Anna Gicelle Garcia Alaniz
Nos últimos dois anos, a cada fim de semestre, surtos de pânico acometem o corpo docente das instituições particulares de ensino superior. É que esse é o período de "tiro ao doutor". É o momento em que as instituições demitem o "excedente" de mão-de-obra em nome da "eficiência" e da redução de custos.
Sabemos que o MEC exige um número determinado de mestres e doutores para aprovar e reconhecer a abertura de cursos superiores nas instituições privadas. A nota que as comissões de reconhecimento atribuem aos novos cursos está diretamente relacionada com o nível de qualificação do corpo docente. O que não sabemos é por que o MEC se omite em relação ao destino desses profissionais após o reconhecimento desses cursos.
Estamos assistindo impotentes ao aviltamento da condição dos professores universitários devido ao excesso de profissionais no mercado e devido à mercantilização do ensino superior. Houve nos últimos anos uma proliferação inconsistente de instituições privadas de grandes redes, cujo único objetivo é o lucro e que se destinam a absorver estudantes de média e baixa renda, sem acesso à universidade pública. Os donos e administradores dessas instituições "desconhecem" os mais básicos princípios da pedagogia e oferecem um tipo de ensino que acreditam "até bom demais para seus alunos de segunda e terceira classe".
Nesse contexto, os docentes têm seus direitos trabalhistas flagrantemente desrespeitados e sua liberdade de ação tolhida por estúpidas normas internas, que rebaixam a qualidade das aulas e humilham profissionais de primeira linha. E, normalmente, após o reconhecimento do curso por parte do MEC, começa uma ação sistemática de descarte dos docentes com titulação de doutor, para baratear os custos da folha de pagamento. Em seu lugar, mestres e especialistas assumem e se prestam a todo tipo de humilhações para não perder seus empregos.
Desculpas esfarrapadas
Uma dessas conhecidas redes de ensino, que recentemente se espalhou pela região metropolitana de Campinas e cobriu várias cidades com seus outdoors – que são uma pequena amostra de seu marketing agressivo –, é um exemplo vívido do que estamos enfrentando. Entrando no mercado com pretensões megalômanas, essa instituição mantém um preço competitivo, penalizando seu corpo docente e a qualidade de seus cursos. O período de quatro horas-aula encerra-se às 22 horas para diminuir o adicional noturno dos docentes; a extensão letiva dos cursos diminui a cada ano, e atividades totalmente estapafúrdias são consideradas como horas-atividade para atender aos critérios elásticos do MEC; normas de "qualidade" são desculpas esfarrapadas para a padronização das aulas, retirando toda a capacidade de iniciativa dos docentes e preparando o caminho para a implantação dos sistemas de ensino a distância, que visam a total eliminação dos docentes da folha de pagamento.
Por essas e outras e devido ao seu marketing absolutamente agressivo, essa rede de ensino semeou o pânico em instituições particulares mais tradicionais, com décadas de serviços prestados à comunidade. Para se conservar no mercado, essas instituições mais antigas passaram a diminuir sistematicamente seus custos e têm procedido demissões coletivas de doutores que chegam a números assustadores, que ultrapassam a centena de profissionais por instituição. Essas demissões atingem docentes com muitos anos de serviço e conhecida reputação pedagógica, que estão sendo jogados em um mercado de trabalho quase inexistente, uma vez que os anúncios de jornais solicitando mestres e doutores visam apenas a montagem de cursos para reconhecimento pelo MEC e não uma relação empregatícia honesta e duradoura.
A enganação
Uma das áreas de ensino que mais prolifera no momento é a da, assim denominada, gestão de negócios. Cursos como administração e ciências contábeis, que no passado eram apenas encontrados em escolas de comércio, adquiriram status de ensino superior apenas ao incorporar conteúdos humanísticos em suas grades curriculares. Hoje, para baratear seus custos, enganam o MEC eliminando essas matérias humanísticas e "ajustando" seu conteúdo de maneira pífia em outras matérias que deveriam ser correlatas. É o caso dos cursos de ciências contábeis que eliminam a disciplina de cultura brasileira, incorporando-a à de economia em nome desses ajustes curriculares.
O aluno oriundo da rede pública de ensino, aqui em São Paulo, já vem prejudicado por ter sido vítima da famigerada "progressão continuada", que a mídia insiste em ignorar. Os estudantes chegam ao ensino superior com deficiências atrozes de conteúdo básico, quando não completos analfabetos funcionais. Nós, que ministramos as matérias de conteúdo humanístico, fazemos esforços sobre-humanos para suprir suas carências e conseguir que desenvolvam suas potencialidades para poder acompanhar as matérias mais técnicas.
Agora, que estamos sendo demitidos em massa, o que acontecerá com esses alunos? O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley já chegou e não foi necessário o uso da genética. Bastaram algumas gestões do PSDB para que uma geração inteira de jovens se transforme em profissionais-gama com diplomas de terceira categoria. Assim, os ricos continuarão cada vez mais ricos e os pobres agora têm sua ignorância reconhecida e sustentada por diplomas universitários assinados e reconhecidos pelo MEC.
A prova cabal do descalabro desse sistema é o exame realizado pela OAB para admitir em sua categoria os bacharéis recém-formados. O exame da Ordem reprova a maior parte dos alunos oriundos dessas novas redes de ensino, devido à baixa qualidade dos cursos. Índices de 10 a 17 por cento de aprovação contra os mais de 60 por cento das instituições mais tradicionais falam por si sós. Se houvesse exames isentos para todas as outras categorias profissionais, o quadro grotesco que se desenharia talvez acordasse nossas autoridades.
O que já aconteceu aqui em São Paulo é irreversível. Mas e o futuro? Até quando a mídia, o MEC e os tecnocratas vomitadores de estatísticas vão fingir que está tudo bem? Quem deve ser processado e responsabilizado por toda essa esbórnia? Que país queremos?
Anna Gicelle Garcia Alaniz é doutora em história social pela USP - artigo publicado na revista Caros Amigos, n.° 120, Março 2007. |
|
|