“Luta contra sexismo não pode ser exclusividade da esquerda”

Para cientista política, combater a violência contra a mulher é uma questão civilizatória e democrática. Assédio denunciado pela deputada Isa Penna segue um padrão de práticas para afastar mulheres da política, afirma

O caso do deputado estadual Fernando Cury (Cidadania), afastado pelo próprio partido após ser filmado pelas câmeras da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) ao se aproximar por trás e tocar a lateral do seio da colega Isa Penna (Psol) durante uma sessão na quarta-feira passada (16/12), mostra que é importante que o combate à violência contra mulheres na política seja prioridade para legendas de todos os espectros políticos.

É essa a avaliação da professora associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli. Autora de livros como Feminismo e política: uma introdução e Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil, publicados pela Boitempo em 2014 e 2018, respectivamente, Biroli presidiu a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) de agosto de 2018 a agosto de 2020.

Em entrevista à DW Brasil, a pesquisadora afirma que a hegemonia masculina em espaços político-partidários fez com que historicamente atitudes como a de Cury não viessem a público, em parte também por conta da vergonha ligada à iniciativa de uma mulher expor um assediador.

No dia seguinte ao incidente, Penna registrou um boletim de ocorrência por assédio sexual e uma denúncia formal por quebra de decoro contra o deputado. A Comissão de Ética da Alesp instaurou um processo, mas só deve começar a apurar o episódio em março de 2021.

“É muito importante que isso ocorra, porque mulheres que individualmente não trariam a público as suas histórias se reconhecem nesses padrões que estão sendo discutidos a partir da experiência de tantas outras mulheres. É claro que a gente não generaliza, mas isso não quer dizer que não exista um padrão de práticas para afastar as mulheres da política, e isso tem de ser interrompido”, diz Biroli.

DW Brasil: O deputado estadual Fernando Cury afirmou que “não houve, de forma alguma, tentativa de assédio, de importunação sexual ou qualquer outra coisa”, que “nunca ia fazer isso na frente de 100 deputados” e que não fez “nada de errado”. As declarações levam a pelo menos dois questionamentos imediatos. Primeiramente, por sugerir que ele poderia ter feito isso em outro contexto, mas também por se tratar de mais uma manifestação que tenta eximir o suposto assediador de responsabilidade ao culpar a interpretação alheia. Por que, mesmo em uma Assembleia Legislativa e diante de uma filmagem do ocorrido, não se reconhece um ato de importunação sexual?

Flávia Biroli: É constante, nas situações de violência contra as mulheres, essa oscilação entre culpabilizar a mulher e deslegitimar a sua compreensão do que ocorreu. Neste caso, como há uma gravação, isso se torna mais difícil. Mas a gravação não impede que esse deputado atue exatamente conforme tem sido o padrão: ele não vai culpabilizar a mulher porque não é uma situação em que ele possa alegar que ela se aproximou dele, mas ele vai procurar desacreditá-la. Deslegitimar a compreensão dela, a experiência dela, e a denúncia.

De maneira geral, e não só nos casos de assédio nem só nos casos de violência contra as mulheres na política, está em questão que lugar se atribui à fala da mulher. Quando uma mulher diz que não foi consensual, é muito comum que se questione o caráter dessa mulher, a veracidade do que ela está dizendo. Neste caso, ele procurou caracterizar o ato como algo que não envolveria uma violência. O que é e o que não é tolerável só pode ser medido se a gente ouvir as mulheres. No caso de assédio, isso é fundamental: entender o que as mulheres vivenciam como humilhação, como violência.

Dados de 2020 da União Interparlamentar (IPU, na sigla em inglês) colocam o Brasil em 143º lugar em um ranking de 191 nações com relação à participação de mulheres no Legislativo federal. Menos de 15% do total de parlamentares em Brasília são mulheres. Nesse contexto, pode se dizer que a desigualdade na política partidária influencia comportamentos abusivos? De que forma?

Essa ampla “sobrerrepresentação” masculina na política permitiu que esses espaços sejam regidos por uma gramática que tem relação direta com o domínio dos homens. Isso é muito literal, corporal mesmo. Os homens são a maioria, historicamente, das pessoas presentes nesses espaços institucionais da política. Eles têm, na prática, controle sobre esses espaços. No sentido de que são eles que fazem as leis, são eles que definem as regras, são eles que dirigem os partidos políticos em sua maioria. E, nesses espaços, é o comportamento masculino que prevalece.

Nesse sentido, a gente pode fazer uma conexão com o modo como as relações de gênero e seus padrões existem na sociedade, de modo mais amplo. Se isso é algo naturalizado em uma dada sociedade, nos espaços de trabalho e espaços controlados largamente pelos homens, isso se repete na política devido justamente ao fato de que é um espaço em que esse controle e esse comportamento masculino prevalecem. Porque, quanto menos mulheres a gente tem nesses espaços, menor é a chance de haver alguma resistência, alguma denúncia em relação ao que ali ocorre em termos de sexismo e mesmo de violência de gênero.

Mas há uma outra questão também: a gente vive hoje um período de reação à ampliação da participação das mulheres. Mesmo nas sociedades em que essa ampliação tem se dado muito lentamente, como é o caso da brasileira, a própria demanda por maior participação e até mesmo o fato de que há mulheres hoje fazendo política geram uma reação. E essa reação vem de diferentes formas: sexual, física, mas também psicológica, simbólica, econômica.

No caso do que ocorreu com a deputada, a gente tem uma forma de assédio que envolve a violência física – ela foi tocada, sem o consentimento dela, de uma maneira que tem, sim, conotação sexual. O que é mais difícil de aprender é que há violência psicológica e simbólica envolvidas. Porque aquela mulher está ali como par, mas, na medida em que ela é tocada de uma maneira que evoca a sexualidade, o não consentimento, o controle masculino, existe um jogo ali que é ao mesmo tempo de objetificação e de humilhação. Tem como objetivo limitar a participação [da mulher na política]. Não é só a violência sexual, não são só as ameaças nem o extremo da eliminação física como houve com Marielle Franco (1979-2018) que nos dizem algo sobre as práticas para manter as mulheres à margem ou fora da política.

Diante do ocorrido, a Comissão Executiva Nacional do Cidadania decidiu afastar o deputado. O próprio presidente nacional do partido, Roberto Freire, declarou em nota que o episódio era “grave”. Na sua avaliação, a legenda agiu corretamente?

Eu entendo que sim, que é importante que se tenha imediatamente reconhecido que é um problema e que esse problema é de grande gravidade. Porque isso nos mostra que o partido assume uma responsabilidade institucional. Nós precisamos que os partidos assumam essa responsabilidade para erradicar essa violência contra as mulheres na política. Considero importante que o deputado tenha sido afastado porque também mostra que a resposta passa por reconhecer que esse comportamento é inaceitável.

Agora, a reação da deputada Isa Penna e de outras mulheres que têm denunciado essa forma de assédio e de violência é importante também, para ativar essa responsabilidade institucional. Porque a história que nós temos – de sub-representação feminina e de controle masculino sobre os partidos e os espaços da política institucional – pode levar e levou historicamente as mulheres a uma posição em que é muito difícil tomar a decisão de denunciar. Para uma mulher que busca exercer a política, fazer essa denúncia é romper com as regras não ditas do jogo nesses espaços. Não só nos espaços legislativos, mas nos próprios partidos políticos. Subjetivamente, a violência contra as mulheres é uma prática que conta com a vergonha. O fato de que, ao denunciar, essa mulher se expõe.

A deputada Isa Penna não aceitou a pressão para manter aquilo ali como uma questão interpessoal. Ela imediatamente politizou – no sentido de definir a importância política do episódio – e expôs [o ocorrido] em vez de recolher-se à vergonha e à humilhação da situação. Com isso, ela gera um debate público sobre o que houve, que tem tudo a ver com as atitudes que os partidos podem tomar, inclusive a do Cidadania neste caso.

Também foi divulgado que o deputado Cury pretende migrar para o Democratas e que o episódio, no mínimo, adiou essa mudança indefinidamente. É importante para um partido conservador no Brasil como o Democratas se distanciar de um nome associado à importunação sexual e ao machismo?

O Democratas tem se posicionado, a partir de figuras de relevo nacional, como o deputado federal Rodrigo Maia (RJ), como um partido bastante alinhado a uma concepção liberal mais clássica dos direitos individuais, inclusive no que diz respeito à moral e à sexualidade. O Democratas, para manter essa posição que colabora para que ele se diferencie da extrema direita e da direita ultraconservadora, não quer se ver ligado a um caso de violência e de assédio contra as mulheres na política. Isso pode gerar um custo para esse deputado [Cury] na sua trajetória política. O custo da política não pode permanecer sendo das mulheres. A única maneira de não se continuar naturalizando e banalizando essas práticas é que haja um custo para os homens que as realizam.

É muito importante que partidos de diferentes posições no espectro político, e não só os partidos de esquerda e de centro, assumam uma posição crítica em relação a essas atitudes. Combater a violência contra as mulheres não pode ser uma exclusividade da esquerda. Precisamos de amplas alianças e de uma clareza de que essa é uma questão civilizatória e da qualidade da democracia.

O episódio em São Paulo levou parlamentares em Brasília a falarem abertamente sobre assédios que também elas sofreram em pleno exercício de sua função. A senhora acredita que o episódio pode inaugurar uma fase em que casos de abuso na política partidária são denunciados mais frequentemente, de modo similar ao que se viu em Hollywood com a campanha #MeToo, ou mesmo no Brasil, com atrizes da Globo e a campanha #MexeuComUmaMexeuComTodas? Este último lema, inclusive, foi usado em um manifesto de repúdio a Cury feito pela União de Mulheres na Política de Botucatu (SP), cidade natal do deputado.

Tem uma reação que vem sendo construída há mais tempo: nas eleições [municipais] de 2020, nós tivemos um conjunto de iniciativas da sociedade civil de suporte a mulheres negras e de denúncia da violência contra as mulheres na política maior do que [nas eleições] em 2018. Tem uma mudança que vem acontecendo. O caso da deputada Isa Penna é muito importante para fortalecer esses movimentos, para retirar o status de caso isolado e mostrar que há um padrão. A coragem da deputada ganha uma proporção que não é mais só relativa ao caso dela e que fortalece outras mulheres na política.

Há poucos anos, entrevistando mulheres políticas, me chamou a atenção como algumas mulheres jovens e ligadas a partidos de esquerda e a movimentos sociais diziam nunca ter sofrido assédio nem violência. Você continuava a conversa e os casos vinham: “Isso aconteceu comigo”. A gente está num processo agora de trazer a público padrões comuns. É muito importante que isso ocorra porque, assim como no caso da violência doméstica, mulheres que individualmente não trariam a público as suas histórias se reconhecem nesses padrões que estão sendo discutidos a partir da experiência de tantas outras mulheres. É claro que a gente não generaliza, mas isso não quer dizer que não exista um padrão de práticas para afastar as mulheres da política, e isso tem de ser interrompido.

Há 11 dias, foi aprovado na Câmara dos Deputados um projeto de lei que combate a violência política contra mulheres. É um projeto que penaliza, mas não prevê medidas educativas. Mas isso também é significativo.

O Conselho de Ética da Alesp tem oito membros, mas a única mulher é Maria Lucia Amary (PSDB), que preside o grupo. No sábado (19/12), um dos integrantes, o deputado estadual Carlos Giannazi (Psol), disse que vai ceder sua cadeira no Conselho à suplente dele, Erica Malunguinho. A senhora acredita que esse movimento pode tornar a avaliação interna da Alesp sobre o ocorrido mais equilibrada?

É difícil dizer se pode se tornar mais equilibrada porque continua a haver desiquilíbrio de gênero e também do ponto de vista político-partidário. Mas é significativo. É importante que tenha havido esse movimento, que tenha duas mulheres, incluindo uma mulher de esquerda, do mesmo partido da deputada [Isa Penna], e que tem ligação com as demandas feministas. São décadas de consolidação de uma agenda clara de defesa das mulheres, para que possam viver livres de violência. E, no entanto, em 2020, vivemos em países em que a violência no cotidiano da sociedade, o assédio nos espaços de trabalho e nos espaços políticos permanecem como desafio.

Cury tem uma trajetória considerada pouco expressiva na Assembleia Legislativa, no geral marcada por projetos para homenagear pessoas, municípios e produtores agrícolas do interior de São Paulo. Mas a polêmica em torno desse episódio pode mobilizar uma base mais conservadora e/ou cética com relação à denúncia a apoiá-lo de modo mais consistente daqui em diante?

É possível, sim. Em um momento como esse de forte polarização e de ascensão da extrema direita no Brasil, existe a possibilidade de que agendas de violência contra as mulheres sejam ativadas pela extrema direita em seu próprio benefício. Nada disso, no entanto, significa que não se deve atuar para publicizar, politizar [o episódio]. Ainda que esse deputado e alguns grupos da extrema direita se mobilizem para disputar o sentido dessa situação e para apoiar o deputado, há ganhos com o debate público. Não temos como avançar recuando: é preciso discutir, é preciso que haja punição, que os partidos se responsabilizem.

Em seu livro mais recente, Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina, publicado neste ano pela Boitempo, a senhora e os outros dois autores tratam do declínio da esquerda na região e da ascensão de conservadores ligados ao catolicismo, ao pentecostalismo e ao neopentecostalismo. A atuação político-partidária do deputado Cury não é marcada por um alinhamento explícito a valores religiosos. Ele, por exemplo, se absteve de votar o projeto de lei 346/2019, que tenta determinar o sexo biológico como único critério para definir o gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no estado de São Paulo. Mesmo assim, a senhora acredita que Cury possa acabar beneficiado por um ambiente político frequentemente pautado por morais religiosas?

O conservadorismo moral tem se fortalecido como estratégia política, sobretudo para eleição de políticos religiosos em diferentes países da América Latina. Mas também tem se tornado um elemento relevante no apoio a políticos de direita e de extrema direita que recorrem ao conservadorismo moral mesmo que não tenham sido alinhados ou ligados a igrejas específicas.

Esses políticos podem se beneficiar desse ambiente, só que isso não está acontecendo de maneira isolada: é uma disputa. Em um momento como este, em que esse conservadorismo tem se mostrado importante, temos uma deputada mulher, jovem, de esquerda, feminista que faz uma denúncia, pressiona para que a violência que ela viveu em uma situação de assédio seja tornada pública, e a gente tem um debate ampliado, um partido político assumindo a responsabilidade e afastando o deputado.

O apoio que ele possa vir a receber é menos impactante do que a exposição pública que ele está tendo como alguém que assediou uma deputada, que está sendo afastado do seu partido por isso, que vai ser investigado pela Comissão de Ética da Alesp, independentemente de a gente saber o resultado disso. É uma vitória dos movimentos feministas.

Deutsche Welle

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