Coronavírus: Reduzir salários unilateralmente é inconstitucional

José Geraldo de Santana Oliveira*

No instigante poema O Corvo — The Raven, no original — que consagrou seu autor, Edgar Alan Poe, o verdadeiro precursor de contos policiais, essa emblemática ave, que invadiu a residência de um amante em profundo desespero pela morte de sua amada Lenora — à meia noite que apavora, conforme belíssima tradução de Machado de Assis —, a todas as vãs perguntas que lhe foram dirigidas pelo seu involuntário anfitrião, respondeu com o estribilho “nunca mais” — never more.

No Brasil que emergiu do golpe do impeachment de 2016, as entidades empresariais, seus representantes e seus ideólogos, como que a grosseiramente parodiar o citado corvo — claro, sem o talento e as ricas metáforas de Edgar Alan Poe — e com vis propósitos, a tudo respondem com o estribilho “flexibilização de direitos trabalhistas”.

Segundos esses falsos corvos, crescimento econômico e investimento, combate ao desemprego, preservação de empregos, confiança no país dependem exclusivamente da total flexibilização dos direitos trabalhistas. Com esse estribilho, conseguiram reduzi-los ao patamar anterior à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — 1º/5/1943 —, por meio das Leis Ns. 13.429/2017, 13.467/2017, 13.871/2019, 13.876/2019.

Agora, querem colher da comoção social que atemoriza o mundo, a pandemia do Covid-19 (novo coronavírus), para, em plena luz do dia — não apenas à meia-noite que apavora —, mais uma vez, fazer valer esse estribilho e reduzir a jornada de trabalho e os salários de todos os trabalhadores, fazendo-o sob a alegação de que essa redução é imperiosa para preservar empregos e manter a saúde das empresas.

Muito embora digam o contrário, esses tecelões de discurso incorporam as recomendações do diabo quanto às virtudes que devam adotar, patentes no conto de Machado de Assis, A Igreja do Diabo:

“Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada”.

Invocam, como fundamento para aplicar mais essa fraude que, com certeza, se transformará em colossal tragédia social, os Arts. 501 e 503 da CLT, que mantêm a redação original, que remonta a 1º de maio de 1943.

Os referidos Arts. assim dispõem:

“Art. 501 – Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

§ 1º – A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.

§ 2º – À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substâncialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.

[…]

Art. 503 – É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região.

Parágrafo único – Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos”.

Ao invocar o Art. 503 da CLT, esses inescrupulosos aproveitadores de caos social fazem ruir o seu surrado discurso de que a CLT está ultrapassada, em flagrante descompasso com os tempos modernos, pois, como já dito, a redação invocada como solução para o momento é de 1943.

Para esses inimigos do povo, os dispositivos da CLT que protegem os trabalhadores acham-se caducos e superados. Já os que os prejudicam, como o Art. 503, mantêm-se atualíssimos e em pleno vigor. Quanta desfaçatez — mais apropriado seria dizer velhacaria!

Consoante a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), esse Art. da CLT foi revogado pela Lei N. 4923/1965 — Processo RR N. 1156-96.2011.5.04.0811:

“[…]

O art. 503 da CLT, que previa a redução dos salários em caso de força maior, sem contrapartida, foi REVOGADO pela Lei nº 4.923/1965, porque posterior à sua edição, que para a mesma situação descrita exige a redução salarial, proporcional à redução da jornada, mediante prévio acordo com a entidade sindical representativa dos seus empregados (art. 2º). E que a manutenção do emprego não é contrapartida exigida pela lei. A manutenção do emprego é a finalidade da lei, obtenível, no entanto, pelo expediente específico nele previsto, que é a redução proporcional da jornada […] Recurso de revista conhecido por violação do art. 7º, VI, da Constituição Federal e provido. (RR-1156-96.2011.5.04.0811, Relator Ministro: Alexandre de Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 22/04/2015, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/04/2015).

O Art. 2º, da citada Lei N. 4923/1965, dispõe:

‘Art. 2º – A empresa que, em face de conjuntura econômica, devidamente comprovada, se encontrar em condições que recomendem, transitoriamente, a redução da jornada normal ou do número de dias do trabalho, poderá fazê-lo, mediante prévio acordo com a entidade sindical representativa dos seus empregados, homologado pela Delegacia Regional do Trabalho, por prazo certo, não excedente de 3 (três) meses, prorrogável, nas mesmas condições, se ainda indispensável, e sempre de modo que a redução do salário mensal resultante não seja superior a 25% (vinte e cinco por cento) do salário contratual, respeitado o salário-mínimo regional e reduzidas proporcionalmente a remuneração e as gratificações de gerentes e diretores’”.

Como as duas normas são de igual hierarquia e regulam a mesma matéria, por força do Art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a mais recente, no caso a Lei N. 4923/1965, revoga a anterior, o Art. 503 da CLT, sendo assim declarado pelo TST, conforme excerto da Ementa do Acórdão retrotranscrito.

Todavia, ainda que se conceda que a Lei N. 4923/1965 não revogou o Art. 503 da CLT, como pugnam alguns doutrinadores a serviço dos interesses empresariais, aplicando-lhe o que preconiza o § 2º do Art. 1º da LINDB (“§2° A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”), não há mais o que se discutir quanto à revogação do Art. 503 da CLT a partir da promulgação da Constituição Federal (CF) em 5 de outubro de 1988, por força do que preconiza o seu Art. 7º, VI.

O Art. 7º, caput e inciso VI, da CF, dispõe:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[…]

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.

Colhe-se do comando constitucional, inserto no inciso VI do Art. 7º da CF, a possibilidade de redução salarial com a inarredável condição de que decorra de autorização concedida em convenção ou acordo coletivo de trabalho.

Importa dizer: não é mais possível por ato arbitrário da empresa e/ou mediante autorização individual.

Portanto, eventual tentativa de aplicação do Art. 503 da CLT, ainda que venha sob manto de autorização de medida provisória, sem se considerar a obrigatoriedade de celebração de convenção ou acordo coletivo, caracteriza-se como nula de pleno direito, por afrontar a ordem constitucional.

O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do recurso extraordinário (RE) 590415/2015, fixou tese vinculante, considerando nula qualquer renúncia individual de direito e, ao reverso, válida a que decorrer de negociação coletiva firmada com as respectivas entidades sindicais de trabalhadores.

O voto do ministro relator, Roberto Barroso, nesse processo, aprovado pelos demais ministros, assevera:

“I. A JURISPRUDÊNCIA

3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual.

[…]

II. LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE DO EMPREGADO EM RAZÃO DA ASSIMETRIA DE PODER ENTRE OS SUJEITOS DA RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO

8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador.

Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma — produzidas pelo Estado — desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente.

Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias.

9. Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais. Essa mesma lógica encontra-se presente no art. 477, §2º, da CLT e na Súmula 330 do TST, quando se determina que a quitação tem eficácia liberatória exclusivamente quanto às parcelas consignadas no recibo, independentemente de ter sido concedida em termos mais amplos.

10. Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca – ao menos não com a mesma força – nas relações coletivas”.

Não obstante o Item 10, retrotranscrito, aludir apenas ao momento de rescisão de contrato, que representa a ruptura da relação empregatícia, as assertivas nele contidas aplicam-se também, e com muito mais força assimétrica, na sua celebração e na sua execução, posto que o empregado se defronta com o seguinte dilema: ou aceita as condições ditadas pela empresa, ou fica sem o emprego.

Ademais, o TST, lastreado nos valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, da CF), na valorização do trabalho humano (Art. 170, caput, da CF), e no primado do trabalho (Art. 193, da CF), firmou jurisprudência no sentido de que negociação coletiva com vistas à redução salarial, ainda que temporária, sem contraprestação de benefício aos trabalhadores, não possui valor jurídico, por importar renúncia a direito indisponível, como se colhe do excerto de Ementa de Acórdão, abaixo transcrita:

“A jurisprudência pacífica desta Corte caminha no sentido de que a redução salarial prevista no art. 503, da CLT, e no art. 7º, VI, da Constituição Federal, só é lícita se corresponder a uma compensação em benefício do empregado, sob pena de caracterizar-se renúncia de direito indisponível” (RR-1001658-51.2013.5.02.0472 Data de Julgamento: 16/12/2015, Relator Desembargador Convocado: Cláudio Armando Couce de Menezes, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015)”.

Ante esses fundamentos, os sindicatos precisam ficar atentos a possíveis manobras empresariais com a vistas à redução salarial de seus empregados em qualquer circunstância e com maior ênfase nesse momento de tragédia social.

Toda e qualquer tentativa com essa finalidade, se revestida de ato unilateral e/ou sob o falso manto de acordo individual, deve ser prontamente rechaçada por meio de notificação extrajudicial, amparada no Art. 7º, VI, e 8º, III e VI, da CF, e 726 do Código de Processo Civil (CPC), bem como na Orientação Jurisprudencial (OJ) 392 do TST.

Afinal, os tempos atuais são de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, parafraseando Bertolt Brecht, na sua imortal lição: “Nada é impossível de mudar”.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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