Depois de excluir não-violência de livros didáticos, governo recua mais uma vez

São Paulo – O Ministério da Educação divulgou, no dia 2, nova versão do edital que orienta a produção de livros escolares para o Brasil. Foram excluídos trechos que orientavam as editoras a utilizar ilustrações de forma a retratar “a diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país”, a exemplo da promoção das culturas quilombolas e dos povos do campo.

Assim, as ilustrações de um livro não precisam mais, por exemplo, mostrar negros, brancos e índios. Os tempos em que somente crianças brancas apareciam nas figuras podem voltar… Ou não: no fim da tarde desta quarta-feira (9), o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, divulgou que tornou sem efeito a medida publicada no dia 2, demarcando mais um recuo no governo que tem se notabilizado por anunciar medidas e voltar atrás, como foram os casos neste início de ano do aumento do IOF; da instalação da base norte-americana em terras brasileiras; e o recuo na suspensão da reforma agrária.

De qualquer modo, quando o ministro da Educação recuou, o debate na sociedade já estava lançado.

Além disso, a publicidade nos livros didáticos, antes proibida, passaria a ser permitida. Isso significa que se, hipoteticamente, um empresário racista quiser patrocinar um livro “didático”, pode. A publicidade em material didático é proibida por resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente por ser considerada abusiva e para que produtos destinados ao ensino não tenham influência de poder econômico.

Reportagem do jornal Folha de S.Paulo identificou pelo menos 10 alterações no novo edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2020. O documento oficial é a referência das editoras na produção das obras destinados ao ensino fundamental do 6º ao 9º ano e contempla ainda livros literários.

Todas as publicações serão escolhidas com base nessa nova versão por uma comissão técnica que define uma lista a ser apresentada a escolas e redes de ensino, para optarem pelos títulos a adotar.

Para a escritora e professora de Filosofia Marcia Tiburi, notícias como essa podem deixar as pessoas “um pouco” chocadas. “Mas são absolutamente coerentes com a estupidez do governo, com o fascismo, com o processo de desmontagem da consciência da compreensão de mundo democráticas”, afirma. “Infelizmente, se o governo Bolsonaro continuar sendo coerente, não haverá mais país.”

Retirar da base social o lastro de entendimento do que é a sociedade é um dos objetivos do governo Bolsonaro, diz Marcia Tiburi. “Precisam destruir todas as bases democráticas, todos os valores, o sentido da democracia. Isso é coerente com o autoritarismo, com a maldade diabólica que eles estão plantando no Brasil há bastante tempo. Acontece é que agora ganharam a eleição.”

Pesquisa sem fonte

Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, os prejuízos causados na redação e, principalmente, nas omissões do novo edital são gravíssimos. “A escola deve reproduzir bons valores da sociedade e estimular o enfrentamento daquilo que é ruim e equivocado”, avalia.

O PNLD, que ao longo dos anos foi se tornando cada vez mais rígido na escolha dos livros, desclassificava também obras que tivessem erros em mais de 10% das páginas. Esse item foi retirado do novo edital.

Outro ponto criticado por Daniel Cara: não será mais necessário que os materiais tenham referências bibliográficas. Ou seja, será possível utilizar conteúdos que não sejam baseados em pesquisas, já que não há necessidade de citação da origem do conteúdo.

“Quem não tem a quem citar prefere não ter essa obrigação”, observa. “O governo Bolsonaro, a partir de seus formadores de opinião, não considera o conhecimento científico. Isso, por si só, é um equívoco. Pior é o fato de estimular essa prática nos livros didáticos, estimulando essa postura por parte de professores e alunos.”

Mulheres na mira

O compromisso com a agenda da não-violência contra as mulheres também havia sido retirado do novo edital. Na versão anterior, a orientação era de que as obras promovessem “positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, valorizando sua visibilidade e protagonismo social, com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não-violência”.

A alteração, agora suspensa, ocorre num momento em que a violência contra as mulheres está em ascensão. Em 2018, o Ligue 180 registrou e encaminhou 92.323 denúncias – 25,3% a mais do que no ano anterior. O assassinato de mulheres, ou feminicídio, também cresceu, 63%, passando de 24 assassinatos entre julho e dezembro de 2017 para 39 em igual período de 2018. O dado é considerado subnotificado, diante dos casos que não são declarados.

Daniel Cara considera essa mudança de extrema gravidade num país que vê os casos de ataques ao público feminino crescer ano a ano. “Tirar a agenda da não-violência contra a mulher demonstra que o governo Bolsonaro não apenas não liga para esse problema, como também não compreende a função social da escola”, destaca. Assim que assumiu, o novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, extinguiu a secretaria do MEC responsável por ações de diversidade.

Por outro lado, contrariando a postura declarada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, o edital manteve a orientação para que os livros estejam livres de preconceitos sobre orientação sexual ou gênero. “Esse é o único ponto positivo do edital do PNLD, mas não é nada além de cumprir a lei”, afirma Cara. “Nenhum governo pode reproduzir preconceitos.”

A nova versão do edital pode ser conferida no site do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão do MEC.

Rede Brasil Atual

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