Quem tem medo da ultratividade das normas coletivas?

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

1 O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou, ao dia 17 de junho corrente, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADP) 323, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) aos 27 de junho de 2014, contra a Súmula 277, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), atualizada em 2012, e que assegura a ultratatividade das normas coletivas estabelecidas em acordos coletivos e convenções coletivas, com o seguinte teor:

“SÚMULA N. 277 – CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE

As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.

Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25-9-2012”.

2 Aos 14 de outubro de 2016, o ministro Gilmar Mendes, relator dessa ADPF, em decisão monocrática com nada menos que 57 páginas, deferiu medida liminar, determinando a suspensão de todos os processos que versem sobre a garantia sob destaque, com a seguinte conclusão:

“Desse modo, em análise mais apurada do que se está aqui a discutir, em especial com o recebimento de informações do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e da 2ª Região, bem como por verificar, em consulta à jurisprudência atual, que a Justiça Trabalhista segue reiteradamente aplicando a alteração jurisprudencial consolidada na nova redação da Súmula 277, claramente firmada sem base legal ou constitucional que a suporte, entendo, em análise preliminar, estarem presentes os requisitos necessários ao deferimento do pleito de urgência.

Reconsidero, por esses motivos, a aplicação do art. 12 da Lei 9.868/1999 (eDOC 10).

Em relação ao pedido liminar, ressalto que não tenho dúvidas de que a suspensão do andamento de processos é medida extrema que deve ser adotada apenas em circunstâncias especiais. Em juízo inicial, todavia, as razões declinadas pela requerente, bem como a reiterada aplicação do entendimento judicial consolidado na atual redação da Súmula 277 do TST, são questões que aparentam possuir relevância jurídica suficiente a ensejar o acolhimento do pedido.

Da análise do caso extrai-se indubitavelmente que se tem como insustentável o entendimento jurisdicional conferido pelos tribunais trabalhistas ao interpretar arbitrariamente a norma constitucional.

Ante o exposto, defiro o pedido formulado e determino, desde já, ad referendum do Pleno (art. 5º, §1º, Lei 9.882, de 1999) a suspensão de todos os processos em curso e dos efeitos de decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho que versem sobre a aplicação da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, sem prejuízo do término de sua fase instrutória, bem como das execuções já iniciadas.

Dê-se ciência ao Tribunal Superior do Trabalho, aos Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e da 2ª Região e ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, para as necessárias providências (art. 5º, § 3º, Lei 9.882, de 1999).

Comunique-se com urgência.

Publique-se.

Brasília, 14 de outubro 2016. Ministro GILMAR MENDES”.

3 Os argumentos expendidos pelo relator na realçada medida liminar são um mau presságio para o desfecho da ADPF em questão, sob a perspectiva dos trabalhadores; ou seja, ao que tudo indica, a ultratividade das normas coletivas, no âmbito do STF, acha-se irremediavelmente fulminada, ao menos aos olhos do ministro relator.

Em reforço dessa nada alvissareira perspectiva, vem a decisão tomada, à unanimidade de votos, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2200 em face da medida provisória 1950-62/2000, convertida na Lei 10.192/2001, que revogou os dispositivos da Lei N. 8.542/1992, que assegurava a impugnada ultratividade e que tramitou por mais de 20 anos — foi ajuizada aos 27 de abril de 2000 —, sendo considerada prejudicada, tendo como parâmetro o disposto no Art. 614, § 3º, da CLT, que a veda, como se colhe da ementa do acórdão, assim exarada:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.950-62/2000, CONVERTIDA NA LEI N. 10.192/2001. REVOGAÇÃO DOS §§ 1º E 2º DO ART. 1º DA LEI N. 8.542/1992. ACORDOS E CONVENÇÕES COLETIVOS DE TRABALHO. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 13.467/2017. PREJUÍZO DA AÇÃO. 1. Argumentação genérica quanto à indicação de afronta ao inc. XXXVII do art. 5º da Constituição da República. 2. A conversão da Medida Provisória n. 1.950-62/2000 na Lei n. 10.192/2001 torna prejudicado o debate sobre o preenchimento da excepcionalidade exigida pelo art. 62 da Constituição da República. 3. Nos incs. VI e XXVI do art. 7º da Constituição da República não se disciplinam a vigência e a eficácia das convenções e dos acordos coletivos de trabalho. A conformação desses institutos compete ao legislador ordinário, que deverá, à luz das demais normas constitucionais, eleger políticas legislativas aptas a viabilizar a concretização dos direitos dos trabalhadores. 4. Superveniência da Lei n. 13.467/2017, que expressamente veda ultratividade no direito do trabalho brasileiro. Esvaziamento da discussão quanto à lei revogadora. Impossibilidade de repristinação das normas revogadas pelos dispositivos questionados. 5. Ação direta de inconstitucionalidade prejudicada”.

4 A marcha da ADPF 323 mostra-se bastante para demonstrar que o seu objetivo não é o restabelecimento de comando constitucional que, casuisticamente, teria sido violado pelo TST ao aprovar a nova redação da contestada Súmula 277, como afirma o ministro relator na citada medida liminar (“Em outras palavras, decanta-se casuisticamente um dispositivo constitucional até o ponto que dele consiga ser extraído entendimento que se pretende utilizar em favor de determinada categoria”). É, isto sim, o de supervalorizar os valores da livre iniciativa, em flagrante desapreço e desproteção dos valores sociais do trabalho.

5 Ei-la:

I a nova redação da Súmula 277 foi aprovada aos 28 de setembro de 2012;

II o ajuizamento da ADPF 323 deu-se aos 27 de junho de 2014, nada menos que 21 meses após a aprovação da referida redação;

III o deferimento da liminar postulada aos 27 de junho de 2014 somente ocorreu aos 14 de outubro de 2016; ou seja, 27 meses e 17 dias após o ajuizamento da ADPF e 4 anos e 16 dias da aprovação da nova redação Súmula impugnada.

Claro está, portanto, que a Súmula 277 não oferece risco algum para a segurança jurídica no âmbito das relações de trabalho, bem assim para o regular funcionamento das empresas. Importa dizer: sua impugnação, acolhida pelo ministro relator da ADPF 323, tem como único escopo impedir que as categorias profissionais tenham um mínimo de segurança jurídica ao iniciar processo negocial com vistas à renovação de convenções coletivas e/ou acordos coletivos, obrigando-as a começar cada um deles da estaca zero, como se discorrerá adiante.

6 Os argumentos do ministro relator mostram-se integralmente afinados aos da Confederação Nacional da Indústria (CNI), expendidos nas “101 propostas para modernização trabalhista”, apresentadas à então presidenta Dilma e ao Congresso Nacional em dezembro de 2012.

A rigor, o ministro relator extravasa oposição muito mais avessa à ultratividade das normas que a CNI.

A proposta de N. 4 versa sobre a ultratividade em debate, registrando, dentre outras assertivas, as seguintes:

“Custos

A ultratividade gera manutenção imprevista de custos decorrentes de condições criadas por normas coletivas negociadas em contexto de prazo determinado, podendo causar grandes dificuldades, pois nem sempre existem condições econômicas para manutenção de alguns benefícios que foram contratados com caráter provisório.

Insegurança jurídica

A ultratividade produz uma série de incertezas em relação à incidência em cláusulas coletivas de validade já expirada, ou a aplicação em normas coletivas negociadas antes da mudança da súmula, e mesmo sobre a possibilidade de retirada das vantagens coletivas, visto que integram os contratos individuais de trabalho. Isso significa que um benefício retirado por uma questão circunstancial, mesmo a partir de negociação, poderá vir a ser futuramente interpretado como direito adquirido pelo Poder Judiciário.

Restrições à produtividade/inovação

A ultratividade, ao desestimular a negociação coletiva, vai prejudicar a negociação de condições diferenciadas de trabalho que poderiam trazer ganhos de produtividade (tais como: jornadas de trabalho diferenciadas, por exemplo), impactando em planos de investimento. Outras •Ao desestimular a negociação coletiva, a ultratividade também reduz a concessão de benefícios por meio convenções ou acordos coletivos, visto que eles tenderão a permanecer eternamente, pois só poderão ser retirados por negociação. Isso sem contar a possibilidade de estarem sendo criados passivos para as empresas em caso de negociação para retirada de benefícios.

Proposta

Acabar com a ultratividade e estabelecer o prazo de até quatro anos para as cláusulas dos acordos e convenções coletivas, com elas não integrando o contrato de trabalho.

Ganho esperado

Melhor ambiente para negociação coletiva e maior segurança jurídica, com redução da incerteza sobre as condições de trabalho vigentes em períodos superiores a dois anos, facilitando a concessão de benefícios nas negociações. Já o aumento do prazo de vigência das cláusulas coletivas, por um período razoável, incide de maneira oposta, pois permite maior previsibilidade das condições de trabalho e elaboração e execução de planos de trabalho de longo prazo.

Medida necessária/instrumento

Projeto de lei para alteração do §3º do artigo 614 da CLT ou revisão da Súmula 277 do TST”.

Já o relator, em excertos de sua decisão, derrama as seguintes assertivas, em tom figadal:

“Vê-se, pois, que, ao mesmo tempo que a própria doutrina exalta o princípio da ultratividade da norma coletiva como instrumento de manutenção de uma certa ordem para o suposto vácuo existente entre o antigo e o novo instrumento negocial, trata-se de lógica voltada para beneficiar apenas os trabalhadores.

Da jurisprudência trabalhista, constata-se que empregadores precisam seguir honrando benefícios acordados, sem muitas vezes, contudo, obter o devido contrabalanceamento.

Ora, se acordos e convenções coletivas são firmados após amplas negociações e mútuas concessões, parece evidente que as vantagens que a Justiça Trabalhista pretende ver incorporadas ao contrato individual de trabalho certamente têm como base prestações sinalagmáticas acordadas com o empregador. Essa é, afinal, a essência da negociação trabalhista. Parece estranho, desse modo, que apenas um lado da relação continue a ser responsável pelos compromissos antes assumidos – ressalte-se, em processo negocial de concessões mútuas”.

7 Ao reverso dos que sustentam a CNI e o ministro Gilmar Mendes em seus aleivosos assaques, a ultratividade das normas previstas em convenções e acordos coletivos de trabalho não quebra o princípio contratual do sinalagma (obrigações para as duas partes contratantes), não beneficia apenas os trabalhadores, não inibe e muito menos desestimula a negociação coletiva.

O seu grande mérito, e é que isso que leva a CNI e o ministro Gilmar Mendes a rechaçá-la com tanto furor, é o de garantir o mínimo de paridade de armas entre representantes patronais e laborais, posto que assegura que nenhuma negociação coletiva tenha de se iniciar do ponto zero, como o é hoje, como se jamais tivesse existido, antes; isso, após a já comentada decisão liminar do ministro Gilmar Mendes, do reconhecimento de constitucionalidade da exigência de comum acordo, feita pelo STF na ADI 3431, da qual esse ministro foi também relator, e da falta de punição para prática antissindical de representantes patronais.

O ministro Maurício Godinho Delgado, do TST, em Direito Coletivo do Trabalho (2107), assim conceitua a ultratividade das normas coletivas:

“Buscando-se preservar o debate acadêmico e científico nesse específico ponto — ou seja, incentivo à negociação coletiva trabalhista e vedação à interpretação concernente à ultratividade provisória de regras de ACT ou CCT (interpretação constante da atual Súmula 277 do TST) —, cabe reenfatizar que a negociação coletiva trabalhista supõe o respeito a certos princípios e/ou requisitos, sob pena de se transformar em perverso instrumento de precarização de direitos individuais e sociais fundamentais trabalhistas, sem contar de manifesta inversão da lógica e estrutura normativas e principiológicas da Constituição da República, que são fundadas, como se sabe, na centralidade da pessoa humana na ordem social e na ordem jurídica”.

Nesse cenário, que tem como artífices a Emenda Constitucional 45/2004, a Lei N. 13.467/2017 (que altera a redação do Art. 114, § 3º, da CLT, como postulava a CNI, desde as comentadas “101 propostas de modernização trabalhista”) e o STF (no julgamento da ADI 3431), nenhum direito anteriormente convencionado sobrevive ao termo de vigência da norma coletiva que o assegure. Ou seja, cada negociação coletiva ecoa como a maldição de Sísifo — que, eternamente, tinha de rolar gigantesca pedra da base ao cume e, mal atingia este, voltava à base —, pois que, inevitavelmente, tem de rediscutir e reconquistar todas as garantias anteriores, como se fosse a primeira vez, sendo essas sistematicamente negadas pelos representantes patronais.

Portanto, falar em valorização da negociação coletiva — proposta 1 das 101 da CNI — soa como hipocrisia e como algo completamente divorciado da realidade negocial, na esmagadora maioria daquilo que hoje é tido como processo negocial.

A realidade concreta nas relações capital e trabalho insiste em negar a eloquência da CNI e do ministro Gilmar Mendes no quesito negociação coletiva, posto que o único mote capaz de fazer com que os representantes patronais sentem-se à mesa negocial com o mínimo de probidade e boa-fé é a ultratividade das normas coletivas, que é de natureza provisória, ou seja, que outra de igual natureza venha modificar, reduzir e/ou suprimir o que nelas se acha definido.

O sepultamento definitivo da ultratividade das normas coletivas que se prenuncia — até que o Congresso Nacional, em conduta diametralmente oposta à atual, decida revogar o § 3º do Art. 614 da CLT, e, como corolário, garanti-la provisoriamente, como o faz a Súmula 277 do TST — soa como a filosofia “Humanitas”, de Quincas Borba, do livro homônimo de Machado de Assis: “ao vencido, compaixão ou ódio; ao vencedor, as batatas”; o que, aliás, fazem a CLT, a CNI e o ministro Gilmar Mendes.

Por enquanto, resta aos trabalhadores e suas organizações sindicais a pálida esperança de que os demais ministros do STF não façam coro com o relator da ADPF 323, o que parece tão distante quanto o fim da pandemia da Covid-19.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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