Sem diretriz clara, cidades vacinam doulas e terapeutas antes de idosos e casos vão parar na Justiça

Falta de critérios do Ministério da Saúde sobre quem deve ser vacinado quando há escassez de doses gera questionamentos legais. STF dá prazo para esclarecimento do Governo federal

Beatriz Jucá

Uma falha do Governo Federal em precisar quais profissionais de saúde deveriam ser considerados prioritários para receber a vacina contra o coronavírus na primeira fase da campanha de imunização colocou pessoas menos expostas e vulneráveis à doença à frente de grupos de maior risco. Aproveitando-se da brecha criada pela ausência de regra, profissionais que não estão na linha de frente―como, por exemplo, doulas, que auxiliam mulheres no trabalho de parto, educadores físicos e terapeutas― foram vacinados antes de alguns grupos de idosos, os mais vulneráveis a complicações da doença e que, por isso, registram as maiores taxas de mortalidade. A falta de critérios acabou na Justiça, e o Supremo Tribunal Federal já determinou que nos próximos dias o Ministério da Saúde estabeleça quem deve ter prioridade neste momento de escassez de doses. Especialistas criticam a falta de uma diretriz nacional clara e apontam que isso tem criado dificuldades para a estratégia de proteção da população.

Até o momento, o Governo Bolsonaro distribuiu cerca de 12 milhões de doses de vacinas contra a covid-19. A quantidade é muito inferior à necessária para contemplar as 77,2 milhões de pessoas dos grupos prioritários estabelecidos inicialmente pela pasta, especialmente se for considerada a necessidade de se aplicar duas doses das vacinas disponíveis. Alguns grupos foram adicionados nas últimas semanas como prioritários após pressão de categorias, mas a pasta não esclareceu exatamente qual seria a ordem de imunização. O grupo dos trabalhadores da saúde está entre os prioritários desde o início. A justificativa é a maior exposição ao coronavírus e a necessidade de manter o atendimento aos pacientes, reduzindo afastamentos. Neste sentido, o Ministério da Saúde indicou em ofício aos Estados a priorização dos trabalhadores envolvidos na campanha de vacinação e na assistência direta aos pacientes com covid-19. E só depois os demais profissionais da saúde. Mas não explicitou, por exemplo, qual deveria ser a ordem de preferência a partir daí, quando ainda não há doses suficientes para todos eles. A pasta deixou que essa priorização seja definida por Estados e municípios conforme as realidades locais.

“Cada município está adotando o que entende que seja importante”, diz Melissa Palmieri, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Imunizações-Regional São Paulo. Ela vê nas decisões uma inversão de prioridades. “As vacinas atuais são muito focadas nos desfechos clínicos de gravidade e morte por covid-19. Temos que focar naqueles grupos que estão sofrendo mais na pandemia, que são os idosos e os profissionais da saúde na assistência direta, que atuam linha de frente”, aponta, ressaltando que isso deve englobar tanto o serviço público quanto o privado. A lógica é proteger essas populações e aliviar a alta pressão sobre os sistemas de saúde neste momento.

No entanto, vários municípios não estão fazendo este filtro e incluem nas listas até profissionais da saúde que atuam longe dos hospitais. Biólogos, doulas, nutricionistas, psicólogos e educadores físicos estão entre profissionais que atuam fora da linha de frente e já receberam vacinas em algumas cidades, quando as doses ainda não chegam massivamente ao grupo mais vulnerável, dos idosos. Dos 39 municípios que formam a Grande São Paulo, por exemplo, ao menos 21 escolheram não priorizar apenas os profissionais de saúde da linha de frente, conforme aponta um levantamento feito pela TV Globo.

A questão também tem levantado ruídos diante das denúncias de fura-filas da vacinação. Na semana passada, o Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo publicou nas redes sociais que trabalhadores de uma maternidade foram expostos em um programa de televisão após uma confusão pela falta de vacinas, mas garantiu que seus nomes estavam na lista embora tenham sido tratados como fura-fila. O sindicato pede mais transparência e organização sobre quais profissionais da saúde devem ser vacinados primeiro neste momento.

O problema não está restrito a São Paulo. Há várias cidades no país que também optaram por vacinar neste momento profissionais da saúde que não estão na linha de frente. A decisão tem recebido críticas de especialistas. Na segunda-feira (8), o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski deu um prazo de cinco dias para que o Ministério da Saúde defina especificamente quem terá preferência entre os grupos já estabelecidos. “Ao que parece, faltaram parâmetros aptos a guiar os agentes públicos na difícil tarefa decisória diante da enorme demanda e da escassez de imunizantes”, escreveu o ministro. Lewandowski cita notícias que indicam que “não há uma racionalidade nessa primeira distribuição, insuficiente para todos os milhões de brasileiros com perfil de prioridade”.

Melissa Palmieri diz que os profissionais de saúde que atuam em UTIs de covid-19 têm uma exposição maior e devem ser priorizados. No entanto, pondera que não é uma tarefa fácil hierarquizar exatamente quais categorias de profissionais da saúde estão mais expostas fora destes espaços, quando fisioterapeutas que atuam com estética, por exemplo, podem também atuar na recuperação de pacientes com covid-19 em atendimento domiciliar. “Os hospitais deveriam ter mandado a lista de quem está em maior risco. E, a partir disso, priorizar os profissionais com mais de 60 anos”, opina. Palmieri diz ainda que o PNI está enviando doses conforme a experiência da campanha da vacinação contra a gripe, que é mais estabelecida e iniciada já com um quantitativo de doses suficientes. Mas a campanha contra a covid-19, aponta, tem particularidades. “A gente não entende porque não vem uma orientação clara”, diz.

Palmieri destaca que há pressões de vários conselhos de classe para a inclusão de categorias nos grupos prioritários, mas critica que o Ministério da Saúde esteja fazendo estas inclusões sem dar a clareza de quem deve ter preferência enquanto ainda faltam doses.

Caravanas pela vacina

Paralelamente, os municípios começam a observar migrações em busca da vacina, especialmente nas regiões metropolitanas. “Se uma cidade ao redor do Rio de Janeiro já vacinou todos os profissionais do hospital e está migrando para outros grupos prioritários, as pessoas acabam migrando (para conseguir se vacinar em outros locais) e aí prejudica todo o planejamento do gestor de saúde para aquela região. O gestor faz a priorização pelas doses que recebe”, exemplifica Palmieri, que diz que desta forma o próprio Estado deixa de saber para onde idealmente enviar as vacinas com o objetivo de cobrir ao máximo os grupos mais vulneráveis. “As cidades também deveriam pedir um comprovante de residência para evitar as migrações, porque as pessoas vão com um documento com foto do seu conselho de classe e migram entre as cidades”, explica. O secretário da Saúde do Rio de Janeiro, Carlos Alberto Chaves, já admitiu a existência das chamadas “caravanas da vacina”, quando pessoas vão a outras cidades que já decidiram iniciar a vacinação de seu grupo para tentar receber as doses.

Para Palmieri, uma forma de restringir bem os grupos de profissionais da saúde é vacinar os idosos e os trabalhadores que atuam na coleta de material respiratório com swab antes de partir para outras categorias que não atuam diretamente com pacientes com covid-19. “Mas para isso tem que haver uma diretriz, e ela não está clara. O que temos é cada um fazendo de um jeito”, ressalta. Neste mar de indefinições, Palmieri considera uma boa prática a decisão da cidade de São Paulo em começar a vacinar profissionais da saúde autônomos com mais de 60 anos. “Isso é bacana porque temos que vacinar a população acima de 60 anos, que está em risco. Foi uma decisão inteligente diante de nossa falta de doses. Isso apoia a necessidade de redução de leitos hospitalares”, afirma.

O EL PAÍS procurou o Ministério da Saúde para saber se haverá alguma orientação sobre a questão, mas não recebeu retorno. Caso não venha uma diretriz central sobre a ordem de vacinação dos prioritários, Palmieri acredita que caberá aos Estados orientar os municípios. “É o momento de conversar com as cidades maiores: já vacinou todos os profissionais de hospitais, de coleta de exames e idosos? Para começar a remanejar doses para que as cidades não tenham tanta discrepância”, diz a médica. Ela defende ainda que as capitais e cidades metropolitanas sejam priorizadas neste momento, já que existe um maior risco de aglomerações em geral e consequentemente mais contágios. “Desde festas clandestinas até no transporte público. As grandes metrópoles sofrem com isso.”

Do El País Brasil

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