Reflexões sobre a crise de representatividade sindical

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

O poeta barroco Gregório de Matos (1636-1696) — conhecido como “Boca do Inferno”, por suas ferinas sátiras — sentencia, nos primeiros versos do poema “Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu: “O todo sem a parte não é todo/A parte sem o todo não é parte/ Mas se a parte o faz todo, sendo parte/ Não se diga que é parte, sendo o todo”.

Esses emblemáticos e enigmáticos versos, por motivos diversos daqueles que ensejaram o poema — a profunda e franca religiosidade do poeta —, calham bem na recorrente e interminável contenda sobre a crise de representatividade dos sindicatos brasileiros, superdimensionada por quem quer desacreditá-los. E não são poucos. Compõem essa poderosa ala os empresários e os seus representantes no Congresso Nacional e na grande mídia, ministros do STF — ao que parece, sem exceção —, do TST — a maioria —, juízes do trabalho e advogados trabalhistas — ambos em expressiva parcela —, dentre outros.

Essa crise ganha novos contornos com os recentes dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), divulgados ao dia 18 de dezembro corrente, que atestam que foram perdidos 1,5 milhão de filiações sindicais em 2018 e 2,9 milhões desde o ano de 2012.

Salvo raras exceções, os que se propõem a explicar essa crise de representatividade contentam-se com a parte, fazendo dela o todo, que, na vesga ótica deles, não decorre de um contexto maior e que, por isso, não demanda nem comporta outras causas.

Para esses analistas, em grande número insinceros em suas análises, essa crise é causada, só e somente, pela incontestável inércia de amplo leque de dirigentes sindicais com pouco ou nenhum elo de ligação com os representados pelas entidades que dirigem, o que, além de não atrair os não sócios, afasta os que já o são.

Com essa visão propositalmente reducionista, apregoam a pluralidade sindical como primeiro e único remédio para que se cure tal mal, o que, convenha-se, não se reveste de sinceridade e, menos ainda, de honestidade.

Se as duas primeiras conclusões são verdadeiras, a última e as premissas não o são. Primeiro, porque as apontadas inércia e falta de ligação entre dirigentes e representados não são a primeira nem a maior causa da decantada crise.

Segundo, porque a pluralidade é uma forma de organização sindical, jamais a única. Forma, aliás, que tanto pode ser exitosa, como inexitosa, a depender do cenário sócio-político em que foi e/ou for implantada. No Brasil, neste cenário de destruição total dos direitos fundamentais sociais, a toda evidência, seria a derradeira pá de cal das organizações sindicais, que ou seriam apêndices do capital, como nos EUA, ou não teriam qualquer poder de mobilização e representação, sonho da maioria dos que defendem a pluralidade para o Brasil.

Sem se descurar e, muito menos, desprezar essa causa, que é parte e não o todo, é preciso que se busque este. Muito embora, parafraseando o citado poeta, essa parte, em certa medida, contenha o todo, mas não o é, em sua inteireza; longe disso; cingir-se a ela significa abdicar-se do conhecimento das outras, inegavelmente maiores e mais decisivas.

Nega a realidade, que é patente, independentemente de seu reconhecimento, quem passa ao largo do intensivo e permanente processo de deterioração das condições de trabalho, levado ao extremo pelas leis da reforma (ou deforma) trabalhista — Lei N. 13.429/2017, que rompe todos limites da terceirização, e Lei N. 13.467/2017, que reescreve a CLT, transformando-a em consolidação das leis do capital (CLC), esvazia as funções sindicais, posto que a maioria dos direitos pode ser diminuída e/ou suprimida por ‘acordo individual’ —; da drástica redução de postos de trabalho decentes, com o contrato formal, substituído por contratos informais; dos mais de 12 milhões de desempregados.

Nesse sentido, mostra-se bastante elucidativa a afirmação da analista da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE, Adriana Beringuy, ao comentar os mencionados dados da Pnad: “Sabemos que essa população ocupada que cresce é muito calcada em trabalhadores por conta própria e empregados sem carteira assinada. Esses dois segmentos, tradicionalmente, não têm uma grande mobilização sindical”.

Na sincera busca pelas causas determinantes da crise de representatividade sob discussão, há de se incluir, também, necessária e obrigatoriamente, o entrave que representa o enquadramento sindical ditado pelo Art. 511 da CLT — determinado pela atividade econômica preponderante de cada empresa —, que se encontra superado e incapaz de dar respostas aos novos desafios impostos pela realidade social adversa, mas que permanece incólume no insistente e retrógrado entendimento da Justiça do Trabalho.

Graças a essa espúria combinação entre o superado Art. 511 da CLT e a jurisprudência da Justiça do Trabalho, milhões de trabalhadores, sobretudo terceirizados e os submetidos a contratos que visam a fraudar o vínculo empregatício sob a nefasta denominação de autônomos, pessoas jurídicas — conhecidas no mundo sindical como pejotas—, cooperados e outras variações fraudulentas são alijados da representação e da proteção sindicais e abandonados à própria sorte, posto que a eles são negados todos os direitos trabalhistas decorrentes de normas heterônomas (CF, leis, medidas provisórias e decretos) e de normas autônomas (convenções e acordos coletivos).

Urge que se adotem medidas efetivas de inclusão desse contingente de trabalhadores sem eira nem beira, metaforicamente falando.

Não obstante a fundamental e premente necessidade de se desprender da parte para buscar o todo, que contém todas as causas da discutida crise de representatividade sindical, há iguais necessidade e premência de se reconhecer como causa de significativo peso, na composição do todo, o já comentado divórcio entre considerável parcela dos sindicatos e suas respectivas categorias, às quais tem o dever de bem representar, mas que não envida esforço algum para o fazer.

Há anos, essa parcela sindical age como os imaginários planetas Eminiar 7 e Vendikar, do episódio “O gosto de Armagedon”, da fantástica série Jornada nas Estrelas, exibido em 1967. Esses planetas guerrearam entre si durante nada menos que cinco séculos, o que os levou a desenvolver com tal maestria a arte da guerra que a faziam por meio de seus computadores, sem um só soldado e/ou arma de guerra.

O computador de cada um desses planetas beligerantes desfechava os seus periódicos ataques sobre o inimigo. Ao final do ataque, o atacante computava o número de supostas baixas, comunicando-o ao atacado, que, pelo tratado de guerra firmado entre eles, era obrigado a exterminar igual número de pessoas reais, fazendo-o em sofisticada máquina de desintegração humana, construída exclusivamente para essa finalidade.

A realçada parcela sindical há muito prescindiu de tudo: da luta, da mobilização e até do contato direto com os integrantes de suas categorias, que sequer são visitados pelos dirigentes de suas entidades ou convidados a filiar-se a elas. Não é nada incomum os trabalhadores desconhecerem a sede da entidade e os seus diretores.

As atividades dessa parcela sindical resumem-se a esporádicos boletins eletrônicos, a sítio de notícias, a mensagens por redes sociais e a assembleias fictícias, formalmente convocadas por propositais despercebidos editais para o horário em que todos ou quase todos os trabalhadores estão cumprindo as suas atividades.

Com isso, os instrumentos normativos (convenções e acordos coletivos), quando existentes, ou se constituem em mera repetição de textos legais e/ou, o que é pior, em redução e supressão de garantias previstas nesses.

Essa parcela sindical, em verdade, age — se é o que faz pode ser considerado ação — como os referidos imaginários planetas Eiminiar 7 e Vendikar, resumindo suas parcas e inexpressivas atividades ao uso das tecnologias de comunicação e informação. Um real e incontestável descalabro, que desserve ao movimento sindical de linha de frente e à renhida e cada dia mais cruenta luta pela efetiva construção da ordem democrática.

A vida social real é farta em inestimáveis e inapagáveis lições, segundo as quais guerra de classe, marca maior da atividade sindical, voltada para a construção do Estado Democrático de Direito, não se faz por computador nem por boletins impressos e/ou eletrônicos. Faz-se, isto sim, e tão somente, por meio de milhões de trabalhadores sindicalizados e unidos aos seus respectivos sindicatos, em prol da dignidade e dos valores sociais do trabalho, sem os quais aquele se resume a mera figura de retórica, o que se constitui na meta primeira e principal de quem almeja o enfraquecimento dos sindicatos, em repugnante benefício do capital predatório.

Destarte, a retomada do movimento sindical massivo e de intensas luta é tarefa inadiável de todos quantos cultuam a ordem democrática.

A hora é agora; ao depois, será muito tarde.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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