Sem regulamentação do Marco Civil, operadoras podem aproveitar brechas

São Paulo – O Ministério da Justiça abriu na quarta-feira (28) um importante debate público, para que a sociedade civil discuta e influencie na elaboração do decreto da Presidência da República que vai regulamentar o Marco Civil da Internet.

Sancionada em abril do ano passado, a Lei 12.965/2014 foi elogiada por especialistas como exemplo a ser seguido, em termos de cidadania, a ponto de Tim Berners-Lee, o cientista britânico considerado inventor ou um dos inventores da internet, ter declarado que a legislação brasileira “ajudará a iluminar uma nova era na qual os direitos dos cidadãos serão protegidos por leis digitais”.

Para o sociólogo Sérgio Amadeu, embora a lei brasileira tenha garantido direitos indiscutíveis, a regulamentação, e mais ainda, a participação da sociedade civil no debate, é importante para consolidar, principalmente, o chamado princípio da neutralidade, a garantia de que os conteúdos da internet sejam acessados por todas as pessoas em igualdade de condições. Sem ela, as empresas fornecedoras do serviço poderiam impor restrições de preços por pacotes, como ocorre hoje com as TVs a cabo.

Sérgio Amadeu concedeu a seguinte entrevista à RBA, sobre a regulamentação do Marco Civil e neutralidade da rede.

Apesar do Marco Civil, como as empresas operadoras podem usar brechas e ameaçar a neutralidade da rede?

Toda vez que interferem no fluxo de informação da rede, impedindo que a pessoa acesse uma aplicação, um serviço da internet, por não estar num determinado plano; ou toda vez que não permitem o acesso à internet universal ou permitem apenas parcialmente. Toda vez que bloqueiam o fluxo de informação, deixa-se de ser neutro em relação a esse fluxo. As operadoras querem fazer planos não só de diferentes velocidades, mas querem ter o poder de vender serviços específicos quebrando o acesso universal à internet. Por isso, talvez a imagem mais interessante seja: eles querem transformar a internet numa grande rede de TV a cabo.

Isso ainda acontece, atualmente?

Isso está difícil (com o Marco Civil), mas o que acontece atualmente é o seguinte: para poder combater o princípio da neutralidade, as operadoras passaram a fazer acordo com empresas, como por exemplo o Facebook, e aí dão acesso gratuito só ao Facebook. De certa maneira, isso é uma interferência, dando uma prioridade de tráfego ao Facebook dentro da sua rede. Há uma discussão de que isso seria uma quebra da neutralidade.

O problema é que grandes corporações como Google, Facebook, Apple, MSN podem fazer acordos e ter todos os privilégios de tráfego da rede, sendo que nós, os sites que não têm tanto poder econômico, blogueiros ou sites de comércio eletrônico, vão ficar espremidos nas redes dessas operadoras por não terem feito acordos de privilégio de tráfego. Ou seja, vamos estar numa via esburacada, enquanto outros vão estar numa via expressa.

Impedir a quebra de neutralidade evita acordos comerciais que privilegiem o acesso maior de uns e não de outros.

Mesmo a lei sendo praticamente autoaplicável, a regulamentação é essencial?

Tem de fazer a regulamentação, porque, por exemplo, tem um ponto no Marco Civil em que só será aceita a quebra de neutralidade para manter a qualidade técnica da rede. Em nome da qualidade técnica, as operadoras podem dizer que têm muita gente que entra no horário das 5 horas da tarde, por exemplo, e precisa interferir em algumas aplicações nesse horário para permitir que a rede funcione bem.

Mas aí tem um erro, porque o empresário está ofertando banda larga numa região onde ele já sabe que tem de ofertar esse serviço com acesso universal e de qualidade aos consumidores. Não podemos beneficiar o empresário que não quer investir em infraestrutura e jogar todo mundo numa via estreita, congestionar o tráfego, a rede. A gente até aceita um grau de variação, na velocidade, uma vez que, se as pessoas entram muito num determinado horário, a gente pode entender que tenha uma queda de velocidade. Até sei disso, mas isso não é argumento para que as sete da noite ninguém possa usar Torrent, os vídeos… Ou então o contrário, que se detonem as aplicações só para privilegiar o uso do vídeo.

A falta de regulamentação da lei até agora está prejudicando muito ou pouco? 

A lei está clara: não pode ter quebra de neutralidade. Se alguém quebra e se qualquer cidadão denunciar à Anatel e ao Ministério Público, a autoridade vai poder constatar se houve quebra ou não da neutralidade. Se teve, e a operadora alega motivos técnicos, aí sim, faria falta o regulamento, para esclarecer isso. Mas, se ela fez um modelo de negócio, por exemplo, isso já é ilegal hoje. A lei já diz que não pode ter quebra de neutralidade por modelos de negócio.

O debate público então é importante…

Sabe por que é importante? Por que, do contrário, você poderia fazer um regulamento só por gestores técnicos do governo e que seria mais suscetível à pressão de grandes corporações. Então, no regulamento, no detalhamento do marco civil, poderiam ser pressionados a fazer verdadeiros recuos. O regulamento poderia prejudicar o espírito da lei aprovada. Temos um tempo a partir de agora para oferecer sugestões e é importante a participação de todo mundo.

A regulamentação precisa ser feita porque do contrário, se lançar um regulamento que deixa dúbia a possibilidade de quebrar a neutralidade por motivo técnico, algumas dessas corporações farão a quebra, porque pode compensar economicamente. Ao invés de ampliar a infraestrutura, vão quebrando a neutralidade enquanto a pressão dos consumidores não é grande.

Vão quebrando tecnicamente.

Tecnicamente. Por isso temos que garantir que a lei seja regulamentada, detalhada, dizendo “somente nesses casos” posso ter a quebra da neutralidade.

Em que casos é admissível a quebra?

O país tem de apostar numa grande infraestrutura para a sociedade da informação. Então, não vejo nenhum motivo que justifique a quebra da neutralidade. O motivo que vejo é que foi feita uma privatização no Brasil, não foram feitas cobranças adequadas a essas operadoras. A banda larga, por exemplo, não é um serviço prestado em regime público, portanto não tem meta de universalização e não é considerado serviço essencial. Isso temos de garantir. Se a infraestrutura for adequada, a quebra de neutralidade não se justifica.

Se o prestador dos serviços de telecom tem uma infraestrutura adequada, atendendo ao crescimento constante de tráfego de dados que vivemos no mundo atual, ele não tem necessidade de quebrar a neutralidade.

Mas as operadoras, essas grandes corporações, querem adiar os planos de investimentos e criam outros modelos de negócios para aumentar a lucratividade. E quem é prejudicado é o cidadão que perde a universalidade da rede e a qualidade. É engraçado: se você criar um site que tem muito acesso, você foi bem sucedido, certo? Só que a operadora diz que você está concentrando tráfego, e portanto deveria pagar mais (risos). Mas espera aí, todos nós já estamos pagando. O cidadão paga pela conexão em casa, você paga para ser acessado, no local onde se hospeda o seu servidor, então está todo mundo pagando. Por que a operadora quer que você pague a mais? Ela quer discutir para onde vai o tráfego de dados, a opção das pessoas. Isso é inadmissível.

Da Rede Brasil Atual

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