“Reforma administrativa proposta pelo governo federal destrói o Estado brasileiro como o conhecemos hoje”.

Secretário-geral da Associação Americana de Juristas (AAJ) no Brasil e integrante do Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos, o advogado trabalhista Guilherme Zagallo é uma voz de destaque no questionamento da reforma administrativa que tramita no Congresso Nacional. Protocolada no Senado em setembro deste ano, a PEC 32 é vendida por seus proponentes como uma alteração fundamental para sanear os cofres federais e melhorar o funcionamento da máquina pública – mas pouco se fala publicamente o que de fato está na proposta, resumindo as discussões a pouco mais que uma reprodução de conceitos vagos e frases feitas.

É contra esse esvaziamento do debate que Zagallo tem se mobilizado. Em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, o advogado explica as origens ideológicas do projeto e disseca pontos que podem ser especialmente negativos para o Estado brasileiro como um todo. Possibilidades como o fim da estabilidade para novos servidores, a ampla terceirização de serviços e os amplos poderes para o Presidente da República criar e extinguir Ministérios e órgãos criam preocupação sobre o futuro do serviço público brasileiro – algo que, como alerta Zagallo, também afeta os atuais servidores, em um passo para trás que praticamente elimina o regime consagrado na Constituição de 1988.

DMT – Quais são, por assim dizer, as origens dessa proposta de reforma administrativa? Sabemos que ela não é a única que está tramitando, mas é considerada a principal e as discussões estão centralizadas em torno dela…

Guilherme Zagallo – A PEC 32 foi protocolada em setembro pelo Senado Federal. Ela está fundada, basicamente, em dois documentos produzidos pelo Banco Mundial – e é bom mencioná-los pelo nome, porque chegam a ser assustadores. Falam abertamente, por exemplo, em congelamento de remuneração de servidores públicos estaduais e federais pelos próximos anos. Isso, embora não seja parte do conteúdo formal da proposta (de reforma), provavelmente tende a ser uma política que vai ser regra pelos próximos anos… Então, a proposta basicamente segue as recomendações expressas nesses dois documentos, que se chamam “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, que é de 2017, e “Gestão de pessoas e folha de pagamento no setor público brasileiro: o que os dados dizem”, de 2019. Afora esses dois documentos, não há nenhuma análise, nenhum documento de estudo anexado. A mensagem encaminhada pelo chefe do Executivo ao protocolar a PEC refere-se muito rapidamente aos servidores federais, não examina quase nada dos servidores estaduais e municipais, que são a maioria. O Brasil tem hoje 11,4 milhões de servidores; desses, 6,5 milhões são servidores municipais e 3,7 milhões de servidores estaduais – a União, mesmo, tem mais ou menos 1,2 milhão de servidores, ou seja, pouco mais de 10% do total.

Logo após o protocolo, o governo colocou em sigilo os estudos técnicos que eles dizem que levaram em conta para a elaboração. A Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público no Congresso entrou com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal para ter acesso a essa proposta, mas ainda não foi apreciado (a conversa aconteceu em fins de outubro). Esse roteiro é parecido com o que aconteceu na Reforma da Previdência, com estudos que foram colocados em sigilo enquanto o projeto estava na Comissão de Constituição e Justiça, e somente quando foi a plenário – e novamente por decisão judicial – é que os estudos foram tornados públicos.

DMT – O senhor tem se mobilizado fortemente na crítica a essa proposta de reforma. Quais são, na sua visão, os pontos mais preocupantes da PEC que está sendo apreciada no Congresso?

Guilherme Zagallo – Uma coisa que eu sempre tenho dito nessas oportunidades é que o governo está falando em uma reforma administrativa, mas não detalha para a população que 35% dos servidores atingidos são das áreas de saúde e educação. Aliás, o governo fala muito em combater os supersalários, mas esses não são atingidos pela reforma. Os membros de poder, ou seja, os parlamentares, juízes, promotores, não vão ser atingidos, tampouco os militares. Ou seja, temos um contingente que está excluído, e é nele que se localiza boa parte dos problemas de supersalários, do teto descrito na Constituição que não é respeitado. Tudo isso é simplesmente ignorado pela proposta de reforma. (Os supersalários) não serão tocados, serão preservados.

Aliás, o governo vai habilmente construindo uma série de falácias na construção dessa proposta. A primeira é essa mesma, de que vai combater algo que, na verdade, não será sequer tocado. Outra dessas falácias é dizer que os atuais servidores não serão atingidos; serão, sim, e muito. Essa PEC basicamente destrói o Estado brasileiro como a gente o conhece hoje. Ela é desenhada para permitir a terceirização ampla de serviços públicos, para criar um serviço público sem servidores, mas sim com funcionários terceirizados, seja por Organizações Sociais, OSCIPs – essas que, por exemplo, estiveram recentemente envolvidas em graves irregularidades no combate à Covid-19 em alguns estados –, cooperativas, ou seja, todas essas formas de privatização da prestação do serviço público. Ela não traz nenhuma garantia de preservação das atuais carreiras, porque uma das propostas da reforma é transferir, do Congresso para o chefe do Executivo, todas as deliberações sobre cargos já existentes. O presidente poderá extinguir órgãos e carreiras, agregar carreiras em outras, transformar cargos, e tudo isso por decreto, sem precisar de aval do Congresso. Com isso, mesmo um servidor já aposentado ou que já tenha tempo de serviço para se aposentar talvez ache que não vai ser atingido pela reforma, mas é bastante simples: basta que seja criada uma nova carreira e o cargo dele seja extinto ou fique ao vagar e a paridade com a qual eles foram admitidos desaparece. Paridade com cargo extinto significa que vocẽ tem proventos congelados até sua morte. As novas carreiras que seriam criadas e eventuais benefícios, reajustes que fossem concedidos etc., não seriam estendidos a esses aposentados.

Também esses poderes plenos, quase absolutos de lidar com as carreiras pelo chefe do Executivo fazem com que não haja garantia nenhuma para os atuais servidores de promoções ou progressões. Carreiras que lutaram durante décadas para conquistar planos de carreira poderiam, por simples decreto, ter todo esse trabalho desconstruído e, daqui para frente, ficarem sem nenhum tipo de reconhecimento pela sua qualificação. Além de que esses atuais servidores também poderão ser demitidos de forma muito mais fácil. A avaliação de desempenho deles não precisará ser mais por lei complementar, mas será possível por lei ordinária, que é mais simples de ser aprovada no Congresso e pode ser editada inclusive por medida provisória. Há uma permissão nessa reforma de que as atuais funções de confiança sejam transformadas em cargos de liderança e assessoramento, inclusive cargos técnicos.

DMT – Ou seja, podemos ter um cenário futuro em que todos os chefes sejam de fora do serviço público…

Guilherme Zagallo – Exato, o desenho é esse. (Atualmente) você tem as funções de confiança, e 100% delas devem ser exercidas pelos servidores, e, para os cargos mais altos, parte delas pode ser exercida por pessoas de fora. Ou seja, você tem uma certa profissionalização; admite-se que pessoas de fora do governo venham a exercer cargos, mas de forma limitada. No modelo que se coloca (com a proposta de reforma), todos podem ser de fora, sem nenhum tipo de reserva. O fisco pode ser dirigido por pessoas que não são da carreira de auditores fiscais; professores podem ser dirigidos por pessoas de outras carreiras, que nem professores são; a diplomacia pode ser exercida por pessoas que não tenham a formação, que não passaram pelo Instituto Rio Branco. Enfim, se você for levar ao pé da letra, você tem enormes desdobramentos possíveis a partir dessa possibilidade de que todos os cargos de liderança e assessoramento possam ser preenchidos por pessoas que não são dos quadros de servidores públicos.

E note que estou mencionando aqui somente exemplos que afetam os atuais servidores, nem estou falando ainda do desenho para os futuros servidores. Para o futuro, mesmo já estando aposentado ou com tempo de serviço para me aposentar, eu não tenho garantia de paridade; se eu estou no cargo ainda, eu posso ser demitido mais facilmente; posso ser comandado por pessoas que não integram a carreira. E a minha carreira pode desaparecer da noite para o dia, por simples força de decreto. O que o governo colocou como regra de transição, assegurando alguns direitos, chega a ser uma piada. Porque o texto diz “ficam assegurados…” e aí elenca nove tipos de direitos, mas basta ser editada uma medida provisória ou aprovada uma lei no Congresso que essas garantias não valem mais nada. Então, o governo está conseguindo produzir uma bela peça de publicidade enganosa, para minimizar a reação dos atuais servidores à proposta dizendo que ela não afeta os atuais servidores. Afeta, e afeta bastante.

DMT – Escutamos com frequência uma narrativa de que há servidores públicos demais no Brasil, que os salários do funcionalismo consomem grande parte dos recursos do País, que não há ferramentas adequadas para cobrança de resultados e medição de desempenho… Tudo isso reflete uma preocupação genuína com as contas públicas, ou há um subtexto político-econômico dissimulado nessa reforma?

Guilherme Zagallo – Acho que temos vários interesses conectados. O primeiro deles é meramente fiscalista, de diminuir o desembolso com servidores públicos. Mas há uma mentira e uma falácia nesse processo, de dizer que houve uma explosão nos custos com servidores. O que houve é um crescimento absolutamente proporcional ao PIB do período – e, aliás, um crescimento concentrado nos servidores municipais, que saíram de 1 milhão para cerca de 6,5 milhões de servidores. Quando você olha a participação com relação ao PIB do desembolso tanto dos servidores municipais quanto estaduais e federais, é uma linha estável, praticamente reta, ou seja, não há crescimento. Os servidores, hoje, ultrapassam um pouco os 10% do PIB, mas quando você vai ver a decomposição desse número, os servidores federais ficam em um pouco mais de 4%, os municipais tiveram um crescimento um pouco maior e chegaram a quase 4%, e os servidores estaduais são uma linha quase reta, em torno dos 2%. Então, houve um aumento de desembolso, mas ele foi completamente vinculado ao aumento da atividade econômica no período. Mesmo o discurso de que temos servidores demais não faz sentido. O Brasil tem cerca de 12% das ocupações pelo setor público. Nos países da OCDE, a média fica em torno de 21,3%.

Então, esse interesse fiscalista é um que se manifesta, mas há outros. Com a terceirização, se abre um mercado de trabalho. São 12 milhões de postos de trabalho, e boa parte deles pode ser transferida para a iniciativa privada, o que gera oportunidades de negócio e também permite um aparelhamento. Aí cabe falar também do desenho para os novos servidores: estabilidade só para os chamados cargos de Estado, que não estão definidos ainda, em um sistema de avaliação por três fases, provas e títulos, então um ano de experiência e avaliação. Com esse processo, você vai ter pessoas disputando posições, mesmo nos postos de trabalho mais precários e sem estabilidade. Você pode nomear 1.000 pessoas, mesmo que só tenha 200 vagas disponíveis. Imagine os limites éticos dessas pessoas lutando por um espaço, tentando assegurar sua aprovação a partir de uma avaliação que será feita ao final do período. As pessoas vão cumprir a lei, vão cumprir suas obrigações, ou vão tentar agradar aos avaliadores? Que tipo de coisas essas pessoas vão fazer, em relação a seus colegas de trabalho, para derrubá-los no processo de avaliação, já que é possível ter mais pessoas chamadas para contratos de experiência do que o número de vagas previsto em edital? Chega a ser uma coisa meio doentia, esse desenho de Estado que está sendo colocado.

Ela (reforma administrativa) cria cinco tipos de contratações possíveis: vínculo de experiência, como etapa do concurso público; vínculo por tempo determinado, o que hoje é permitido, mas por exceção, para demandas muito específicas tipo o Censo ou uma campanha de vacinação, e passaria a ser uma regra; o cargo com vínculo por prazo indeterminado, o que passaria a ser o novo normal, para usar uma expressão do momento; o cargo típico de Estado, um conceito que vem da Lei 6.185 de 1964, ou seja, dos tempos de ditadura, e esse sim o único que teria estabilidade; e o cargo de liderança e assessoramento. Então, desses cinco tipos de cargo, apenas um tem vínculo permanente com o Estado. Mas isso se refere aos servidores em si, porque o que a proposta cria é a possibilidade, pelo princípio da subsidiariedade, de contratação de servidores por meio de cooperação com entidades pública e privadas – ou seja, liberdade plena para terceirização dos serviços públicos. Você vai ter uma substituição de políticas de Estado por políticas de governo: para entrar no cargo você vai depender de uma avaliação política, e para permanecer no cargo você vai depender de uma avaliação política. Os servidores que sobreviverem no serviço público vão estar muito mais preocupados em agradar o governante de plantão do que em cumprir a lei ou as suas obrigações. E, na outra ponta, essa permissão ampla de terceirizações no serviço público. Chega a ser inacreditável que em plena pandemia, quando o mundo percebeu a importância de um Estado forte, capaz de enfrentar uma catástrofe ambiental da dimensão que a pandemia nos trouxe, que a gente esteja desenhando aqui (no Brasil) um Estado ou privatizado, ou precário.

DMT – Essa possibilidade que o senhor menciona, de amplos poderes para o Presidente da República criar, ampliar e extinguir cargos… Não ficamos demasiado à mercê dos interesses do grupo político da vez?

Guilherme Zagallo – A cada quatro anos você vai ter um Estado desenhado à imagem e semelhança do chefe do Executivo. Então, políticas de longo prazo… Educação, por exemplo. Você não consegue mudar substancialmente políticas de educação em quatro anos, porque o período de formação de um aluno supera uma década. Vacinação, a mesma coisa: para ter cobertura vacinal é preciso uma política de governo, porque é preciso que, ao longo dos anos, sejam dadas doses de reforço… Se é fácil extinguir órgãos, fundir, transformar atribuições, se todos os cargos de chefia são partidarizados e preenchidos por pessoas de fora, tudo isso desprofissionaliza o serviço público, e a tendência é que você forme um estado à imagem e semelhança do grupo que tenha sido mais votado na eleição presidencial. Digamos que em quatro anos a população não aprova (esse governo), então você vai ter uma nova eleição, um novo grupo que possivelmente vai ter uma divergência de 180 graus (com o governo anterior). Imagine como vai ficar a implementação de políticas públicas. É o caos. Cria-se um sistema caótico, um Estado disforme e autoritário. Não existe a menor chance de essa proposta melhorar o serviço público brasileiro, pois ela é desenhada não para atender as demandas da sociedade brasileira, mas para servir ao projeto político de quem esteja comandando o Brasil em determinado momento.

DMT – E quais deveriam, na sua visão, ser as premissas para uma reforma administrativa adequada e capaz de efetivamente melhorar o serviço público? 

Guilherme Zagallo – O teto salarial tinha que ser cumprido, para começo de conversa. É verdade que, em algumas categorias, o teto vira piso, com indenizações que às vezes não observam prazos prescricionais. Alguns setores do serviço público brasileiro têm um tratamento salarial que supera os seus pares no mundo, como a magistratura, o Ministério Público. É claro que devem ser bem remunerados, mas dentro dos limites legais. É muito comum, dentro dessas carreiras, que o pagamento ultrapasse o teto constitucional. É uma distorção que faz do Estado um mecanismo de concentração de renda.

Já houve, por parte do Judiciário, a admissão de que parte do serviço público pode ser terceirizado em atividades essenciais. Agora mesmo, na pandemia, boa parte dos médicos já estão atuando em organizações sociais, e isso cria um problema pela dificuldade de estabelecer políticas de longo prazo, da ação consistente. Eu acho que deve haver alguma flexibilidade, no sentido de permitir uma contratação temporária para enfrentar uma situação temporária, como agora aconteceu (na pandemia). Mas você ter regularmente atividades de saúde sendo realizadas de forma terceirizada me parece uma disfunção do modelo atual e, na verdade, seria preciso dar um passo para trás. A saúde, a educação e a segurança são consideradas as principais demandas pela população, então deveria haver um passo atrás para impedir que esses setores sejam exercidos regularmente de forma terceirizada, qualquer que seja a modalidade de terceirização. O governo pretende agora liberar essa terceirização de forma ampla, sem limites, mas acredito que seria necessário um recuo nisso.

DMT – Existe alguma perspectiva de melhorar a proposta de reforma administrativa, tal como ela está colocada? Ou é preciso promover uma mobilização, de forma a buscar que ela recomece do zero?

Guilherme Zagallo – É difícil melhorar essa proposta, porque ela não é uma proposta de melhoria do serviço público, mas de desconstrução do serviço público. Então, você vai no máximo fazer contenção de danos, diminuir os prejuízos, negociar modificações ou mitigações. Acho que a luta da sociedade… E nem falo somente dos servidores, não, porque, em última instância, tudo isso fala menos dos servidores e mais do interesse da sociedade. Se 35% dos servidores são professores e profissionais da saúde… Acho que a luta da sociedade brasileira seria de impedir que essa emenda seja aprovada pelo Congresso.

Essa proposta é uma volta no tempo: a gente volta ao Brasil anterior à Constituição de 1988, onde todo prefeito eleito demitia todo o funcionalismo existente e contratava os seus preferidos. As ferramentas que estão postas aí vão permitir isso – não em um curtíssimo prazo, porque os remanescentes do regime anterior estarão aí por algum tempo, mas as ferramentas estão postas para voltarmos a um estágio anterior a 1988, no qual ao vencedor pertencia o espólio. Sobretudo em prefeituras pequenas do interior isso será comum, e isso é uma loucura, porque você não preserva nada. É um passado que a gente imaginava superado, vencido, mas podemos estar retornando a ele. O serviço público precisa melhorar e evoluir, a sociedade clama por isso, mas certamente não é nessa direção.

Democracia e Mundo do Trabalho

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