sempre portador de certezas provisórias – que, apesar disso, são sempre lastreadas em teorias, métodos e procedimentos controlados. É isso o que impede que a ciência – que também não é neutra ou desinteressada – seja banalizada ao nível da mera “opinião” ou das certezas imutáveis que nutrem o discurso conservador.

Outro erro crasso cometido pelos arautos da reabertura é afirmar que apenas especialistas da área da saúde (mais precisamente: médicos) estariam aptos a opinar sobre protocolos de reabertura de escolas. Se assim fosse, o mesmo raciocínio poderia ser usado para afirmar que os vários advogados, economistas e administradores autointitulados “especialistas em educação” também não estão aptos a palestrar sobre gestão escolar, formação docente e processos de aprendizagem, como fazem cotidianamente.

Além de desprezo pela pesquisa educacional, esses atores também exibem uma profunda incompreensão sobre como a ciência feita hoje ataca problemas complexos: com abordagens interdisciplinares. Os médicos-pesquisadores precisam dos educadores para desenhar protocolos de reabertura, pois não entendem como funcionam as escolas e as políticas educacionais. Já nas comunidades escolares, o conhecimento é incompleto pelo lado dos protocolos da saúde e dos procedimentos da atenção primária.

O mesmo tipo de esforço, aliás, deveria pautar as ações da administração pública, mas quantas secretarias de educação e de saúde estão trabalhando juntas, por exemplo, para empenhar os R$ 454,3 milhões que o Ministério da Saúde transferiu aos municípios e ao Distrito Federal para ações de segurança sanitária e de prevenção à Covid-19 nas escolas públicas (Portaria MS n. 1.857/2020)? Quantas unidades escolares foram visitadas por equipes de saúde para o desenvolvimento de protocolos sanitários locais? Que ninguém espere reverter a sensação de insegurança nas escolas sem políticas intersetoriais robustas, sem informação qualificada e sem a construção coletiva de protocolos locais. Controlar a pandemia é só o primeiro passo.

A relevância e a magnitude dos riscos de infecção nas escolas são questões científicas em aberto; e que, por isso mesmo, precisam ser tratadas com o mínimo rigor pelos que se reivindicam especialistas. Assegurar que os “riscos de infecção, de óbito e de chance de as crianças transmitirem para os adultos são pouquíssimo relevantes”, como fez Viviane Senna, é coisa séria. Em outro desserviço para o debate público, o infectopediatra Marcelo Otsuka declarou à Veja que “Quando as medidas sanitárias são respeitadas, o risco de contágio é infinitamente menor nas escolas do que em shoppings e bares”. Ainda que por força de expressão, dizer que um fenômeno palpável é “infinitamente menor” do que outro é sinal de amadorismo.

Em nota, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) aponta “que ainda há lacunas no conhecimento da dinâmica de transmissão do SARS-CoV-2, o que limita a capacidade de se antecipar com precisão os riscos associados à reabertura das escolas”. Ao contrário de Senna e Otsuka, a SBP não tenta escamotear a controvérsia:

“O fato de grande parte das crianças manifestar formas assintomáticas da doença provavelmente reduz as chances de que transmitam de forma intensa o vírus quando infectadas, ao contrário do que ocorre com os pacientes sintomáticos. Isso provavelmente se deve ao fato de o contágio estar relacionado à presença de mecanismos que contribuem para a infectividade, como coriza, tosse, espirros, vômitos e outras alterações clínicas, frequentes em adultos, mas que não estão presentes na maior parte dos casos pediátricos. Por outro lado, como são assintomáticas, em sua maioria, podem contribuir para a circulação do vírus na comunidade.”

A mesma Viviane Senna que tentou indicar um diretor do Instituto Ayrton Senna para ministro da educação de Jair Bolsonaro também garante que a reabertura das escolas não agrava a pandemia. No entanto, as relações de causalidade entre a reabertura massiva de escolas e o agravamento da pandemia ainda estão sendo investigadas e são ponto de controvérsia, especialmente nos países com um controle limitado da dinâmica de transmissão da Covid-19 e sem protocolos sanitários escolares minimamente convincentes. É o caso do Brasil.

Afirmar que a OMS, a Unesco e o Unicef recomendam que a reabertura das escolas deve ser uma prioridade para os países não quer dizer que essas organizações preconizem a reabertura imediata. “Até a cautelosa Organização Mundial da Saúde é a favor da volta às aulas presenciais, recomendação seguida em diversos países”, estampou a capa de Veja de 23/09. Já o comunicado à imprensa feito pelo Unicef, a pretexto da divulgação da mesma recomendação, saiu com o seguinte título: “‘Reabertura segura das escolas deve ser prioridade’, alertam Unicef, Unesco e Opas/OMS”. A omissão do adjetivo “segura” na capa de Veja dá a entender que a OMS recomenda uma reabertura incondicional das escolas. E basta ler as recomendações para perceber do que realmente se trata: criar condições e minimizar riscos.

De nada adianta a imprensa criticar o negacionismo de Bolsonaro & Cia. e licenciar a desinformação quando os orgulhosos porta-vozes das políticas educacionais baseadas em evidências decidem pressionar por uma reabertura de escolas em condições inseguras. A frivolização do debate público só não teve consequências mais graves para a segurança e para a saúde da população porque os arautos da reabertura superestimam a capilaridade da imprensa e a própria capacidade de influenciar a opinião pública.

Seria bom se eles utilizassem os generosos espaços midiáticos a que têm acesso para elevar o nível do debate que eles mesmos atiraram ao rés-do-chão nos últimos dois meses. Mas eles são tão incapazes de entender a complexidade dos problemas enfrentados pelas comunidades escolares, quanto incapazes de se solidarizar com elas. Ironicamente, são organizações como o Instituto Ayrton Senna que tentam ensinar “empatia” e “resiliência” a crianças e adolescentes em escolas públicas.

Com todo o respeito ao jornalismo sério, quem acredita que a imprensa tenha a capacidade de, em poucos meses, convencer a maioria da população brasileira de que só é seguro reabrir escolas quando houver vacina? Antes de confiar tanto na capilaridade da imprensa, seria melhor que os defensores da reabertura dessem uma olhada no que circula nos grupos de WhatsApp das escolas. Após dois meses de jornalismo declaratório desbragadamente favorável à reabertura, as pesquisas de opinião seguem inalteradas. As pessoas continuam inseguras e têm razões para isso.

A pauperização das escolas e a inépcia estatal no controle da pandemia já são fardos pesadíssimos sobre as unidades escolares, e o rebaixamento do debate não melhora a confiança das comunidades nos protocolos sanitários de retorno. Não haverá horizonte de escolas reabertas sem diálogo, enfrentamento conjunto dos problemas e responsabilidades compartilhadas para a construção de saídas coletivas.

Fernando Cássio é doutor em Ciências e professor da UFABC, onde integra o grupo de pesquisa “Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola” (DiEPEE). Participa da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

Le Monde Diplomatique

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo