Mercado total

Tratar mercados como abstrações serve apenas para encobrir interesses, valores e visões de mundo que operam em situações concretas. Visto como modelo puro, o mercado adquire universalidade e neutralidade inexistentes em qualquer experiência real. No Brasil, a avaliação de que “haja muito Estado e pouco mercado” atualmente só se sustenta quando se concebe um modelo puríssimo de mercado descrito por algum livro ou de certo país imaginário que, de fato, nunca existiu.

Avança politicamente no país a ideia de que Estados, ao interferirem excessivamente em mercados, distorcem preços, criam ineficiências e alimentam privilégios. No caso brasileiro, diante da crise econômica que se prolonga desde 2015, reformas “pró-mercado” seriam cruciais para colocar o país nos eixos e, em suma, retomar o crescimento econômico. Ao menos é essa a conclusão repetida como obviedade no falatório oficial da imprensa e do governo. Em suas entrelinhas, revela-se (para além de um projeto articulado) o pressuposto de que o mercado é uma forma institucional perfeitamente dissociável da política e do Estado, que obedece a uma lógica própria. Nada poderia, contudo, estar mais distante do funcionamento de mercados concretos.

Parte relevante de jornalistas, políticos e economistas no país, ao olhar para fatos cotidianos a partir de lentes míopes, tem encurtado a compreensão da real economia política brasileira e, assim, produzido diagnósticos profundamente equivocados. Nessa perspectiva, mercados se organizariam de modo espontâneo a partir de ações atomizadas e racionais de seus participantes. Seriam regidos pelo sistema de preços, ajustado em ambiente de trocas livres, segundo a gramática da eficiência. Analisando-os a partir de um modelo abstrato, todo contato com a poluição dos valores, das disputas democráticas e das regras coercitivas – característica da ação estatal –, é percebido como contaminação de certa “forma pura”. Nesse ponto, a análise ganha dimensão normativa: apenas mercados livres de interferência política evitariam a destruição de certa lógica “natural”.

A realidade, no entanto, costuma ser mais turva do que as purezas do intelecto supõem. Frequentemente, mercados são desenhados institucionalmente e atravessados por questões políticas. São também, não raro, arquitetados pelos próprios Estados nacionais. Para ficar em um exemplo famoso, tecnologias que revolucionaram as formas de comunicação e que atualmente inundam grandes mercados globais têm sua origem em um esforço estatal planejado de criar inovações. Nos termos da provocação feita por Mariana Mazzucato no já famoso livro The Entrepreneurial State, pode-se dizer que o mercado de smartphones não seria possível, tal como existe hoje, sem a atuação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos como efetivo empreendedor que, por meio de suas políticas mission oriented, criou todas os dispositivos que tornaram celulares, de fato, smart – internet, GPS, touch-screen displays, entre outros.

Além de desenvolver inovações tecnológicas, Estados proíbem a produção e/ou comercialização de certos itens; fomentam e protegem alguns setores; desenham, por meio de regras, modelos de negócios; monitoram desempenho e criam meios de se garantir estabilidade de empresas. Resultados gerados por um mercado são, no mais das vezes, uma função de sua estrutura institucional. Isso é relevante pois mercados engendram efeitos distributivos. Isto é: quais, como e em qual razão consumidores, empresas emergentes, empresas consolidadas, Estados e cidadãos em geral ganham ou perdem com seu funcionamento são, fundamentalmente, questões políticas. Nesse sentido, a dinâmica de um mercado é a somatória dos múltiplos valores, visões de mundo e interesses conflitantes, de agentes públicos e privados, em torno da atividade econômica. “Todos os preços são políticos”, concluía em 2003 o economista Ha-Joon Chang, sintetizando a ideia de que o sistema de preços é tudo menos politicamente neutro.[i]

Voltando ao caso brasileiro, em todos esses âmbitos, propostas de acabar com distorções políticas por meio de um choque de mercado soam ingênuas ou mal-intencionadas. No campo da inovação, espera-se que a diminuição tributária, a redução de encargos trabalhistas e previdenciários, além da abertura comercial, sejam suficientes para melhorar a competição empresarial e, pela busca espontânea de lucro em mercado, estimular inovações em produtos e processos que elevarão a produtividade da indústria nacional. O mercado ideal produziria por si só inovações desejáveis. Nessa toada, investimentos públicos em ciência e tecnologia, encomendas tecnológicas e outras formas de fomento estatal desaparecem no mundo cartesiano dos mercados puros. Distante da prática de sucesso internacional, mesmo entre as chamadas “economias de mercado”, o Estado brasileiro tem ativamente construído (ainda que sem total clareza) mercados economicamente obsoletos.

Há outros exemplos. No mercado de derivados do petróleo, a iniciativa de abrir mão de uma política de preços de combustíveis e deixá-los flutuar em função do mercado internacional tem gerado desde 2017 uma série de impasses políticos. Vista como expressão de um conflito distributivo, a tensão se dá entre, de um lado, maximizar o valor de mercado da Petrobrás e, com isso, favorecer acionistas minoritários distribuindo maiores dividendos e, de outro, proteger cidadãos-consumidores das oscilações diárias dos preços garantindo preços estáveis e mais razoáveis. Sendo um “mercado puro”, nada mais adequado do que deixar o sistema privado de preços comandar os incentivos das trocas, dizem alguns. Sendo atividade de uma empresa estatal, dizem outros, nada mais adequado do que o Estado brasileiro determinar seus preços. Impura, a realidade sugere um mercado híbrido em que dispositivos e comandos públicos e privados são demandados a operar em conjunto, sem fórmula definitiva. Diante disso, o Estado brasileiro se equilibra entre um economicismo estreito e a realpolitik das pressões concretas. As soluções têm sido as mais atabalhoadas possíveis, também pela ausência de um diagnóstico acurado.

O mercado de crédito talvez seja um dos mais explícitos exemplos da imbricação Estado-mercado. Sendo a um só tempo política pública (provisão de investimentos e consumo) e fonte privada de lucros, a gestão da moeda e do crédito só pode ser compreendida como parceria público-privada em que as fronteiras nítidas se diluem.[ii] Moedas são criadas tanto por bancos quanto por bancos centrais, amalgamando em si diferentes propósitos. Bancos centrais estabelecem regras prudenciais e monitoram instituições financeiras para garantir que determinados padrões de estabilidade e higidez de suas operações sejam mantidos constantemente. Além disso, administram o volume de moeda em circulação por meio de seus instrumentos de gestão macroeconômica, cujo funcionamento acontece, basicamente, a partir da compra e venda de títulos públicos em mercado aberto. Em algumas ocasiões, fins públicos são perseguidos também por meios privados.

Com efeito, instituições financeiras não desenvolvem suas atividades de empréstimo, seguro, resseguro, corretagem, gestão do sistema de pagamento e, assim por diante, em um vácuo político e institucional. Estados exigem um volume razoável de capital e de organização interna das instituições para exercerem tais atividades. O controle se justifica pelo fato de bancos centrais permanecerem como infalíveis retaguardas aos agentes do mercado, emprestando dinheiro público quando os “caprichos dos mercados” ameaçam a liquidez ou solvência de alguma instituição. Lender of last resort é sua função clássica. Fins privados também são protegidos por meios públicos. O Estado insere-se, assim, no interior da cadeia de atividades de mercado, garantindo que a moeda nacional continue confiável e saudável em todas as suas funções.

BM&F BOVESPA – data: 06/10/2009 – Fotos do Espaço BM&F BOVESPA. Foto: Luiz Prado / LUZ
Também no Brasil, o desenho do mercado financeiro está longe de ser espontâneo. Não apenas pela existência de bancos públicos federais, que providenciaram historicamente crédito mais barato para agronegócio, indústria e construção civil, mas também porque as condições institucionais do mercado financeiro privado têm contado com ativa atuação estatal. Após a estabilização monetária, com o Plano Real, foi a ação direta do Estado brasileiro por meio de programas como Proer, Proes, da criação do Fundo Garantidor de Crédito e de outras medidas regulatórias que criaram um novo e estável modelo de negócios para instituições financeiras no país, ainda que socialmente custoso. No mesmo período em que o Banco Central consolidou sua capacidade técnica e política de regulação, um mercado financeiro específico foi forjado, cujas características mais evidentes são, de um lado, sua resiliência a crises (o sonho de todo Estado) e, de outro, um dos spreads mais altos do mundo (o sonho de todo mercado).[iii] Essa configuração revela também uma dinâmica de mútua dependência entre Estado e as finanças que está longe de ser apolítica.

Atualmente, debate-se a necessidade de conferir autonomia, por lei, ao Banco Central brasileiro, para que se evite interferência da política na gestão da moeda. A ideia é que bancos centrais passem a operar seus instrumentos como mecânicos costumam ajustar as engrenagens de uma máquina. Contudo, sendo a moeda uma criatura híbrida, a blindagem dos bancos centrais ao poder político eleito não reduz seu conteúdo político. O Banco Central brasileiro continuará tomando decisões sobre quais mercados construir e promover (fintechs, talvez?), quais os parâmetros a serem seguidos pelas instituições, como gerir o crédito no país (e, no limite, a atividade econômica e o emprego), e assim por diante. Ao fazê-lo, continuará favorecendo certos grupos, promovendo certos objetivos, avançando certa agenda política. No fundo, ao pretensamente depurar o “político” na gestão da moeda, busca-se na verdade evitar o escrutínio social das ações públicas nos respectivos mercados. Reconhecer que a imbricação Estado-mercado é, nesse caso, a regra, seria uma forma muito mais realista – também por isso mais democrática – de se debater os meios e desenhos socialmente desejáveis de gestão.

Enfim, tratar mercados como abstrações serve apenas para encobrir interesses, valores e visões de mundo que operam em situações concretas. Visto como modelo puro, o mercado adquire universalidade e neutralidade inexistentes em qualquer experiência real. No Brasil, a avaliação de que “haja muito Estado e pouco mercado” atualmente só se sustenta quando se concebe um modelo puríssimo de mercado descrito por algum livro ou de certo país imaginário que, de fato, nunca existiu. Soluções que hoje apontam no horizonte para os diferentes campos não são neutras, tampouco definitivas. A política e o Estado – denunciados nos quatro cantos da terra como particularistas e sujos – serão mais uma vez demandados a acomodar conflitos que não se resolvem de outra forma.

O desejo de um mercado total, que passe a reger todas as dimensões da vida econômica e social, é uma utopia impossível e está necessariamente sujeita ao fracasso – que é para onde o país caminha. Compreender seus limites é o primeiro passo para organizar uma reação e conjecturar uma nova utopia.

Pedro Salomon Bezerra Mouallem é doutorando pela Faculdade de Direito da USP e pesquisador na FGV Direito SP.

[i] Confira em Ha-Joon Chang. Globalization, Economic Development and the Role of the State. 2003.

[ii] Sobre isso ver Wolfgang Streeck. The Fourth Power. New Left Review. 2018.

[iii] Se ainda é debatido se os historicamente desproporcionais spreads no país estão relacionados a alta concentração e baixa competição em mercado (como conclui o relatório da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, de 4 de dezembro de 2018) ou aos altos custos de intermediação financeira, derivados de pesada tributação, “incertezas jurisdicionais”, elevados depósitos compulsórios, etc. (como conclui o manifesto da Febraban, publicado no mesmo dia), ao menos não há dúvidas de que o Estado brasileiro joga um papel central nisso.

Le Monde Diplomatique

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