Educação pós-Bolsonaro

Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos* e José Isaías Venera**

Racismos, homofobia, sexismo. Outros preconceitos poderiam se juntar ao léxico que compõe a gramática inspirada no nazifascismo — o nazismo na Alemanha (1933-1945) e o fascismo na Itália (1922-1943) —, que se define por um ordenamento totalitarista da vida. No espectro brasileiro, o governo de Jair Bolsonaro canalizou as aspirações e práticas autoritárias, cujo efeito permanece mesmo depois de sua derrota nas urnas.

Uma foto expõe o racismo estrutural

Uma foto que mostra mãos negras apontando uma arma para ilustrar, no dia 26, post do Twitter do jornal O Estado de São Paulo, o Estadão, sobre o crime bárbaro em duas escolas da cidade de Aracruz, no Espírito Santo, expõe o racismo estrutural no Brasil. Foi um jovem branco, com roupa camuflada e suástica no braço, que disparou os tiros, deixando quatro mortos e 11 feridos. O pai dele recomendou em uma rede social a leitura do livro Mein Kampf, de Adolf Hitler. Esses eventos — crime, apologia ao nazismo, foto — integram uma gramática que ganhou força nos últimos anos, a eugenia social, que visa à eliminação dos ‘indesejados’ a fim de melhorar geneticamente a sociedade.

Os discursos não estão separados das práticas. A escolha da foto para o post pelo Estadão não poderia ser um erro, como alegou o próprio jornal ao substituir a imagem daquela publicação no mesmo dia (26). A escolha consciente ou inconsciente foi uma prática executada no automatismo que caracteriza o racismo estrutural — de associar crime a pessoas negras.

A naturalização da violência simbólica — os estereótipos reproduzidos — galvaniza percepções e práticas sociais. No texto que acompanha a foto do livro de Hitler, na postagem do pai do adolescente, a primeira frase é reveladora: “Ler é uma das chaves de expansão da consciência”. No livro, entre outros discursos: “Esse povo, continuando cada vez mais a degenerar-se pela mistura com os negros africanos, representa, na sua ligação com os objetivos da dominação mundial judaica, um perigo latente para a existência da raça branca na Europa”.

A violência estrutural organiza o imaginário social — hierarquiza a cor da pele superior, o sexo potente, a religião verdadeira e, assim, exclui o que foge ao padrão fabricado. O que está fora, na invisibilidade ou no enquadramento discursivo da ‘degeneração’, torna-se matável. O imaginário se cristaliza numa longa duração e marca a vida tanto quanto uma tatuagem. Presente na linguagem, inscreve-se na subjetividade, determina as escolhas, como a de uma foto, e dá forma e materialidade à violência, como os crimes cometidos.

De fato, a crescente violência motivada por discursos de ódio e desejos eugenistas não está desconectada das falas e práticas do, ainda, governo do presidente Jair Bolsonaro, que funciona como um catalizador desses ideais.

A exigência para que Bolsonaro não se repita

A exigência para que Bolsonaro (e o bolsonarismo) não se repita é a primeira de todas para a educação. Esse início — trocando Bolsonaro por Auschwitz — é a primeira frase do texto Educação após Auschwitz, do filósofo alemão Theodor Adorno, de origem judaica. O ensaio foi publicado em 1967, dois anos após a palestra de Adorno transmitida pela Rádio de Hessen, na qual o filósofo se queixava da pouca consciência existente a respeito das atrocidades — como o genocídio praticado na rede de campos de concentração controlados pelo Terceiro Reich —, o que revela que a “monstruosidade não calou fundo nas pessoas”.

Nesse enfrentamento, a disciplina de história, para Adorno, ganharia centralidade. E não seria diferente no Brasil. Dar relevo às práticas autoritárias e às crueldades praticadas ao longo da história do país — genocídios dos povos originários, escravidão, ditadura militar, negação da ciência, massacres etc. — passa também por problematizar as microrrelações (o que se repete dessa herança violenta no cotidiano) autoritárias reproduzidas diariamente, constituindo-se como violência reproduzida.

A educação problematizadora se faz ainda mais necessária. Os saberes disciplinares (português, matemática, geografia, química etc.) não se instituíram separados das relações de poder em diferentes períodos históricos. A escola que coloca sob rasura as estruturas que hierarquizam os valores e dão um ar de natureza às violências sociais — demasiadamente humanas e fabricadas — não se limitaria a reproduzir conteúdo e cristalizar papéis sociais. Oposto a uma educação problematizadora é uma escola asséptica (educação bancária para Paulo Freire), que isola os saberes e não os articula com o cotidiano da vida. A assepsia é a prática da cultura eugenista, cuja expressão maior foi o nazismo.

Racionalidade e a via da irracionalidade

Há um nexo causal entre desenvolvimento tecnológico e violência simbólica. Basta observar, no nosso tempo, a crise da verdade dos fatos diante das chamadas fake news — com apelos emocionais que se estruturam sobre bases racistas, xenofóbicas, sexistas ou homofóbicas. Certamente, essa crise não se limita aos exemplos mais grosseiros (fake news), mas está presente também nos espaços normatizadores da sociedade, como no exemplo da escolha da foto pelo Estadão. O que causa essa contradição (racionalidade x irracionalidade), Adorno nomeia de “véu tecnológico”. De um lado, o mundo digital resulta da racionalidade robótica; de outro, a natureza dos fluxos de conteúdos nas redes sociais prescinde da ciência, mesmo que para seu fluxo a racionalidade tecnológica seja imprescindível.

A irracionalidade encontra no “véu tecnológico” sua principal via de expressão. Não por acaso, as fobias sociais (xenofobia, homofobia, gordofobia…) apontam para a relação entre medo e ódio pelo outro. São afetos que mobilizam a ação.

A educação para a diferença

Uma escola que se abre para a diferença ensina o convívio com o diferente na instituição e em outros ambientes sociais. A instituição que valoriza a multiplicidade, compreende-se como única para todos, rompendo a dicotomia normal/anormal (ou puro/impuro). Ela inclui em seu currículo a experiência com a diferença: étnica, de gênero, de classe, de credo, entre outras. Isso leva a uma pedagogia da diferença, que exige do/a professor/a trabalhar na perspectiva de relação, na qual o/a aluno/a seja percebido/a, ouvido/a em um constante diálogo, na escuta que integra os processos de construção, próprios dos seres humanos. Educação em uma democracia passa por uma escola laica, inclusiva (surdos, sindrômicos…) e que reafirma o contato com a diferença.

Para que Bolsonaro — e a perspectiva excludente que ele representa — não se repita são necessários dois movimentos. O primeiro é simbolizar a violência estrutural, ou seja, nomear e historicizar as práticas discursivas que resultam em segregação, negação da diferença e governo do sofrimento humano. O segundo é se encantar com a mestiçagem, ou seja, com a mistura de culturas, estilos de vida e a mudança inerente à construção de saberes. Em vez de repetir o mantra de que a educação está desatualizada, seria preciso afirmar que seu espaço se atualiza nas mediações com problemas do nosso tempo — com a prática e o conhecimento imanente à vida. E a vida se dá por misturas. A pureza é excludente; é fascista. A mistura é o devir da diferença; é inclusiva, criativa e libertária.

*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é presidenta do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais e Formação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional popular de Educação (FNPE)

**José Isaías Venera é professor PPGE da Universidade da Região de Joinville (Univille) e membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil e da Internacional dos Fóruns

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