Guarani e Kaiowá relatam caso de tortura durante ataques a retomadas em Dourados

Ataques contra retomadas próximas à Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, vêm se intensificando nos últimos meses

Por Assessoria de Comunicação do Cimi
Os ataques às retomadas Guarani e Kaiowá localizadas nas áreas limítrofes à Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, se intensificaram nos últimos dias. Na manhã desta terça-feira (5), as retomadas Ñu Vera Guasu e Aratikuty foram atacadas, deixando um indígena ferido na primeira e barracos destruídos na segunda. No sábado (2) à noite, a retomada Avae’te também havia sido atacada a tiros, sem feridos.

Em outubro, na mesma retomada, a ocorrência de uma situação ainda mais grave é denunciada pelos Guarani e Kaiowá: um jovem indígena de 21 anos foi baleado, mantido refém e torturado por seguranças privados – e depois, ainda foi detido pela polícia.

A situação se soma a uma série de outros ataques que vêm ocorrendo na região desde o final do ano passado e se intensificaram nos últimos meses. O método das investidas se repete: um grupo de seguranças atira contra as casas e as pessoas, utilizando projéteis de borracha e munição real, normalmente à noite ou de madrugada.

Além disso, um elemento incomum tem chamado atenção nos ataques: o uso de um trator blindado, ao qual os indígenas se referem como “caveirão”. O veículo agrícola teve chapas de metal acopladas a ele e tem sido utilizado pelos agressores para atacar os indígenas, inclusive para atropelar pessoas.

A identidade dos indígenas entrevistados na reportagem será preservada por motivo de segurança.

Trator blindado, chamado pelos indígenas de “caveirão”, tem sido utilizado em ataques contra retomadas. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Baleado, torturado e preso

A situação mais grave destes últimos ataques às retomadas Guarani e Kaiowá ocorreu no dia 12 de outubro, um feriado. Segundo os indígenas, durante um ataque à retomada Avae’te na manhã daquele dia, um jovem de 21 anos foi baleado na perna esquerda ao tentar fugir.

Em seguida, ele foi capturado e levado, dentro do “caveirão”, para uma área da fazenda próxima à retomada, onde teria sido torturado. As agressões ocorreram à vista de todos os indígenas.

“Disseram que ele ameaçou os pistoleiros, mas ele foi atacado primeiro. Amarraram ele na caixa d’água, na nossa frente, e ficavam batendo nele. Diziam: ‘vem pegar o amigo de vocês’, e batiam nele. Ele tremia e gritava. Quando vimos, ele estava desmaiado”, relata uma Guarani Kaiowá.

Outro Guarani Kaiowá que presenciou a cena afirma que, antes de ser carregado, o indígena também teria sido agredido com a pá do trator blindado.

“Quando ele tava no chão, os jagunços prensaram ele com a pá do trator. Depois, jogaram ele no caveirão e levaram embora”, recorda.

Os indígenas se revoltaram com a situação e, na tarde do mesmo dia, a Polícia Militar de Dourados foi acionada para conter o conflito. Segundo o relato dos Guarani e Kaiowá, contudo, os policiais direcionaram toda a sua força apenas contra os indígenas.

Imagens feitas por eles mostram diversas granadas de efeito moral e cápsulas de bombas de gás lacrimogênio espalhadas pelo chão, inclusive na aldeia Bororó, que fica no interior da Reserva.

“A PM era para estar ajudando a acalmar os dois lados, mas eles são a favor dos fazendeiros”, critica uma testemunha Kaiowá.

Depois de ferido e torturado, o indígena baleado foi detido pela Polícia Militar, sob as acusações de ameaça e invasão de estabelecimento, e conduzido até a delegacia. A denúncia contra ele baseia-se no relato de seguranças privados envolvidos no conflito e policiais militares envolvidos na ação.

Em função dos ferimentos, o indígena foi encaminhado da delegacia para o Hospital da Vida, em Dourados, onde permaneceu sob escolta. Dez dias depois, teve a liberdade provisória concedida pela Justiça.

No processo contra o jovem indígena consta que cinco dias após o ataque, no dia 17 de outubro, ele ainda se encontrava internado no Hospital da Vida, “em uma maca no corredor com a perna em tração” – mais um indicativo da gravidade dos seus ferimentos.

Durante a ação policial, uma indígena da aldeia Bororó também foi detida, junto com seu sobrinho de 12 anos. Segundo os Guarani e Kaiowá, ambos foram retirados de dentro de sua casa pelos policiais.

No tekoha Ñu Vera Guasu, um indígena foi ferido por balas de borracha no tórax, no ombro e na cabeça no ataque desta terça (5). Foto: comunidade Ñu Vera

Ataques a Ñu Vera Guasu e Aratikuty

Nesta semana, as retomadas de Ñu Vera Guasu e Aratikuty foram atacadas. Os ataques aconteceram no início da madrugada do dia 5 de novembro, terça-feira. No tekoha Ñu Vera, um indígena foi ferido por balas de borracha no tórax, no ombro e na cabeça.

“Os jagunços pegaram ele dormindo no barraco, e o trator blindado veio junto e quase passou por cima. Ele tentou correr, mas os jagunços pegaram, atiraram bala de borracha. Deram uns dez, doze tiros nele”, conta um Guarani Kaiowá da retomada.

Depois, o grupo de agressores seguiu até o tekoha Aratikuty, onde um barraco foi queimado e outros foram derrubados. Durante o ataque, os agressores ainda aterraram um poço que os indígenas utilizavam para beber água.

“Teve tiro de borracha e também de bala de metal, mas não acertou ninguém. Tudo isso de madrugada, em torno de uma hora até as duas e meia da manhã”, relatou o indígena.

Avae’te: ataque noturno

Na noite do último sábado (2), em torno das 23 horas, a retomada Avae’te também foi alvo de um novo ataque. Ninguém foi atingido pelos disparos, mas os indígenas relatam momentos de terror.

“Os pistoleiros atiraram nos barracos e nas pessoas. Ninguém viu direito, mas chegaram atirando. O pessoal fugiu, porque não tinha como ver e nem como se proteger, era escuro”, conta uma indígena moradora do tekoha.

“O capanga dos fazendeiros estava atirando para todo lado”, relembra a indígena. “Não querem saber se vai acertar alguém, uma criança, nada”.

Barraco queimado por agressores durante a madrugada de terça (5), na retomada Aratikuty. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Confinamento e crise humanitária

Ñu Vera Guasu, Avae’te e Aratikuty são algumas das retomadas feitas pelos Guarani e Kaiowá nas áreas que fazem limite com as aldeias Bororó e Jaguapiru, estas localizadas no interior na Reserva Indígena de Dourados.

Cerca de 18 mil indígenas dos povos Terena, Guarani e Kaiowá vivem nos 3.475 hectares da Reserva. O contexto de confinamento potencializa situações de conflito e violência, inclusive cultural, como no recente caso da queima de uma casa de reza Guarani Kaiowá.

A falta de espaço para a reprodução física e cultural faz com que os indígenas busquem retomar partes de seu território tradicional fora do perímetro da Reserva, ocupadas por fazendas e sítios. Os Guarani e Kaiowá reivindicam que algumas destas áreas retomadas, inclusive, pertencem à Reserva, mas foram invadidas e griladas por não indígenas.

“A gente escuta tudo”, afirma um indígena morador da aldeia Bororó, dentro da Reserva, a respeito dos ataques às retomadas. “Quase todas as noites e de manhã cedo, escutamos tiros, foguetes. Está nessa faz uns dois meses”.

Após os ataques desta semana, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirmou que “esse é mais um caso que exemplifica na prática as violências sofridas pelos povos indígenas no Brasil, que vem se intensificando com o discurso de ódio contra os indígenas”.

“A situação é caótica, em decorrência do desmantelo do aparato de proteção estatal aos povos indígenas”, avalia Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. “Há várias tragédias anunciadas hoje no Brasil. A última aconteceu no Maranhão, com o assassinato de Paulo Paulino Guajajara, e outras podem acontecer a qualquer momento, inclusive em Dourados. O Cimi está preocupado e clama por medidas urgentes ao governo e às instituições do Estado brasileiro”.

Histórico recente e ataque após as eleições

Os ataques às retomadas localizadas às no limite da Reserva Indígena de Dourados vêm se intensificando e acumulando nos últimos meses. Num desses casos, no final do mês de julho, um indígena de 14 anos de idade, Romildo Martins Ramires, foi assassinado, segundo denúncia feita pelos Guarani e Kaiowá à Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF).

Outras denúncias deste ano incluem indígenas feridos por disparos de balas de borracha e armas de fogo e até uma idosa de 75 anos que teve suas pernas quebradas pelo “caveirão”, o trator blindado usado pelos agressores.

Entre os feridos por armas de fogo estão homens, mulheres, idosos e até dois jovens, de 14 e 15 anos de idade, que perderam parcialmente a visão após serem atingidos no rosto por balas de borracha.

O primeiro grande ataque deste período recente, entretanto, ocorreu na noite do dia 28 de outubro de 2018, dia da eleição do presidente Jair Bolsonaro. Naquela noite, quinze Guarani e Kaiowá das retomadas da região foram feridos por disparos de balas de borracha e bolas de gude, efetuados por seguranças das fazendas retomadas.

Os ataques voltaram a se repetir três dias depois, com intimidações e destruição de barracos, e durante a visita da Comissária Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (Organização dos Estados Americanos), Antonia Urrejola Noguera, em 7 de novembro de 2018, que esteve em retomadas Guarani e Kaiowá e na Reserva de Dourados.

CIMI

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