CPI da Covid já tem provas para incriminar Bolsonaro, diz professor da USP

Autor do “Diário da CPI”, do Estadão, Mário Scheffer diz que a expectativa, visibilidade e repercussão, turbinadas pelas redes sociais, sinalizam que o relatório vai apontar para a responsabilização do presidente e de agentes públicos

São Paulo – A CPI da Covid já reuniu provas capazes de incriminar futuramente o presidente Jair Bolsonaro e outros agentes públicos. A opinião é de Mário Scheffer, especialista em saúde pública, professor da Faculdade de Medicina da USP e autor do blog Diário da CPI, no portal do jornal O Estado de S. Paulo. “Parece que já existem provas suficientes para futura incriminação de agentes públicos e do Presidente. Mas alguns juristas pensam que as relações entre causa e efeito ainda precisam ganhar mais consistência”, disse o professor à RBA.

Segundo ele, será relevante o levantamento aprofundado que a CPI encomendou a juristas e pesquisadores da área do Direito, que será liderado pelo professor Salo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O objetivo do estudo é relacionar os crimes que podem ser imputados a Bolsonaro por ações e omissões no combate à pandemia da covid-19. É o caso de desinformação e escolhas administrativas deliberadamente equivocadas. E também que penas podem ser atribuídas ao presidente e outras autoridades consideradas responsáveis pelo agravamento da crise sanitária. O pedido aos especialistas foi aprovado na sessão da última quinta-feira (11).

Confira a entrevista:

Como você avalia os quase dois meses de trabalhos da CPI?

O roteiro da CPI é ambicioso; uma colcha de retalhos com quase 20 pontos para investigação. Inclui a questão da falta de vacinas e de  testes até questões bem específicas, como o TrateCov (o aplicativo pró-cloroquina do Ministério da Saúde). E também a pouca atenção às populações indígenas e as falhas no auxílio emergencial para desempregados.

Os requerimentos que deram origem à CPI, principalmente o de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), trazemagor uma lista do que o governo Bolsonaro deveria ter feito e não fez e o oposto: não seguiu orientações científicas, não minimizou perdas e nem protegeu a população; incentivou aglomerações, boicotou medidas de isolamento social, promoveu tratamento inútil com cloroquina, pago com dinheiro público, e deixou faltar vacinas, testes, leitos de UTI, medicamentos para intubação e oxigênio. Além disso, nada fez para impedir o colapso do sistema de saúde e a tragédia localizada de Manaus.

Já os governistas, em seus requerimentos, trouxeram o pressuposto de que ocorreram, em estados e municípios, desvios de recursos federais voltados ao combate à covid-19. O que de fato ocorreu, por exemplo, na montagem de alguns hospitais de campanha. Mas é nítido que a intenção aqui é tumultuar os trabalhos e desviar o foco da CPI. Não tem nada voltado à apuração de corrupção.

A CPI, porém, tem uma contradição. Apura os desmandos de um passado recente para tentar convencer a Justiça a proferir condenações no futuro. Mas pouco tem compromisso ou capacidade de reverter o que está acontecendo agora. Enquanto corre a CPI da Covid, mais de uma morte por covid ainda é registrada a cada minuto no país.

Como tem sido a atuação da comissão nesses quase dois meses?

A CPI tem se concentrado em provar o atraso deliberado na aquisição de vacinas e a promoção absurda da cloroquina. E outro ponto que tem a ver com essas duas linhas; a existência de um “gabinete paralelo”, que se opunha  às vacina, apostava na cloroquina, era contra medidas preventivas populacionais a favor  da imunidade de rebanho, dentre outras barbaridades.

Há pontos importantes que estão ficando de fora?

Há pontos que não foram explorados, mas há documentos entregues à CPI que são reveladores. Por exemplo, a falta de testagem. Fica claro o abandono dessa política pelo governo federal. Existe uma forte associação entre o volume de testes realizados e o controle da transmissão do coronavírus nos países. No fim do ano passado a pesquisa Pnad Covid-19, do IBGE, mostrava que pouco mais de 10% da população tinha feito algum teste de covid. Além da baixa cobertura, as pessoas negras e pardas e aquelas com menor renda familiar tiveram muito menos acesso a testes do que o restante da população.

Também há documentos requisitados pela CPI que trazem, por exemplo, atas de reuniões do Ministério da Saúde que deliberaram contra a quarentena e o isolamento social. Isso tudo, os documentos (há mais de 800 arquivos recebidos pela comissão,) podem ser cruzados com os depoimentos, com quebras de sigilo e outras medidas da CPI.

O desenrolar dos trabalhos tem trazido novidades?

Uma boa novidade é que a Universidade, por meio dos pesquisadores, será ouvida. Eu destaco dois  estudos que serão apresentados e utilizados pela CPI: o estudo dos professores Deisy Ventura, Fernando Aith e outros autores, da Faculdade de Saúde Pública da USP. Com base em atos normativos, os pesquisadores demonstram que o governo se empenhou na  disseminação do vírus, por priorizar o retorno do comércio e atividades econômicas. Também um estudo coordenado pelo professor e epidemiologista Guilherme Werneck, da UFRJ e UERJ, sobre excesso de mortes e as mortes que poderiam ter sido evitadas. Este trabalho será apresentado na CPI pela médica e ativista dos direitos humanos Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.

A CPI tem envergadura para derrubar Bolsonaro?

A comissão é um espaço importante de revisão, sistematização de informações e de apuração dos crimes de saúde pública cometidos pelo governo Bolsonaro. Mas tem importantes limitações: pode investigar fatos, mas não pode julgar nem punir ninguém; pode obter esclarecimentos, apontar a responsabilização de agentes públicos e propor indiciamentos que serão ou não, depois, acatados pela Justiça.

Em seu relatório final, a CPI da Covid pode sugerir ao Ministério Público Federal o indiciamento inclusive de Bolsonaro. A atual PGR (Procuradoria-Geral da União) dificilmente irá aprofundar a investigação ou oferecer denúncia ao STF (Supremo Tribunal Federal).

A CPI deve aumentar o desgaste do governo, mas dificilmente terá  impeachment como consequência direta. Seja porque o presidente da Câmara e o Centrão estão fechados com Bolsonaro, seja porque, para parte da oposição, parece que quanto menos vacinas e quanto mais mortes até o ano que vem, melhor seria para a disputa eleitoral .

Impressionante que os  jogos políticos não desaparecem, mesmo diante do imperativo da racionalidade, da gravidade da pandemia e de meio milhão de mortos. Restará talvez recorrer aos tribunais internacionais, acompanhar possíveis novos entendimentos do STF, pensar que a mobilização popular – que tem ganhado corpo – possa  reverter essa perspectiva desanimadora.

Essa CPI inovou em algo?

O Executivo tem um forte controle da agenda legislativa, não só na Saúde. Senado e Câmara, majoritariamente alinhados com Bolsonaro, estiveram omissos no curso da pandemia. Então, o primeiro ponto positivo é que a CPI da covid empurrou a crise sanitária para o Legislativo, que não pode mais deixar de representar o povo brasileiro nesse momento, nessa tragedia, que é o tema hoje de maior interesse nacional

Mas é uma CPI tardia. Embora seja um direito da minoria parlamentar, só foi instalada pela decisão do STF, em abril, pois o presidente do Senado, alinhado com Bolsonaro, e a maioria dos senadores, não queria sua instalação.

Pode ser mais uma CPI que “acabe em pizza”?

Na história das CPIs, os desfechos são muito ruins. Eu acompanhei a CPI dos Planos de Saúde, da Câmara Federal, há mais de 15 anos, que ao fim propôs apenas mudanças cosméticas na legislação e têm lá as digitais dos empresários da saúde suplementar. Tem muitas CPIs inconclusivas, algumas são uma piada, como a CPI do Incra e da Funai, também da Câmara, que por pressão do agronegócio,  indiciou pessoas por “favorecimento” a povos indígenas, com demarcações de terras. Há exceções: a CPI de Brumadinho, do Senado, em 2019, sugeriu  o indiciamento de mais de 20 pessoas envolvidas no rompimento criminoso da barragem da Vale.

A CPI da Covid pode não acabar em pizza. Apesar do digamos, assim, passado não tão glorioso de alguns membros da CPI, é imensa a expectativa social criada. Nunca uma CPI teve essa visibilidade e repercussão turbinada pelas redes sociais. E pelas evidências que estão sendo produzidas, o relatório final deve sim, apontar para a responsabilização.

Rede Brasil Atual

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