Governo Bolsonaro tenta emplacar o homeschooling

Menina dos olhos do bolsonarismo, a educação domiciliar (o chamado homeschoolingvoltou a ganhar atenções do Congresso. O presidente Jair Bolsonaro estabeleceu, em fevereiro, que o tema deveria ter prioridade na Câmara dos Deputados — e o presidente Arthur Lira (PP-AL) encontrou formas de desengavetar a pauta, estacionada desde 2019.

O debate do homeschooling corre em duas tramitações independentes na Casa, e suscita forte oposição de parlamentares, instituições acadêmicas e ativistas que defendem o direito à educação e a proteção integral de crianças e adolescentes.

Na quarta-feira 26, consta na agenda da CCJ a votação de um PL de autoria da presidenta da Comissão, Bia Kicis (PSL-DF), em conjunto com as deputadas do partido, Chris Tonietto (PSL-RJ) e Caroline de Toni (PSL-SC), que prevê descriminalizar a educação domiciliar no País. A ideia é alterar um artigo do Código Penal, o 246, que tipifica como crime ‘deixar de prover, sem justa causa, a instrução primária de filho em idade escolar’.

Kicis apresentou um requerimento alegando urgência em proteger pais adeptos à modalidade e ameaçados pela atual legislação. Também justificou que, pelo fato do PL promover alteração em apenas um artigo do Código Penal, precisaria apenas de uma análise jurídica da CCJ, não sendo levado à apreciação de outras comissões da Casa, como a de Educação e a de Seguridade Social.

Para Salomão Ximenes, professor de Direito e Políticas Públicas da UFABC, a ‘manobra’ de Bia Kicis serve a uma estratégia do governo diante uma pauta cara ao núcleo bolsonarista. “A manobra de Bia Kicis é um jogo combinado”, diz, pois aprovação de sua propostas criaria um clima político favorável à regulamentação da prática do ensino domiciliar em si, prevista para ser votada em junho.

A proposta de Bia Kicis e das colegas bolsonaristas foi desmembrada da tramitação sobre a regulamentação do homeschooling, entregue por Lira à relatoria da deputada Luísa Canziani (PTB-PR). A Câmara espera votá-la até junho.

No dia 14 de maio, Canziani apresentou um texto substitutivo para nortear a discussão. A parlamentar estipulou algumas condições para a oferta do ensino domiciliar e, agora, se articula com as bancadas partidárias em busca de um difícil consenso entre a pauta, antes de apresentá-la em Plenário.

11 mil famílias

Um levantamento feito pela Associação Nacional de Educação Domiciliar, em 2019, apontava 11 mil famílias educando os filhos em casa, fora do ambiente escolar. Em conversa com CartaCapital, Luiza reconheceu que o tema diz respeito a um universo pequeno de famílias, mas defendeu a regulamentação.

“Minha missão é trazer equilíbrio e sensatez para uma matéria que abarca um percentual pequeno de famílias, mas que precisam dessa regulamentação”, argumentou a parlamentar. “As famílias que já praticam não vão deixar de praticar, e hoje elas estão no limbo, sendo processadas, mudando de País.”

Seu texto, defende, versa sobre o direito das crianças e jovens, além de regulamentar o dever das famílias. Em resumo, Canziani estabeleceu que pelo menos um dos pais ou responsáveis pelo estudante em homeschooling tenha escolaridade em nível superior. O aluno também deve estar obrigatoriamente matriculado em uma escola regular. Também caberia à família realizar um registro periódico das atividades realizadas e o envio de relatórios bimestrais à escola.

O texto ainda aponta a necessidade de avaliações anuais feitas pelos sistemas de ensino junto a estudantes dos Ensinos Fundamental e Médio para certificar a aprendizagem durante o processo.

Canziani ainda prevê que as famílias percam o direito à educação domiciliar caso o estudante seja reprovado em dois anos consecutivos ou em três não consecutivos. Também é vedada a possibilidade do homeschooling para os casos em que o responsável legal direto esteja condenado ou cumprindo penas pelos crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei Maria da Penha, na Lei Anti-Drogas e na Lei de Crimes Hediondos. “A gente pressupõe a boa fé das famílias, mas precisamos resguardar isso na legislação”, defendeu a parlamentar.

A proposta não convenceu à bancada do PT na Câmara, que recomendou o arquivamento do projeto, conforme anunciou a deputada federal Rosa Neide (PT-MT), também coordenadora da bancada na Comissão de Educação. “Nada do que está colocado na ótica do relatório da relatora tem lugar na educação brasileira”, expôs a parlamentar, que vê riscos à formação e ao cuidado integral das crianças e adolescentes que, fora da escola, podem ficar expostas a uma formação incompleta e a situações de violência e abusos domésticos. “É sobretudo um projeto inconstitucional porque a Constituição brasileira determina que a responsabilidade da educação se dá com base no tripé família, estado e sociedade.”

A parlamentar entende que, ao defender a pauta, o governo acena à ala de apoio mais ideológica, sobretudo em um cenário de desgaste evidenciado pela CPI da Covid e pelas pesquisas eleitorais. “O grupo onde estão os fundamentalistas religiosos, os defensores da educação domiciliar”, emendou. “Temos 50 milhões de estudantes nas escolas públicas e é sobre eles que devemos nos debruçar. Há muitos outros projetos prioritários para a educação nesse momento”.

‘Texto da relatora não se descola do bolsonarismo’

O texto substitutivo da deputada Luísa Canziani se deposita sobre um arcabouço de pelo menos sete propostas legislativas que pedem a liberação do ensino domiciliar no País. Os autores dos PLs são, em ampla maioria, apoiadores do governo Bolsonaro.

Na avaliação de Ximenes, o texto de Canziani não se descola totalmente do movimento bolsonarista que tem como propósito ‘a desvalorização da escola pública e do magistério”.

“O que o texto da relatora faz é criar uma mediação entre a pretensão do DNA bolsonarista de regulamentação do homeschooling, mas cria uma espécie de ficção jurídica de que haverá uma fiscalização e um acompanhamento por parte dos sistemas de ensino”, completa o pesquisador.

Em seu relatório, Canziani defende que o ambiente em que o estudante receba a educação domiciliar seja inspecionado pelo órgão competente do sistema de ensino e fiscalizado pelo Conselho Tutelar.

“Esse tipo de requisito é absolutamente irreal e falacioso. Você dizer que os conselhos tutelares e os sistemas de ensino vão fazer inspeção no homeschooling é o mesmo que, na prática, transformar cada residência em uma unidade de ensino a ser fiscalizada. O sistema hoje não dá conta de supervisionar, fiscalizar e garantir as condições às escolas formais”, rebate Ximenes.

Entre especialistas prevalece o entendimento de que as propostas favoráveis ao homeschooling tentam sobrepor o direito das famílias ao dos estudantes, salvaguardado pela Constituição e que, portanto, seriam inconstitucionais. Ainda assim, para fazer caber a dimensão do ensino domiciliar, os PLs miram alterar trechos de leis que já versam sobre os direitos e deveres educacionais no âmbito do estado e da família, caso da Lei de Diretrizes e Bases e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Para instituições, pauta destoa das urgências aumentadas pela pandemia

Pelo menos 150 instituições do campo educacional assinaram um manifesto contra a aprovação dos projetos que pautam a educação domiciliar na Câmara. No documento, os signatários destacam a ‘espantosa prioridade’ dada ao tema pelo governo sobretudo no contexto da pandemia, que aprofundou as crises sociais, econômicas, políticas e educacionais.

“No campo da educação, as secretarias estaduais, distrital e municipais estão desamparadas tanto financeiramente, quanto para planejar e implementar o ensino remoto com tecnologias, o retorno às aulas presenciais, o enfrentamento da evasão escolar e o combate à violência doméstica”, destaca trecho do manifesto. “O debate sobre o homeschooling se apresenta como mais uma agenda inoportuna diante das agruras vividas pelos sistemas de ensino e a sociedade em geral”, acrescenta outra passagem.

A manifestação, que conta com a adesão de escolas, instituições sindicais, organizações de terceiro setor, movimentos civis e representantes governamentais, casos de secretarias de educação, ainda afirma que a regulamentação do ensino domiciliar não se apresentaria como uma solução viável para educação, mesmo fora de um contexto de exceção e emergência.

Os postulantes listam uma necessidade de ações que seriam prioritárias para o campo educacional: a expansão da educação integral, o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação, bem como dos planos subnacionais; um financiamento público com mais aportes; a regulamentação do Sistema Nacional de Educação, tendo como referência o Custo Aluno Qualidade, e aprimoração da regulação das redes privadas de ensino.

Carta Capital

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo