Renato Janine: ‘Precisamos garantir o ensino, desde cedo, do método científico’

Novo presidente da SBPC, professor aposentado da USP e ex-ministro da Educação se diz surpreso com o negacionismo que se revelou durante a pandemia de covid-19

Em junho deste ano, o filósofo, cientista político, professor e escritor Renato Janine Ribeiro foi eleito presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC. Nesta entrevista ao Portal UFMG, Janine, que é docente aposentado da USP e foi ministro da Educação por sete meses em 2015, fala de sua surpresa com o negacionismo científico que se revelou no Brasil durante a pandemia de covid-19, reforça o compromisso da SBPC com a defesa da universidade pública e enfatiza a importância da educação básica.

Segundo ele, só uma educação básica de qualidade pode assegurar oportunidades iguais para todos. “Eu arrisco sugerir que 70% das vocações brasileiras não são sequer identificadas, por causa das falhas na educação e na alimentação”, afirma o professor, que participa, nesta quinta, dia 8, às 9h, de mesa-redonda que integra a programação do Dia da Ciência na UFMG.

Qual a sua visão geral da SBPC e como encontra a entidade?

A SBPC é uma das grandes entidades da sociedade civil capazes de defender as principais causas relacionadas ao futuro do Brasil, que estão centradas na ciência, mas se expandem para a cultura, para a educação em geral, para o setor público da educação, que é essencial no país, bem como saúde, meio ambiente e inclusão social. Esse conjunto de assuntos compõe um círculo virtuoso que possibilitará ao Brasil crescer, tornar-se um país mais justo e mais produtivo. Hoje, o Brasil tem o desempenho de um terço de suas potencialidades, uma vez que um terço da população brasileira não dispõe de oportunidades adequadas – em termos de educação, alimentação, moradia, transporte – para realizar todas as suas qualidades, todas as suas vocações. O Brasil desperdiça um número gigantesco de vocações. Eu arrisco sugerir que perto de 70% das vocações brasileiras não são identificadas, o que significa que desperdiçamos possíveis cientistas, artistas, médicos, empresários, simplesmente porque eles não tiveram condições de encontrar seu caminho, dadas as falhas de educação e até mesmo de alimentação em sua formação.

Eu encontro a SBPC sob uma boa liderança, a de Ildeu Moreira, que lutou com muito empenho em defesa das grandes causas que eu mencionei anteriormente, e nós pretendemos dar continuidade a esse trabalho. Por um lado, temos que defender essas causas, porque o futuro depende delas. Vivemos na sociedade do conhecimento. Tem que haver muita inteligência envolvida. A ideia de que o Brasil atrai o investimento internacional com mão de obra barata e sem qualificação e licença para poluir à vontade está superada há muito tempo. Só vamos voltar a ser protagonistas e ter uma economia pujante se cuidarmos bem do meio ambiente e desenvolvermos mão de obra com muita qualidade.

Nesses tempos de crise, ao mesmo tempo que tantas esperanças são depositadas na ciência, ela tem sua credibilidade solapada pelo negacionismo, pelo populismo político. O que a pandemia tem revelado e tornado mais urgente no que se refere ao papel da ciência?

A pandemia nos colheu de surpresa, claro, mas faz parte da surpresa a quantidade de pessoas que não acreditam nas descobertas da ciência, assim como a facilidade com que superstições sem nenhuma base se difundem. Por isso, um papel relevante de todas as pessoas que estão comprometidas com a educação, comprometidas com a vida, é garantir uma educação científica melhor, garantir sobretudo que as pessoas aprendam desde cedo o que nós chamamos de método científico. Ou seja, em vez de se acreditar numa coisa só porque alguém poderoso disse, é preciso ser capaz de perguntar, questionar, usar o raciocínio, a lógica, a observação empírica para fazer suas escolhas. Esse é um papel absolutamente relevante que a ciência precisa desempenhar agora.

Qual será sua postura, à frente da SBPC, sobre as universidades públicas, considerando as restrições de orçamento e o questionamento sobre a autonomia das instituições?

A SBPC sempre defendeu as universidades públicas. Elas são as melhores do Brasil, principalmente as públicas ou de espírito público. É essencial a gente lutar pela recomposição de seus orçamentos e assegurar a autonomia delas na escolha de seus dirigentes.

Nunca antes a SBPC teve tantas mulheres em sua equipe. Isso foi planejado?

É significativo que a diretoria da SBPC, sem que tenha sido planejado, seja hoje composta preponderantemente de mulheres – são sete mulheres e dois homens. Mas me parece que também é muito importante aumentarmos a presença de pessoas de origem africana e indígena na ciência. Isso implica uma série de ações que extrapolam a SBPC, mas para as quais podemos contribuir. As políticas de ações afirmativas já favoreceram presença maior nas universidades de negros e descendentes de indígenas, de tanto talento ou mais que outros, mas que não tinham a oportunidade. E é uma questão de tempo para que essas pessoas, muitas das quais já se graduaram ou até concluíram o doutorado, se destaquem, não apenas na SBPC, mas na ciência brasileira.

O que mudou na educação no Brasil desde sua passagem pelo MEC?

A educação brasileira foi perdendo recursos e perdeu prioridade. Infelizmente, ela deixou de ser tão importante desde que a emenda constitucional do teto de gastos cristalizou uma redução de orçamentos. Muito do que estava previsto no Plano Nacional de Educação deixou de ser feito. Tomei posse no MEC oito meses depois da sanção do Plano Nacional de Educação e comecei a implementá-lo, com a discussão da Base Nacional Comum Curricular. Esse foi o único ponto do PNE que se completou. Questões como a gestão democrática e a valorização salarial do professor não foram desenvolvidas, desde então.

O que acha fundamental fazer hoje na área da educação?

Há uma prioridade óbvia, que é educação básica de qualidade. Porque é assim que se vai conseguir, com o passar do tempo, consolidar uma sociedade mais igualitária e até mesmo tornar as políticas de ação afirmativa desnecessárias. Vale lembrar que as políticas não são cotas raciais, como muita gente diz, mas derivam de uma distinção social e de uma percepção, ao longo dos anos passados, de que a educação particular era melhor no nível básico e que a educação pública era melhor no ensino superior. Isso acabava tendo um efeito perverso: alunos da escola privada ocupavam a grande maioria das vagas do ensino superior público. Enquanto os alunos da escola pública, com formação não tão boa, tinham que pagar para fazer a graduação em instituições também não tão boas, os de escolas particulares faziam cursos gratuitos e de melhor qualidade nas universidades federais e em algumas estaduais. Isso já mudou: hoje metade dos alunos das federais e parte significativa dos de universidades estaduais provêm da escola pública, ou seja, são geralmente pessoas de menor renda, mas que, quando têm oportunidade, se desenvolvem muito e superam a diferença que havia. Esse é o grande mérito da política de ação afirmativa.

Precisamos de uma educação básica inteiramente de qualidade, o que exige ação de sucessivos governos e a recuperação de políticas que foram bem-sucedidas entre os anos de 1992 e 2016. Na hora em que recuperarmos esse impulso, demorará ainda muito tempo até que tenhamos uma educação básica que permita valorizar todos os talentos que há no Brasil, muitos dos quais nem sequer são revelados porque não há oportunidade para a pessoa de origem pobre descobrir que ela tem vocação para médico ou cientista, e com isso o Brasil desperdiça talentos e perpetua uma enorme injustiça. Esse é o ponto crucial. Temos também que desenvolver a educação superior. Há no Brasil cursos muito bons, mas outros nem tanto. A avaliação possibilita detectar esses cursos, mas a legislação torna muito difícil fechar um curso de graduação de má qualidade. Enquanto a pós-graduação, avaliada pela Capes, é respeitada – e quando a Capes considera um curso ruim, ele é logo fechado sem maiores problemas –, no caso da graduação é bastante difícil fazer isso, o que leva à manutenção de cursos de má qualidade. Nós temos, então, um desafio grande, que é melhorar a qualidade. É o principal desafio na educação, inclusive para que ela valorize a todos.

As alternativas encontradas para o ensino neste período de isolamento social não substituem, naturalmente, a presença nas escolas. Mas é possível extrair algo de positivo dessa experiência?

O ensino remoto emergencial ficou muito aquém do que seria a educação a distância. Como está dito no nome, foi emergencial; o MEC não liderou o treinamento dos professores, e o governo federal não disponibilizou equipamentos para alunos e até mesmo professores que não tivessem já um celular ou computador, ou que não dispusessem de pacote de dados. Muitos gestores estaduais e municipais também falharam nesses aspectos. O que fica de positivo do isolamento social é a percepção de que, no mundo das universidades, muita coisa pode ser feita a distância, com êxito. Não creio que voltemos a ter a frequência de viagens a trabalho – isso vale não só para as universidades, vale também para as empresas – que havia antes. Uma pessoa viajar um dia inteiro para falar 15 minutos numa mesa-redonda – isso não deve voltar a acontecer. Creio que precisaremos manter congressos presenciais, até para as pessoas se encontrarem, conviverem, dialogarem, isso é muito importante. Mas a frequência desses congressos, acho que vai diminuir. Talvez aumentem as discussões on-line. Esse é o ponto positivo, mas é muito restrito à questão da pesquisa acadêmica.

Há cerca de quatro anos, em outra entrevista para o Portal UFMG, o senhor disse que já estivera convicto de que as conquistas dos últimos tempos eram sem volta, mas que percebia sinais preocupantes. Como vê o quadro hoje?

Infelizmente, minha impressão naquela ocasião apenas se confirmou. Nós tivemos um retrocesso grande. Em última análise, isso se deve à crise econômica de 2008 em diante. É triste dizer, mas o voto e as posições políticas estão muito vinculadas à vida melhorar ou piorar. Quando as pessoas sentem que sua vida não está melhorando, que a economia está aquém do que desejariam, elas punem quem está no governo, independentemente de culpa. É o que a gente tem visto mundo afora, e preocupa, porque não se discutem muito as causas possíveis de uma crise econômica, que às vezes independem da vontade de um governo. Podem ser fruto de um erro de escolha, podem ser fruto de conjuntura externa, mas o fato é que nós tivemos um retrocesso grande, e pessoas contrárias às conquistas relacionadas à igualdade obtidas por mulheres, negros, indígenas, pelas populações LGBTQIA+ se sentiram à vontade para soltar todos os seus preconceitos.

Contudo, hoje vemos uma tímida recuperação do processo de progresso da condição humana que vivemos nas décadas entre 1980 e 2010. Essa recuperação tem como grande sinal a vitória de Joe Biden nos EUA; ele, por sinal , está propondo uma política interna muito focada na educação, na ciência e na tecnologia. Se tiver êxito nessa direção, Biden poderá entrar para a lista dos grandes presidentes norte-americanos, como, no século 20, o Franklin Roosevelt, com o New Deal, e o Lindon Johnson, cuja política externa foi lamentável, mas que no âmbito doméstico promoveu a integração dos negros e o respeito a eles. Biden poderá fazer algo nessa direção, se tiver êxito. O que me preocupa em Biden é a política externa. Há um conflito dos Estados Unidos com a Rússia e a China, espero que nada disso resulte em aventuras militares.

Se as eleições de 2022 indicarem uma mudança de rumo no Brasil, o que o novo governo deve priorizar, já de saída?

O novo governo deve priorizar justamente as causas históricas da SBPC. Sem ciência, sem inteligência, não há progresso econômico. Inteligência, aqui, significa investir na educação, garantir a boa saúde da população, preservar o meio ambiente. Longe de ser um obstáculo, o meio ambiente é um trunfo importante para a economia, até porque devemos ter na nossa enorme biodiversidade amazônica uma quantidade de produtos químicos ainda ignorados que possam converter-se em remédios para doenças as mais variadas. A biodiversidade e, eu acrescentaria, a humano-diversidade do Brasil, que abriga número enorme de etnias e culturas, nos dão ótimas condições para exercer um soft power importante no mundo, como já ocorreu no passado. Penso que o essencial para isso é que o próximo governo dê importância à ciência e ao conhecimento rigoroso, mais ainda que no passado. Porque hoje o avanço econômico depende muito dos assuntos relacionados à ciência.

Quais são os grandes temas de sua produção recente, e como seus estudos têm inspirado e subsidiado a análise da conjuntura atual e das perspectivas no Brasil e no mundo?

Tenho me interessado basicamente pela questão da democracia, que foi o tema do meu livro A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet [lançado pela Companhia das Letras, em 2017]. Mas também terminei um romance histórico, que provavelmente se chamará A neve quente dos trópicos, no qual imagino o que teria sido o Brasil sem a vinda da família real. Na hipótese de que a família real portuguesa tivesse sido presa pelos franceses, o que não aconteceu por questão de poucas horas, o Brasil teria sido dividido em vários países – e como teria sido essa história de um país profundamente marcado pela injustiça extraordinária que é a escravidão? Como teria vivido o Brasil nessa conjuntura e como teria sido o nosso século 19? É o que eu imagino nesse romance, que deve ser publicado ainda neste ano ou no começo do ano que vem, no Brasil e em Portugal.

A grande questão atual é a da democracia, da ampliação da democracia. Temos um histórico de democracia política, que se estendeu a fatores da vida dita privada, com a defesa da igualdade entre homem e mulher. Antigamente, o marido era o chefe da família, ele fazia todas as escolhas. Acho que isso está se dissipando. Acabou na legislação brasileira e perdura um pouco nos costumes, mas está diminuindo significativamente. Então, percebo uma democratização do afeto, algo que está em crescimento. E falta democratizar o mundo do trabalho, não apenas porque os direitos trabalhistas têm sido alvo de contestação grande mundo afora, e especialmente no Brasil, mas também porque as relações de trabalho continuam sendo muito hierárquicas. Não faz sentido ter democracia apenas fora da empresa. Temos que pensar como pode haver democracia também na empresa, com escuta, respeito, compartilhamento das decisões. Penso que esse é um ponto importante quando tratamos de futuro.

UFMG

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