O macabro leilão da Previdência Social

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

“Afronta faço, porque mais não acho, se mais achara, mais tomara; dou-lhe uma, dou-lhes duas, uma maior, outra mais pequenina; na praça vendo, na praça arremato; e porque não há quem mais dê, entrego o ramo.”

O inusitado linguajar da epígrafe, hoje praticamente esquecido — exceto em quermesses rurais, com as devidas adaptações —, por séculos compôs o rito dos meirinhos leiloeiros, que eram funcionários da justiça, responsáveis por leilões oficiais de bens por ela penhorados para pagamento de dívidas.

Os meirinhos leiloeiros o empregavam no afã de despertar a competição entre possíveis arrematadores dos referidos bens; a expressão “entrego o ramo” significava que o bem fora vendido; como símbolo da venda, o meirinho entregava um ramo verde àquele que ofertara o maior lanço, sacramentando a arrematação (compra do bem leiloado).

Ritual parecido, com requintes circenses, repetiu-se à exaustão, ao longo dos dias e noites em que a Câmara Federal discutiu e votou o parecer do relator, deputado federal Samuel Moreira, emitido na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, que trata da “reforma” da Previdência Social, e aprovado na comissão especial responsável pela primeira análise do seu mérito.

Ao contrário daquele de outrora, que se cingia a mercadorias penhoradas judicialmente, o leilão que a Câmara Federal acaba de promover teve como objeto a Previdência e a assistência social, dois dos esteios da Seguridade Social — o outro é a saúde, já sucateado pela Emenda Constitucional (EC) 95/2016.

O juiz do leilão foi o presidente da Câmara Federal, deputado federal Rodrigo Maia; o meirinho leiloeiro, o relator da PEC, deputado federal Samuel Moreira; os arrematantes foram os deputados da base do governo e os que a ela se alugaram.

Nesse macabro leilão de direitos previdenciários e de assistência social, tudo era tarifado, com lanço mínimo, fixado pela equipe econômica do governo e freneticamente defendido pelos arrematantes, em total inversão da lógica que norteava os leilões realçados na epígrafe.

Cada direito defendido pelos(as) deputados(as) que não compõem a base do governo nem a ela se alugaram, por meio de proposição de alteração ou de supressão dos dispositivos contidos no parecer em discussão, que os reduzem ou suprimem, era impiedosamente atacado pelo relator (meirinho leiloeiro) e pelos arrematantes, ao descarado e desumano argumento de que a manutenção do texto original representa a garantia de que, em dez anos, a redução ou a supressão do direito sob discussão gerará a economia de dezenas de bilhões de reais, que é tudo que importa; para cada direito reduzido ou suprimido pelo texto original, apresentavam o astronômico valor financeiro que será economizado.

Ilustra bem essa monstruosa lógica a ferrenha discussão sob o dispositivo que autoriza a redução da pensão por morte a valor inferior ao salário mínimo, quando o beneficiário dela, viúvo ou viúva, possuir outra fonte de renda formal, não importando o quanto; a sua supressão foi rejeitada mediante o frio argumento de que, com a sua manutenção no texto, o governo economizará, em dez anos, 162 bilhões de reais.

Com a aprovação, em primeiro turno, do destacado parecer do relator, Samuel Moreira, a Câmara Federal, institucionalmente, com o aval de 379 dos deputados federais que a compõem, mandou às favas a ordem social baseada no primado do trabalho e tendo como objetivos o bem-estar e a justiça sociais (Art. 193 da CF), rasgando a Previdência e a assistência social, que, juntamente com a saúde, dão-lhe sustentação.

Para a instituição Câmara Federal, direitos previdenciários e os milhões de cidadãos e cidadãs a quem eles asseguram vida com dignidade são meros conceitos numéricos e fiscais, que podem e devem ser sacrificados, sem nenhum pudor, sempre que isso interessar ao poder econômico e/ou ao governo que o servem.

Em uma palavra: a instituição Câmara Federal, como que parafraseando Quincas Borbas — que, em sua filosofia humanitas, apregoava — aos vencidos, compaixão ou ódio; ao vencedor, as batatas —, declara ódio e morte à mingua aos(às) segurados(as) da Previdência Social, em regimes próprios e no geral, derrotando-os, impiedosamente; e, ao mesmo tempo, declara submissão total e incondicionada ao poder econômico, único que ganhará com a reforma em questão.

Em que pese a absoluta falta de paridade entre o poderio do Congresso Nacional, que ora se põe na condição de destruidor da ordem social democrática, e as forças sociais, que lutam para defendê-la, a guerra ainda não se acabou; faltam um turno na Câmara Federal e dois no Senado.

Quem quer preservar a Previdência Social como maior e mais eficaz política de inclusão social e de distribuição de renda não pode esmorecer, nunca.

É fato incontestável que as forças sociais democráticas foram, até agora, fragorosamente derrotadas. Todavia, não foram nem serão vencidas, jamais.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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