Mais trabalho, alunos sem acesso e incertezas: a realidade do “ensino” pelo Whatsapp

Docentes expõem dificuldades do trabalho remoto e os receios em torno da volta às aulas presenciais

De uma hora para a outra, a pandemia do novo coronavírus impôs uma nova realidade para milhares de professores e alunos em todo país. O giz e a lousa foram substituídos por plataformas onlines, vídeos e mensagens virtuais – tudo para garantir o isolamento social e evitar a proliferação da covid-19.

Este dia 15 de outubro, um Dia dos Professores que acontece longe dos alunos, marca os sete meses lidando com um jeito completamente diferente de ensinar. Um contexto em que as benesses das tecnologias foram atropeladas por problemas estruturais da vida real.

Dificuldades de acesso aos conteúdos online por parte dos alunos, seja pela falta de internet ou de equipamento adequado, aumento da carga de trabalho para adaptação de conteúdo e famílias que não conseguem dar o suporte para as crianças na educação básica são entraves recorrentes do ensino remoto, segundo relatos de professores da rede pública de ensino em São Paulo.

Nas séries iniciais, os desafios são ainda maiores. Fátima Lemos, professora do 3º ano do ensino fundamental em uma escola estadual da zona oeste de São Paulo, conta que parte considerável de seus alunos entre 8 e 9 anos, que ainda estão em fase de alfabetização, não possuem celulares ou computadores próprios, e, portanto, dependem da disponibilização do aparelho por seus pais ou responsáveis.

Além das limitações de equipamento para acompanhar o ensino remoto, Lemos afirma que são recorrentes os depoimentos de famílias com dificuldades para executar o aplicativo Centro de Mídias, onde as aulas da rede estadual foram disponibilizadas.

Apesar de não cobrar o uso de dados móveis, o aplicativo não é comportado por celulares mais antigos. Para driblar esse empecilho, a opção encontrada pela professora, e adotada pelos pares da categoria, foi repassar o conteúdo para os alunos por grupos de Whatsapp.

Mesmo com todo o esforço para a adequação das aulas, Fátima se preocupa com o quanto a alfabetização de seus alunos será comprometida ao longo desse processo. “Uma coisa é dar aula presencial, em que se consegue abordar várias coisas. Outra coisa é dar aula virtual. É difícil abordar todo o conteúdo, principalmente para aqueles que não estão alfabetizados. É complicado alfabetizar pelo Whatsapp. É preciso muito da ajuda dos pais e eles nem sempre estão disponíveis”, afirma.

Silvia Ferreira, também professora dos anos iniciais, ampliou a velocidade da sua internet e procurou se informar o máximo possível para usar os recursos online da melhor forma com a chegada da pandemia.

Assim como Fátima, ela envia vídeos e materiais pelo grupo de Whatsapp e busca interagir com as famílias o quanto pode. No decorrer desses sete meses de distanciamento social, constatou o esvaziamento das aulas.

“Nem todos têm acesso e nem todos sabem lidar com ele. É muito precário. Essa é a grande dificuldade: a participação”, diz Silvia. Segundo ela, esse contexto favorece a evasão das aulas.

“Por mais que o profissional e o educador estejam à frente, criando, programando e planejanto tudo, não tem o contato físico. A criança, o olhar, o falar. Até o tom da voz, a forma com que se trabalha a oralidade. O dia a dia. Por mais que estejamos enviando todas as atividades e cumprindo os protocolos, e de ser uma forma do aluno te ver, não é a mesma coisa”, complementa a professora.

Aprendizagem em risco

A evasão escolar é um problema crônico no Brasil e uma ameaça iminente em meio à pandemia. Segundo a pesquisa Pnad Contínua 2019, 10,1 milhões de jovens não completaram alguma das etapas da educação básica (que engloba os ensinos fundamental e médio) no país.

Em meio à pandemia, essa queda na participação se dá por diversos motivos, destaca a professora Silvia. Ao lado das dificuldades de acesso, os alunos em fase de alfabetização nem sempre podem contar com o apoio de adultos, que precisam sair para trabalhar ou até mesmo buscar emprego.

“As famílias têm essa dificuldade de se organizar estruturalmente, manter o horário pro Centro de Mídias, para minhas aulas, de manter a organização do caderno das atividades para me dar uma devolutiva. Estou com um número muito baixo de famílias que conseguem me dar um retorno diário”, comenta a professora. “Algumas até sinto que desistiram. Começaram a fazer, não conseguiram se organizar, houve muito atraso nas entregas das atividades e acabaram parando”.

De acordo com Fátima Lemos, a nova dinâmica acabou aumentando ainda mais a carga de trabalho para os professores, que acabam ficando disponíveis praticamente o tempo todo.

“Eu estou trabalhando muito mais do que quando dou aula presencial. Muito mais. Eu tenho meu período com minha turma, tenho que preparar, elaborar, pesquisar na internet o que posso colocar ali para passar para a criança e para que ela consiga entender. Tenho mãe que só consegue falar comigo de noite, que só consegue me mandar as atividades no final de semana porque trabalha”, afirma Fátima.

Defasagem estrutural

O cotidiano de um ensino à distância cheio de dificuldades também é vivido por professores e estudantes do ensino fundamental. Segundo o professor Lucas Fernando de Oliveira Archanjo, que atua lecionando para a 6ª série em uma escola estadual do Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo, a média de participação dos alunos é baixa justamente devido às limitações estruturais.

Das cinco salas com 35 alunos, a média de interação frequente é apenas com 22 alunos. Além de prender a atenção dos adolescentes, o professor se desdobra para estimular a produção.

“Há uma dificuldade da compreensão da matéria, de conseguir, nesse momento atípico, fazer com que os pais acompanhem esse processo. A realidade na periferia é a pior possível dentro da educação à distância. Nossos alunos sofrem uma grande violência educacional. Estão em extrema vulnerabilidade social, intelecutal e emocional”, ressalta Archanjo.

Ele relata que muito alunos enxergavam o espaço escolar como um espaço de sociabilidade onde, muitas vezes, era possível desabafar e falar sobre violências vividas no ambiente doméstico. Com o ensino à distância, tal relação também é abalada.

Mais trabalho, zero suporte

Professor das matérias de História e Geografia, Archanjo critica o fato dos profissionais arcarem com todos os custos do ensino remoto sozinhos. O computador que usa para gravar e preparar aulas, por exemplo, tem apresentado problemas com frequência.

Fátima Lemos também comenta a falta de apoio na estrutura utilizada no ensino remoto. “Estamos dando aula de casa, não usamos nenhum recurso da escola. São recursos próprios. Celular, internet, energia, tudo nosso. O governo não está dando nenhum apoio. É tudo aqui de casa”.

O governo de São Paulo anunciou no fim de setembro que irá subsidiar a compra de equipamentos para professores e coordenadores pedagógicos por meio do programa Professor Conectado.

A iniciativa, que ainda não entrou em vigor, objetiva pagar um subsídio parcelado de até R$ 2 mil para os professores. O docente irá receber, de acordo com critérios que deverão ser divulgados no Diário Oficial até o final de outubro, a transferência de 24 parcelas no valor de R$ 83,00.

O temido retorno

Mesmo diante das dificuldades enfrentadas diariamente no ensino remoto, os professores entrevistados pelo Brasil de Fato demonstram preocupação com a volta às aulas presenciais no ensino fundamental, previstas para 3 de novembro.

Um levantamento realizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e o Dieese, a pedido do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), apontou que a atual infraestrutura das escolas estaduais de São Paulo não permite o estabelecimento dos protocolos de segurança mínima para que se reduza o risco de contágio da covid-19.

O estudo concluiu que pelo menos 93,4% das turmas teriam de ser adequadas para obedecer o distanciamento mínimo de 1,5 metro entre os alunos, recomendado pelas autoridades de saúde. Das 5.209 unidades escolares mapeadas, por exemplo, 99% não possuem enfermaria, consultório médico ou ambulatório. Mais de 80% das escolas não têm mais do que dois sanitários para uso dos estudantes.

Para Lucas Archanjo, diante dessa realidade, a retomada das aulas presenciais não é uma boa opção.

“As escolas não estavam nem suportando a chuva que caia. A sala de aula em que eu estava lecionando estava cheia de mofo. Nunca teve papel higiênico na escola, sabonete, coisas básicas. Quem vai dizer que agora vai ter?”, questiona.

Nas séries iniciais, Fátima Lemos aponta que o distanciamento social entre as crianças é muito difícil de ser cumprido.

“Faço videoaula uma vez na semana, em que a gente se vê, conversa e dá saudade. Nós, professores, também morremos de saudade. Imagine as crianças. É difícil controlar não querer abraçar o amiguinho. E se na família do amiguinho tem caso de covid e ele seja um transmissor? Acho muito arriscado para as crianças, para as famílias e principalmente para os professores”.

Mesmo a divisão das turmas não é suficiente. “Eu vou estar com um grupo hoje, com outro amanhã, com outro no outro dia. Eles estarão em grupo mas nós, professores, vamos estar em contato com todas essas crianças. E quem é que está preocupado com a saúde dos professores e com a família dos professores? Ninguém.”

Silvia Ferreira concorda. Por mais que os protocolos estejam estabelecidos, ela avalia que nenhum setor da comunidade escolar está realmente seguro com a volta.

“Ficamos três bimestres praticamente com a movimentação online. Com dificuldades ou não, funcionando ou não, não será em um único mês que vamos conseguir formalizar nada. Infelizmente foi um ano atípico, no geral. Estão todos seguindo planos de ações de recuperação”, diz.

Valorização

Na opinião de Archanjo, a covid-19 expôs as desigualdades do ensino e, ao mesmo tempo, a importância do investimento qualitativo na educação e do reconhecimento da atuação dos professores.

Neste dia dos professores tão conturbado, Fátima Lemos também deseja que o trabalho ganhe visibilidade. “Seja qual seja a profissão, se a pessoa está alfabetizada foi graças a um professor. Talvez com tudo isso que está acontecendo comecem a olhar diferente para os professores e reconhecer sua importância”.

Brasil de Fato

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