Eleição de 2022 será um plebiscito sobre Bolsonaro

Cada eleição presidencial tem uma história, mas há algo em comum em todas elas: existe um eixo que organiza a percepção da maior parte do eleitorado. As pesquisas têm mostrado que a questão econômica ganhou proeminência para o eleitor. Houve também o crescimento da preocupação com a temática social, ligada ao aumento da pobreza e da desigualdade. De todo modo, a marca de um pleito é mais ampla e diz respeito a um fator que interliga as questões. Neste sentido, a alma da disputa de 2022 será um plebiscito sobre o governo Bolsonaro.

Fernando Abrucio*

O presidente de plantão sempre é o principal tema da eleição, seja porque é bem avaliado e/ou sua agenda tem apoio majoritário na sociedade, seja porque é malvisto pela maioria dos eleitores e/ou suas propostas de políticas públicas fracassaram. No caso do governo Bolsonaro, quase 60% da população o avalia como ruim ou péssimo e somente em torno de 20% dizem que a gestão é boa ou ótima. O mais impressionante é que próximo de 65% do eleitorado diz que não votaria de jeito nenhum pela reeleição do bolsonarismo.

Claro que há algum espaço para melhoria da avaliação governamental, pois a postura mais populista, combinada com um discurso de valores de extrema direita, será a tônica em 2022, num jogo de “topa tudo por mais votos”. A aliança com o Centrão, em busca de tempo de TV, fundo eleitoral e alguma capilaridade territorial, também pode ter um efeito positivo, embora a pecha de corrupção presente neste grupo tirará votos de Bolsonaro nas cidades médias e grandes. Mas, mesmo com tanta rejeição, o bolsonarismo poderá angariar algo em torno de 25% dos eleitores na disputa presidencial. Quem quiser ultrapassá-lo para ir ao segundo turno, sobretudo o grupo que vem sendo chamado de terceira via, terá de entender melhor o sentido do plebiscito do ano que vem.

Para se montar o discurso eleitoral do ano que vem, é preciso combinar duas coisas. A primeira é entender quais são os temas que mais impactam a avaliação negativa do governo Bolsonaro. Após identificar esses pontos que vão estar no centro da eleição plebiscitária, o segundo passo é montar um projeto que combine um sonho de país, mobilização de grupos e visão de governabilidade.

A situação econômica do país em 2022 não será uma boa plataforma de reeleição. O crescimento tende a ficar perto de zero — isso se não houver recessão —, a inflação continuará alta até pelo menos o meio do ano e o desemprego ficará próximo do alto patamar atual, ao que se combina uma crescente precarização do trabalho, algo que gera sensação de perda de bem-estar do eleitor. Haverá algum alento com os gastos do Auxílio Brasil e de investimentos dos governos estaduais, mas nada capaz de trazer de volta o sentimento positivo que vigorava, por exemplo, no último trimestre de 2020, quando parecia que a economia decolaria e tinha havido um acréscimo na renda média de boa parte da população com o Auxílio Emergencial.

Mesmo os gastos populistas do governo que entrarão no Orçamento de 2022, inclusive via emendas parlamentares (secretas ou não), não serão capazes de gerar um sentimento positivo nos múltiplos públicos de uma eleição: consumidor, empresário, funcionários públicos e, sobretudo, os milhões com fome ou outras vulnerabilidades que irão aumentar no ano que vem. Nesta linha, o descontentamento econômico no ano que vem vai estar muito casado com um aumento impressionante da pobreza e da desigualdade, algo que o eleitorado começa a identificar fortemente nas pesquisas. O voto econômico terá um sentido diferente de outros momentos eleitorais de insatisfação, porque estará voltado não só a pedir mais crescimento. O que estará em jogo será uma grande raiva das classes D e E — que perfazem quase 50% do eleitorado — contra a sensação de terem sido abandonadas pelo governo Bolsonaro, sentimento compartilhado por outros grupos sociais solidários aos mais pobres.

Transferir renda aos mais pobres contra o aumento da miserabilidade não é apenas um ato eleitoral. É uma necessidade do país. Porém, da maneira eleitoreira e mal planejada como foi montada, tende a não ser capaz de reduzir a insatisfação da maior parcela do eleitorado. Pela falta de conexão com as políticas de assistência social, com os governos municipais e com as organizações da sociedade civil que lidam com a população carente, a proposta do Auxílio Brasil deixará milhões de vulneráveis fora do programa. Além disso, o benefício aprovado será bem menor do que o Auxílio Emergencial e boa parte dele será comido por uma inflação alta.

A insatisfação dos mais pobres com o bolsonarismo vai além da renda. Muitos perderam moradia, sobretudo com o aumento gigantesco dos aluguéis, elevando o contingente dos que vivem em condições insalubres. Ademais, estão tendo enormes dificuldades de manter suas crianças e jovens na escola, o que mata um sonho que cresceu nas últimas duas décadas: ver os filhos na faculdade. Nesta lista de perdas, entram ainda o desemprego ou a precarização do trabalho, bem como a morte ou a doença grave de entes queridos durante a pandemia de covid-19. Também nas comunidades mais carentes há outra lacuna: a falta de segurança casa com o assassinato seletivo da população mais negra. E não será com a distribuição de armas que esse cenário vai melhorar — e os mais pobres sabem disso.

A esse quadro de desesperança dos mais pobres não haverá respostas suficientes vindas do governo Bolsonaro. Mas o voto dessa parcela majoritária da população depende da construção de um novo projeto, que saiba captar o conjunto do sonho que essa população quer ter — ou voltar a ter, porque do Plano Real até 2013 essa esperança existia em larga escala. Quem não conseguir captar a amplitude dessa demanda, que vai além da transferência de renda, não terá o voto das classes D e E e mesmo de parcela da classe C.

O voto plebiscitário contra Bolsonaro contém outros elementos e capta mais setores sociais que os mais pobres. O exemplo da educação é interessante para demonstrar a amplitude do fenômeno. O descontentamento, aqui, espalha-se pela sociedade. Além das famílias que não estão conseguindo manter seus filhos na escola, há aqueles da classe C que não estão conseguindo pagar a faculdade privada, os cotistas que têm tido dificuldades para se manter nas universidades públicas e a população negra que teme o fim da política afirmativa no ensino superior, como vem sendo anunciado pelos bolsonaristas. Na trilha educacional, há ainda a insatisfação dos professores com a forma como a pandemia foi negligenciada pelo governo federal, o desespero de cientistas com a redução drástica de ajuda à pesquisa e, para lembrar do C que marcava a sigla original do MEC, o desmonte da cultura e a crítica desmoralizante que os artistas recebem cotidianamente do bolsonarismo.

Construir um sonho antibolsonarista é falar dos vários temas que incomodam a maior parte da população brasileira e mobilizar os descontentes em torno disso. Os candidatos precisam falar com os mais pobres, as favelas, o movimento negro, os estudantes do ensino médio e das universidades, a maioria dos funcionários públicos (principalmente os que trabalham nas políticas sociais), os ambientalistas e populações ribeirinhas descontentes com a destruição do meio ambiente, os artistas e profissionais que trabalham com a cultura, as mulheres chefes de família que perderam o emprego, só para citar alguns dos grupos de insatisfeitos com o status quo atual, que fazem parte de um Brasil enorme onde o bolsonarismo é muito mal avaliado. Quem se habilita a falar com essa imensidão de gente, vendendo-lhes a esperança de recuperação da vida de cada um e de todos?

Um último elemento é central para criar um projeto nesta lógica plebiscitária: definir a governabilidade da proposta, isto é, mostrar sua viabilidade e realçar que ela pode ser apoiada por múltiplos grupos, inclusive partidários. Além disso, deve-se propor a reconstrução da imagem da liderança política do país. As pesquisas mostram que a maior parte da população brasileira tem vergonha da postura pública de Bolsonaro, de xingamentos contínuos, de defesa beligerante das armas — algo que incomoda quase todo o eleitorado, incluindo os evangélicos —, de perda da relevância internacional do Brasil e de falta de empatia com a população mais sofrida, como ocorreu ao longo da pandemia.

A governabilidade dá o sentido da força de um voto mais de centro, que precisa ser combinado com um discurso mais voltado ao social e a tudo que se perdeu de conquistas nos anos do bolsonarismo. Se a governabilidade pede moderação, parcimônia e postura de estadista, o sonho e sua mobilização dependem da capacidade de chegar aos temas e demandas do povão. Trata-se, assim, de uma combinação de competências políticas diferentes.

Obviamente que o bolsonarismo vai procurar reagir, um pouco com distribuição de recursos, e muito com uma campanha baseada em valores e construção de uma imagem negativa dos adversários. De toda maneira, quem quiser vencer o presidente, seja qualquer terceira via ou Lula, terá que montar uma estratégia plebiscitária contra Bolsonaro. As outras dimensões, seja o antipetismo, seja o discurso contra o neoliberalismo ou algo que o valha, serão pouco relevantes frente ao verdadeiro espantalho dessa eleição.

(*) Doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico / Eu & Fim de Semana, de 10 dezembro de 2021

Diap

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