O direito à desconexão e a projeção de novos rumos do teletrabalho

Por Salus Henrique Silveira Ferro

Entre inúmeras consequências advindas através da pandemia da Covid-19, não há como negar o marco temporal de um olhar atento à consolidação e ao desenvolvimento regulatório do teletrabalho no período. As novas tecnologias e ferramentas de informações permearam os lares daqueles que anteriormente dispunham exclusivamente do ambiente de trabalho externo para exercer suas funções, havendo uma nítida transposição deste ambiente profissional ao doméstico.

Tal hiperconexão às relações laborais permitiu o fortalecimento do teletrabalho, e consigo, a dificuldade de encontrar parâmetros do tempo efetivamente trabalhado, na medida em que se modificou a relação do indivíduo com a ferramenta, acarretando uma difícil desassociação com o tempo de descanso e lazer.

Ainda que essa transformação possua nítidas vantagens ao trabalhador, como a ausência de locomoção e maior comodidade na execução das tarefas, tornou-se ainda necessária uma regulamentação mais específica de relações de trabalho fisicamente distantes, que ampare não somente o equilíbrio da carga horária, mas o tempo despendido às atividades profissionais.

É nesse sentido que o direito à desconexão se enquadra e insere-se como um amparo legal na melhora do equilíbrio entre a vida pessoal e profissional dos trabalhadores, exercendo o direito de desconectar os dispositivos tecnológicos e plataformas online após o período de trabalho.

Originalmente promulgada na França em 2016, através da Lei El Khomri, ou Loi Travail, o direito à desconexão tornou-se compulsório em empresas com mais de 50 funcionários, desenvolvendo-se posteriormente em uma pauta de negociação coletiva compulsória para a introdução pela empresa de reguladores de ferramentas digitais com o objetivo de cumprir os regulamentos que regem os períodos de lazer. Posteriormente, inúmeros países empenharam-se na construção de diretivas nacionais para o enfrentamento do problema, como a particular Lei Nº 81/2017 na Itália, que limita o direito à desconexão para trabalhadores inseridos em uma nova modalidade de trabalho, o smart working, ou lavoro agile, que distingue notadamente das características do teletrabalho, mas que poderá ser exercido de forma remota [1].

No Brasil, apesar de existirem jurisprudências a favor do direito à desconexão, permitindo a indenização devida ao trabalhador, não há ainda qualquer lei específica sobre o tema, apenas a permissibilidade laboral da conexão do empregado pelos meios de comunicação remoto, o teletrabalho. Entre as discussões pátrias, há a alegação de uma desnecessária formalização do instituto para o ordenamento jurídico brasileiro, pela qual supostamente estabeleceria a proteção do trabalhador para essas inconveniências, asseguradas pela Constituição Federal e disposições da Consolidação das Leis do Trabalho.

Contudo, as normas de limitação de jornada e a concessão de descansos podem não constituir per se elementos eficazes no combate às comunicações indesejadas, favorecendo, na ausência de regulamentação, eventuais e possíveis violações a um descanso pleno. Não obstante, o país tem uma alta taxa de conectividade em aparelhos eletrônicos, perfazendo-se em 70% da população como usuários de redes sociais, permitindo de maneira mais facilitada que eventuais violações possam ocorrer fora da jornada de trabalho. Além disso, a proliferação de aplicativos de mensagens instantâneas e de chamadas de voz por meio da simples conexão com a internet viabilizam a acessível e imediata interação com o usuário, exposto a esse ambiente digital.

Por certo, há a necessidade de uma maior regulamentação sobre o assunto, dada a utilização extensiva do teletrabalho e a falta de diretrizes asseguradas por essa nova e definitiva concepção de atividade laboral.

Foi nessa perspectiva que Portugal recentemente delineou novos rumos ao teletrabalho, na contramão daqueles que já defendiam o direito expresso, tal como os que alegam sua inutilidade prática no Brasil. Ressalta-se que, diferentemente do Brasil, o Código do Trabalho de Portugal é ainda mais enfático na obrigação do devido respeito à privacidade do trabalhador, estabelecendo-se conforme disposições 2 e 3 do artigo 170, que: “Sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador, a visita ao local de trabalho requer aviso prévio de 24 horas e concordância do trabalhador, (…) a visita só deve ter por objeto o controlo da atividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho, e apenas pode ser efetuada na presença do trabalhador durante o horário de trabalho acordado (…)” [2].

Além disso, não se pode deixar de notar o desenvolvimento da matéria no país, advinda sobretudo da obrigatoriedade da adoção do regime de teletrabalho, que passou a vigorar com o estado de emergência português, dando-lhe maior relevância, pelo Decreto nº 3-A de 2021 [3].

Assim, buscou-se regulamentar a prática costumeira da comunicação fora do horário de trabalho, limitando a subordinação perante o empregado e, por outro lado, definindo expressamente as garantias referentes não somente à desconexão, mas às novas regras do teletrabalho. Entre as medidas aprovadas, o empregador terá de pagar o acréscimo das despesas, incluindo a energia e internet que, para efeitos fiscais, tratar-se-ia de um custo das empresas, além de abster-se de contatar o trabalhador no seu tempo de descanso.

Interessante notar que a regra se aplica na generalidade dos trabalhadores, e não apenas aos que estão no regime de teletrabalho, e isso implica, por exemplo, em qualquer comunicação fora do ambiente de trabalho e da carga horária estabelecida. Contudo, a medida impõe uma complicada e subjetiva exceção, fornecendo ao empregador o poder de invocar a comunicação em circunstâncias excepcionais.

O Brasil, portanto, demonstra que está visivelmente desatualizado do movimento jurídico de seu tempo, cuja concretização desse direito na atual crise econômica e política torna-se uma tarefa de difícil execução.

No entanto, não há como não definir o direito à desconexão a um direito inevitável, fruto da irrevogável e contínua associação tecnológica na vida cotidiana. A caracterização de um suposto direito implícito no ordenamento jurídico não satisfaz de modo integral o direito ao pleno lazer de suas atividades extra laborais, enquanto a necessidade da atividade laboral e a subordinação do trabalho são empecilhos à satisfação de direitos ainda não positivados, sobretudo em um país com altas taxas de desemprego, pelo qual o aumento do tempo à disposição pode virar a regra.

[1] Ver. Capo II “Lavoro Agile”, artigo18 ss. Disponível em:  https://www.cliclavoro.gov.it/Normative/Legge-22-maggio-2017-n81.pdf.

[2] Ver. artigo 170.º (Privacidade de trabalhador em regime de teletrabalho). Disponível em: https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/2009-34546475-175393769.

[3] Ver. artigo 5º — Disponível em: https://dre.pt/dre/detalhe/decreto/3-a-2021-153959843.

Salus Henrique Silveira Ferro é advogado, mestrando em Direito e Ciência Jurídica na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), especialista em Derecho de Daños (Direito de Danos) pela Universidad de Salamanca (USAL) e pós-graduado em Direito Intelectual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

Revista Consultor Jurídico

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