O desafio de construir um futuro para a saúde brasileira

Em debate no Cebes, José Gomes Temporão e Arthur Chioro sustentam: ressurge, em meio ao caos, disposição para reinventar Reforma Sanitária. Derrotar Bolsonaro será indispensável, mas apenas o primeiro passo. Vêm aí tempos de luta

Nenhuma resenha pode relatar a contento o debate sobre o futuro da Saúde brasileira que dois ex-ministros da Saúde mantiveram, na última segunda-feira, por iniciativa do Cebes. Ao longo de uma hora, José Gomes Temporão, que ocupou a pasta entre 2007 e 2010, e Arthur Chioro (2014-15) examinaram em profundidade a devastação provocada, desde 2016, por governos empenhados em sabotar o SUS e abrir espaço à medicina de negócios. Mas foram muito além: esboçaram o cenário que pode se desenhar após a possível derrota do projeto de devastação, nas eleições de outubro. O panorama que traçaram é pedregoso, porque os retrocessos são dramáticos. Mas eles enxergam, nos sinais de resistência que se multiplicam, condições para retomar batalhas históricas.

Temporão, com a anuência posterior de Chioro, denunciou ponto a ponto o desmonte do ministério e a fragilização do SUS e da Saúde em geral em suas variadas dimensões: organizacional, laboral ou tecnológica, convergindo para um conflito central na presente conjuntura, que opõe a proposta do atendimento universal à da medicina privada. “Sabemos que o mercado não pode oferecer nenhum futuro à Saúde”, sintetizou. “Só um sistema universal, dirigido e regulado pelo Estado pode garantir equidade e proteção para todos”.

Não foi possível criar um sistema de fato universal, observa Temporão, nos 30 anos de grandes progressos havidos nessa área, no Brasil, impulsionados pelo movimento da Reforma Sanitária. E desde os governos Temer e Bolsonaro o sistema foi abandonado, desmontado e destituído de financiamento, enquanto o setor privado cresceu e ocupou espaços do SUS. Não vamos resolver esses problemas apenas elegendo um governo progressista esse ano, raciocina o ex-ministro. A eleição em outubro será essencial, mas não basta.

“Não se trata de recuperar bons programas, ou acrescentar novos, para dar conta dessa realidade”, afirma, “mas de entender como vem se dando há décadas na sociedade brasileira a luta pela apropriação dos fundos públicos da Saúde”. Isto é, a sua crescente privatização. A partir daí, é preciso enfrentar uma extensa agenda de luta, que inclui criar uma regulação para o setor privado e uma política de investimento na saúde que, por exemplo, inverta a atual preferência do Bndes (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) pelo setor privado.

Mas a questão central, diz Temporão, é a sustentabilidade política do SUS. “É urgente ampliar o grau de consciência política da sociedade sobre os sistemas universais e do seu valor. Eu diria que ainda há um baixo grau de consciência e de percepção, pela sociedade, da Saúde como um bem público”, afirmou. A partir do diagnóstico exaustivo feito por ele, Arthur Chioro deu à sua exposição um caráter mais analítico, centrando nos aspectos políticos da agenda à frente.

Ele diz que Temer e Bolsonaro romperam com a narrativa de um SUS constitucional. Qualifica de forma impiedosa os atuais ocupantes do ministério, falando em “assalto aos fundos públicos”, “conluio de bandidos”, “condução criminosa” e, no enfrentamento da pandemia, “negacionismo a serviço de negócios”. Mas há resistência, pondera Chioro, dizendo que percebe no país uma disposição para uma necessária reinvenção do movimento sanitário brasileiro.

“O tema da Saúde tem condição de entrar como uma prioridade, de voltar à pauta política e eleitoral”, e isso é importante porque eleger um governo democrático faz muita diferença. “A Saúde no Brasil passa pelos rumos e pelo futuro da própria democracia”, analisa. Ele acha que a defesa da democracia é um ponto de destaque nessa disputa. “A democracia não existe sem Saúde e sem democracia não existe Saúde. Nesses termos, conclui que “as eleições de outubro são definidoras do que acontecerá com a Saúde no país”. Uma bela aula, em suma, mais que uma live.

José Gomes Temporão foi Diretor Geral do Instituto Nacional do Câncer (2003-2005), Secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (2005-2007) e membro Titular da Academia Nacional de Medicina. Arthur Chioro foi Professor-adjunto do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, secretário municipal de saúde de São Vicente-SP e de São Bernardo do Campo-SP, presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo e Diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde (2003-2005).

Outra Saúde

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo