Neoliberalismo e universidade: a farsa ilustrada do mercado

Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos* e José Isaías Venera**

O mal-estar na cultura, de Sigmund Freud, publicado em 1930, se apresenta mais atual do que em sua época. De fato, esse afeto, o mal-estar, emerge da ambiguidade entre a liberdade e o (des)amparo. Não por acaso, o mal-estar compõe os círculos de afetos da sociedade. Arriscamos dizer que, em nossos dias, mais pelos rumos da política do que pela crise epidemiológica.

A política neoliberal vem como um furacão, colocando fim a direitos trabalhistas e às ações de amparo, ao mesmo tempo que seduz as pessoas com o manto ilustrado pelo marketing, na escolha certeira de enunciados que se acomodam no desejo humano, como a liberdade — ao passo que, na prática, funciona para dar mais poder empresarial, ouse seja, para intensificar a exploração. Quando as condições subjetivas para o neoliberalismo são dadas, como a adesão à renúncia do amparo para se viver supostamente com mais liberdade, a realidade se apresenta como inevitável.

Em um Estado servil à demanda do mercado, a exploração atinge níveis de perversidade inimagináveis, mas fetichizada com enunciados que lhe dão colorido especial. Na educação, enunciados como sala de aula invertida e mentoria de aprendizagem dão um brilho para a ideia de protagonismo e liberdade do sujeito. O que motiva a tendência empresarial na educação todos já sabem: redução da folha de pagamento com professores e um retorno financeiro maior com a concentração de alunos por salas virtuais, já que é um lugar atópico, sem espaço físico. É uma forma de intensificar a força de trabalho sem limite da máquina produtiva. Quando a demanda se reduz, reduz-se a remuneração do trabalhador para garantir a permanência dos lucros.

Atualmente, a crise epidemiológica passou a ser o contexto favorável para expandir o velho sistema, infiltrando-se até nas disciplinas “presenciais”, numa forma de Frankenstein que se molda ao número de alunos. As mudanças não são circunstanciais. Muitas universidades estão aprovando modalidades de ensino justificadas pela pandemia, sob o enunciado de inovação, mas como modelo a se seguir pós-pandemia. Se há um diagnóstico que se pode fazer para o pós-pandemia a partir dos sinais dados é o de que as relações de trabalho estarão bem mais fragilizadas. O resultado será negativo. É o sistema se alimentando da fragilidade social.

Não é de hoje que a política neoliberal chegou às universidades comunitárias. São instituições sem fins lucrativos, constituídas na forma de fundações, algumas ligadas a projetos municipais de expansão da educação superior. Outras, além de comunitárias, são confessionais, como as católicas e presbiterianas. Em certa medida, todas estão passando por reformulações frente ao modus operandi do mercado. Algumas, de forma mais agressiva, colocando fim ao caráter comunitário, com a precarização do trabalho docente, aumento abusivo do número de alunos por sala, inserção na educação a distância sem qualidade, fim do plano de carreira, padronização do ensino.

As instituições comunitárias, por seu caráter híbrido entre público e privado, permitem vários modelos de gestão, desde os mais alinhados com a gestão privada e os interesses do mercado, com pouca abertura ao diálogo, até os mais democráticos, com cargos de gestão com eleição direta e colegiados ativos. Entre as confessionais, destacam-se a Pontifícia Universidade Católica (PUC), a Mackenzie, a Metodista. Já entre as laicas, a maior parte concentra-se no Rio Grande do Sul — entre elas, a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) — e em Santa Catarina, como é o caso da Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

Os ventos da mudança

Em Santa Catarina, a Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul, com matriz em Tubarão, foi vendida no ano passado para o Grupo Ânima de educação, corporação atualizada nas técnicas de exploração e nas estratégias de sedução, que manterá o nome Unisul, aproveitando-se de seu capital simbólico.

Além das demissões ou redução da carga horária de professores, a Ânima Educação vem adotando políticas de junção de turmas e desvinculação entre o número de créditos pagos por alunos e as horas-aula dos professores, mudança que tem sido adotada pelo grupo em outras regiões do país. Em Minas Gerais, como mostra matéria do jornal Brasil de Fato de 7 de julho deste ano, o Centro Universitário de Belo Horizonte, UniBH, que pertence ao grupo, adotou, para as disciplinas presenciais, as chamadas “unidades curriculares”, que passam a ser ministradas por dois professores, com 60 horas para cada um. No entanto, o aluno pagará por 160 horas. As 40 horas restantes serão dedicadas para o que nomeiam de “busca ativa”, ou seja, pesquisas que os alunos devem fazer, sob orientação do professor, que indicará material, responderá dúvidas, mas cujo trabalho não será remunerado.

Outra instituição que adota modelo parecido é a Univali, com sede em Itajaí (coincidentemente, duas comunitárias; ao menos a Unisul era, até o ano passado, do sistema Acafe, mantendo uma democracia limitada, com grande controle das decisões). Tanto a Unisul quanto a Univali são universidades que entram em crise econômica concentrando privilégio e com um modelo de gestão bem diferente do praticado por outras comunitárias, que, por seus ritos decisórios mais plurais, são mais transparentes na administração e nas contas.

Situação diferente de universidades comunitárias que resistem a esse modelo, por meio da democracia interna e de procedimentos mais transparentes nas contas, é a da Universidade da Região de Joinville, Univille, e da Universidade Regional de Blumenau, Furb, em que há eleição direta para a reitoria e prestação de contas aos municípios onde se situam e à comunidade acadêmica. As universidades ainda gozam de um modelo burocrático que evita apadrinhamentos e perseguições internas. Inversamente a outros modelos de gestão menos democráticos, universidades como a Univille e a Furb são as que melhor estão enfrentando a crise. Diálogos em todas as instâncias, com representantes acadêmicos nos colegiados dos cursos, centros acadêmicos, comitês de áreas, representantes da comunidade são o lócus das decisões diante dos desafios apresentados. Assim, ainda é possível manter a proteção aos trabalhadores e primar pela qualidade de ensino.

Universidade inventa um Frankenstein para explorar mais ainda professores e alunos

As mudanças de uma instituição comunitária servem para ilustrar a tendência do mercado. Além das disciplinas virtuais que compõem parte da carga horária dos cursos presenciais, prática cada vez mais comum nas universidades, a Univali adotou o modelo Mentoria de Aprendizagem (MAp). É bom sempre prestar atenção aos nomes: quanto mais sofisticados, mais tendem a mascarar suas verdadeiras intenções. Agora, as disciplinas que faziam parte da modalidade presencial, que não integram o Ensino a Distância (EaD), passam a ser subordinadas ao número de alunos matriculados, determinando o seu enquadramento. Menos de 20 alunos, a disciplina entra automaticamente para o modelo MAp, ou seja, lecionada a distância, na qual o professor poderá receber uma ou duas horas-aula por disciplina de quatro créditos. Se o número de alunos for muito reduzido, arbitrariamente a instituição pode decidir por cancelar a disciplina, situação que tem levado professores à beira do desespero ao verem sua carga horária na instituição despencar de um semestre para o outro. Esses critérios são comunicados sem que os professores e estudantes participem do processo de decisão.

Essa flutuação das disciplinas, ora podendo se enquadrar em uma modalidade, ora em outra, visa unicamente à redução de custos e à ampliação dos lucros, prejudicando professores e a qualidade do ensino. É uma espécie de Frankenstein montado a partir da procura por matrícula. Se o “mercado” do ensino estiver em baixa, a qualidade do produto oferecido será compatível. Isso poderá levar um curso vendido na modalidade presencial a ser entregue na modalidade a distância. No ditado popular, é vender gato por lebre.

A educação é um direito constitucional e sua oferta não poderia prescindir de regulação que garanta condições salariais minimamente dignas aos professores e, em certa medida, qualidade do ensino. Quando o debate envolve instituições comunitárias, a discussão fica ainda mais séria, levando em conta que são instituições que deveriam ter responsabilidade social com a comunidade, o que envolve os participantes internos, ou seja, professores, funcionários e estudantes, e a comunidade externa onde está inserida. Mas, pelo contrário, professores ficam desamparados e sufocados, fazendo circular, entre os afetos, o medo, no qual um comentário aqui poderá render punição ali. A grande farsa neoliberal se desvela: a liberdade empresarial significa a não liberdade do indivíduo.

Para Freud, a fonte do sofrimento humano decorre de três poderes devastadores: as forças da natureza, nas quais podemos inserir a pandemia; o envelhecimento do corpo; e o sofrimento advindo das relações entre os humanos. Certamente, a terceira é a principal fonte do nosso mal-estar. Diante das fragilidades aprofundadas com a pandemia, o país assiste diariamente sintomas expostos sem nenhum filtro civilizatório na arena virtual da internet, seja nas redes sociais ou em transmissões ao vivo. Declarações do presidente Jair Bolsonaro na lógica do racismo de Estado, ou na paranoia de seus seguidores, são um exemplo de sintomas sociais desse sofrimento. Enquanto isso, nas relações de trabalho, a máquina exploratória não para, colocando em ação a necropolítica — fazer morrer, seja pela exclusão, rejeição, vulnerabilidade, perda da esperança, falta de perspectiva de quem não interessa ao sistema, prática evidente, como vimos, até em instituições denominadas comunitárias. Universidades comunitárias que, em tese, deveriam contribuir para o amparo da comunidade promovem a política de agravamento do sofrimento social.

*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda em Sociologia e Ciências Políticas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE).

**José Isaías Venera é professor universitário e doutor em Ciências da Linguagem. Site: www.joseisaiasvenera.com

Da Carta Capital

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