Heróis da classe trabalhadora

O intelectual e militante socialista Tariq Ali foi camarada e amigo pessoal de John Lennon e Yoko Ono. Nesta entrevista, ele conta como conheceu o casal enquanto editava jornal The Red Mole, em 1971, e recorda seu encontro com Ulrike Meinhof e Mick Jagger em seus anos de luta nas ruas

Tariq Ali não é pouca coisa. O escritor e militante socialista publicou, nos últimos cinquenta anos, mais de quarenta livros. Entre uma vida inteira de feitos extraordinários, participou altivamente, nos anos 60 e 70, do movimento da contracultura e dele apropriou suas formulações mais originais para o laboratório semiótico da nova esquerda. E também, promoveu encontros de grandes artistas do século XX com algumas das figuras mais incendiárias do pensamento socialista.

É o caso do compositor John Lennon e do escritor socialista francês Régis Debray, autor de Revolução na revolução: luta armada e política na América Latina (1967) – livro de cabeceira de qualquer bom guerrilheiro que se preze, diga-se de passagem –, que, graças aos esforços de Tariq Ali, se conheceram em 1971. Debray havia sido recentemente libertado de uma prisão na Bolívia, onde fora capturado com Che Guevara quatro anos antes. Lennon havia acabado de compor “Imagine”.

Durante toda a década de 1960, Tariq Ali foi um dos oposicionistas mais ferrenhos à campanha militar dos Estados Unidos no Vietnã, organizando grandes protestos e marchas no mundo inteiro. Sua militância anti-guerra foi tão notória que virou até música… dos Rolling Stones. Lançada como o principal single do disco Beggars Banquet no verão de 1968, “Street Fighting Man”, a composição mais política de Mick Jagger e Keith Richards, é uma homenagem ao ativista.

Nesta entrevista concedida ao jornalista Gerhard Dilger, Tariq Ali contou todos os detalhes desse encontro nos agitados anos de sua juventude.

Você pode nos contar um pouco sobre sua relação com John Lennon?

TA: Bom, nós publicávamos uma revista radical de esquerda, a Red Mole, e criticamos duas músicas dos Beatles, “Revolution 1” e “Revolution 9”. Escrevemos que as músicas eram muito fracas e pouco simbólicas. E para nossa surpresa, recebemos uma carta de John Lennon, endereçada ao editor, que nós publicamos, e rapidamente fiz nosso crítico de música escrever uma tréplica. Lennon escreveu mais uma vez e então me telefonou. Ele disse: “Tariq, você sabe que nós vamos continuar a brigar nas páginas do seu jornal, por que você não vem me visitar e batemos um papo?”.

Então fomos, conversamos com ele e foi bem interessante. Meu colega, Robin Blackburn, o entrevistou, e nós editamos com carinho. Ele [John] leu e disse: “Deus, vocês me fazem parecer tão inteligente. Você tem certeza que está tudo bem publicar essa entrevista na revista? É muito sério e não quero perder nenhum prestígio”. Eu disse, “Olha, não seja bobo, só quero vender mais alguns exemplares”.

Lembro que ele me ligou depois da entrevista e perguntou: “O que você está fazendo? Está ocupado?”. E continuou: “Fiquei tão inspirado pela nossa entrevista que escrevi uma música para o movimento, posso cantá-la para você?”. Ele cantou e a música era “Power to the People”. John disse: “Gostaria que o povo a cantasse”. “Não se preocupe, vamos cantar”, respondi. Então ele lançou o single e nós divulgamos como uma canção do movimento.

Teve outra vez que ele ligou e disse: “Venha até em casa, estou terminando meu novo LP e quero que você escute as músicas”. Então fomos e quando chegamos lá ele nos mostrou “Imagine”. Da primeira vez havia ido somente eu e Robin Blackburn. Junto com a gente, na redação, estava o filósofo francês Régis Debray, que havia acabado de ser solto de uma prisão boliviana. Falei: “Régis, essa é uma grande oportunidade”. Liguei para John e perguntei: “Posso levar o Régis Debray comigo?”. “Quem é ele?”, perguntou o ex-Beatle. “Um intelectual francês que acabou de sair da prisão”. Então quando perguntamos para Debray, “você quer conhecer John Lennon?”, ele respondeu: “Quem é ele?”. Mostrei quem era. “Sei que você estava preso, Régis, mas pensei que mesmo assim saberia que existiu uma banda chamada Beatles e que eles foram mais populares que Jesus Cristo”.

Então levamos Debray junto e Lennon disse: “Ok, vou cantar uma música para vocês”. Ele cantou “Imagine” e depois ficou me olhando. Eu disse: “Me deixe refletir por um minuto”. Chamei Debray e Blackburn de canto e ficamos cochichando de mentira, como se estivéssemos prestes a tomar uma decisão muito importante. Então falamos: “Sim, John. O politburo aprova, a música pode sair”. Mais tarde, quando estávamos a sós, disse que gostei de “Imagine” e sentia que podia tocar as pessoas, mas que, ao mesmo tempo, achava um pouco doce demais. Eu gostava mais de “Working Class Hero”, que é uma música absolutamente maravilhosa, e comentei isso. É claro que “Imagine” se tornou seu maior sucesso.

Então ele se mudou para Nova York…

TA: Eu falei: “não se mude para os Estados Unidos”. Ele argumentou que Yoko Ono odiava a Inglaterra, que a imprensa britânica era racista e que os ataques contra ela eram nojentos. “Nós estamos acostumados com isso”, respondi. “Por que eu não deveria me mudar para os Estados Unidos?”, perguntou. Falei que havia muita gente estranha por lá. “Até em Manhattan?”. “Não, mas provavelmente no resto do país. Não gosto disso”. Fui contra.

O resto, sabemos, é história. John foi muito perseguido e mantive contato com Yoko durante todos esses anos, sem contar que foi uma morte desnecessária. Precisaríamos tanto dele durante a Guerra do Iraque, na luta Palestina. Ele foi muito bom com os irlandeses. Mick Jagger também fez algumas boas canções sobre a Guerra do Iraque, depois de superar a fase conservadora. Mas John nunca teria ido nessa direção.

Falando em Mick Jagger, você é, afinal, o “street fighting man” [lutador das ruas] da música dos Rolling Stones. Como isso aconteceu?

TA: Mick Jagger costumava aparecer nos nossos protestos. Ele era muito inteligente, sabia? Ultra-radical. Os militantes da Fração do Exército Vermelho (RAF), ou Grupo Baader-Meinhof, adoravam ele. Eu dizia: “se acalme, eles já estão nos atacando por enfrentar a polícia na frente da Embaixada dos Estados Unidos”. Então, ele escreveu essa música e gravou. Obviamente a BBC se recusou a tocar no rádio e ele me enviou as fitas e a letra manuscrita original.

Jagger disse: “Aqui está, meu querido. Você sabe que a BBC não vai tocá-la, então você pode colocar no próximo número da Black Dwarf. Eu disse que tudo bem. A edição seria lançada antes de um grande protesto contra a Guerra do Vietnã, então nós o colocamos na capa, junto com um artigo de Friedrich Engels. Na chamada, colocamos “Sobre a luta nas ruas: Fred Engels e Mick Jagger” e ele ficou encantado. Gostou bastante. Então sim, a música acabou virando folclore.

Você acha que Bob Dylan mereceu o Prêmio Nobel? 

TA: Quem é que sabe? Gosto dele, obviamente. E ele foi muito importante para minha geração, mas se mereceu o prêmio… acho que suas músicas beberam de muitas fontes diferentes, como Woody Guthrie, por exemplo. Joan Baez costumava cantar muito com ele também. Não invejo o prêmio, mas ficaria feliz se ele tivesse recusado e escrito uma canção sobre isso.

Da linha “You don’t need a weatherman to know which way the wind blows” [Você não precisa de um meteorologista para dizer em qual direção o vento aponta] um grupo político inteiro se formou, bem infeliz, o Weatherman Underground, que, como a RAF, na Alemanha, realizou atos de terrorismo. Eu sei de muitos deles que estão por aí até hoje. E todos acreditam que foi um enorme erro político.

Você também esteve em Berlim, em 1967-68…

TA: Sim, estive em Berlim em 1968 para a grande marcha contra a Guerra do Vietnã, que hoje é lenda. Carregamos retratos de Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo e Che Guevara e marchamos em direção ao muro, onde os soldados da Alemanha Oriental diziam: “Que diabo está acontecendo? Somos nós que carregamos essas fotos”. Era perceptível a surpresa em seus rostos. Uma noite, depois disso, estávamos todos em um bar muito popular na cidade, o Republican Club.

E de repente entrei em uma grande discussão com Ulrike Meinhof e nunca vou me esquecer dela gritando comigo: “Você não sabe o que é sentar à mesa com alguém que agora finge ser normal mas antes era um oficial da SS! E quase ninguém se arrepende!”. E continuou: “Não estou falando de mim, estou falando da minha geração”. Então eu disse: “Olha, eu entendo, mas você não vai destruí-los”. Ela concordou e disse que muitos estavam apoiando a Guerra do Vietnã, o que para nós, era um crime de guerra.

Era possível perceber que era uma maneira de pensar um pouco distorcida, mas entendi que esse era um problema que eu nunca precisei lidar antes. E aquela geração de alemães nasceu nisso, foi difícil. Outro problema era que muitos alemães eram fortemente a favor da Palestina, algo que é muito difícil agora. Depois de 67 um enorme apoio aberto aos palestinos cresceu na Alemanha. As delegações que iam para a Palestina não sentiam culpa alguma, não viam isso como algo que eram responsáveis ou que os crimes da classe dominante alemã eram seus crimes. Havia confiança…

Jacobin

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