Sinpro/RS: Estado integra rede de exploração do trabalho escravo

Investigação estabelece conexões do estado com uma rede de exploração do trabalho escravo que atua no país com os mesmos “gatos” que arregimentam mão de obra em outros estados

Por Cristina Ávila

O processo que resultou na condenação do empresário Marconi Christianetti, presidente de um consórcio de plantadores de batata no pequeno município de Ibiraiaras, no Nordeste do estado, e a sua ligação com figuras proeminentes do governo federal revela a existência de uma rede espalhada pelo país que atrai trabalhadores para arapucas armadas por empresários e produtores rurais que vivem da exploração de mão de obra análoga à escravidão. São criminosos que escapam à fiscalização, apesar de muitos serem reincidentes apontados pela “lista suja do trabalho escravo” da Secretaria de Inspeção do Trabalho

O Brasil estaria comemorando em novembro os 90 anos da criação do Ministério do Trabalho, se a pasta não tivesse sido extinta pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Uma das mais importantes demandas históricas dos trabalhadores, a instituição implantada em 1930 teve o fim anunciado em 2018 pelo gaúcho Onyx Lorenzoni (DEM/RS), coordenador da equipe de transição do governo que ainda nem tinha tomado posse.

Questionado sobre o destino da fiscalização para combate ao trabalho escravo – que em 25 anos resgatou 55 mil homens em situações análogas à escravidão e se tornou referência no mundo – o deputado deu de ombros. “Acho” que será atribuição do “doutor (Sérgio) Moro”, disse à época, referindo-se ao ex-juiz que se tornara político e também estava escalado para as tarefas daquele final de ano, com cargo assegurado como futuro ministro da Justiça.

Em 2020, no rastro de uma sentença expedida pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRT4), de  Porto Alegre, descobre-se que o mesmo Lorenzoni que estava mal informado sobre a distribuição das competências do ministério a ser extinto foi ágil anos antes para pedir uma audiência pública na Câmara Federal na tentativa de descaracterizar o resgate de 35 trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão em Ibiraiaras, município de 7,5 mil habitantes localizado na região Nordeste do Rio Grande do Sul.

Os trabalhadores dormiam amontoados em beliches no alojamento superlotado, onde nem banheiros havia. Entre mais de três dezenas de homens, um deles estava com a mulher e uma criança de colo. Os fatos foram investigados pela Polícia Federal e registrados por servidores dos Ministérios Público e do Trabalho, mas a audiência pública na Comissão de Agricultura em Brasília acolheu criminosos e criticou as vítimas.

O caso foi parar no TRF 4, em Porto Alegre, que acatou condenações determinadas pela 3ª Vara Federal de Passo Fundo, negando apelações dos réus. O empresário Marconi Christianetti, presidente de um consórcio de plantadores de batata de Ibiraiaras, recebeu pena de três anos de reclusão e pagamento de multa, porém com pena corporal substituída por serviços comunitários. Ele havia contratado para arregimentar trabalhadores o chamado “gato”, no jargão da atividade, Antônio Carlos Martins, que já explorava peões em colheitas em Tapira, Minas Gerais.

Dali, metidos num ônibus do tipo urbano, com bancos duros, em péssimo estado de conservação, partiram para uma viagem de 1.485 quilômetros até o interior do Rio Grande do Sul. O plano era levá-los depois para outra lavoura em Vargem Grande do Sul, em São Paulo. O empreiteiro foi condenado a três anos e nove meses de reclusão e multa, inicialmente em regime aberto.

Esses processos revelam fios da emaranhada rede espalhada pelo país que atrai trabalhadores para arapucas armadas especialmente por agentes do agronegócio. E escancaram a hipocrisia dos discursos de autoridades, além de revelarem a lógica de exploração extrema e ilegal da mão de obra adotada por empresas que movimentam o PIB brasileiro. São exploradores da mão de obra escrava que escapam da fiscalização, apesar da reincidência e muitos nem aparecem na “lista suja do trabalho escravo”, um cadastro de empresas e pessoas físicas autuadas por exploração de trabalho escravo pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia e que tem como uma das punições o bloqueio a financiamentos públicos.

Essas listas são pouco reveladoras, porque os nomes de produtores e empresas que violam o artigo 149 do Código Penal somente são divulgados depois de todos os recursos jurídicos esgotados – o que seria justo, não fosse a lentidão do poder Judiciário. No caso de Ibiraiaras, as diligências na localidade de São Roque foram realizadas em julho de 2011, mas o TRF4 só tomou uma decisão em abril de 2020.

Naquele julho de 2011, sob um frio que oscilava em 5 graus centígrados, os auditores fiscais do Trabalho chegaram bem agasalhados, com botas e casacos, no alojamento, em São Roque, onde os trabalhadores estavam instalados desde abril.

A maioria originária de Pedreiras, no Maranhão, região de verão permanente com temperaturas raramente abaixo dos 23 graus, os homens foram encontrados usando chinelos e bermudas. Dormiam em colchões sem lençóis. Um ou outro tinha uma coberta fina. Começavam a receber algumas doações de agasalhos de moradores da localidade. As paredes do alojamento eram úmidas, em ambiente fétido que misturava odores de mofo e de dejetos. Os documentos dos trabalhadores estavam em poder do “gato”, uma das práticas para reter homens e mulheres escravizados nas lavouras.

Apesar das evidências de que explorava mão de obra análoga à escravidão no local, Christianetti foi tratado como um parceiro vitimado em uma audiência pública na Comissão de Agricultura da Câmara Federal, no dia 27 de setembro. A realização da audiência foi a pedido do atual ministro da Cidadania. Vários representantes de Ibiraiaras correram para Brasília. Entre eles, o presidente da Câmara de Vereadores, Luiz Orlando Climaco, que fez questão de agradecer: “Deputado Onyx Lorenzoni, ressalto o teu trabalho. No momento em que te liguei, tu prontamente mandaste o advogado Paiani para nos assessorar”. Ele se referia a Adão Paiani, ex-ouvidor agrário do governo do estado, que também estava na reunião. O vereador também comentou a moção de repúdio à ação do Ministério Público do Trabalho de Caxias do Sul (PRT4), representada pelo procurador Rodrigo Maffei, que encaminhara à presidência da comissão.

Maior déficit de auditores fiscais em 25 anos

A instituição pioneira nas denúncias de trabalho escravo na história recente do país é a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundada em plena ditadura militar, em 1975, na luta contra as graves situações enfrentadas por comunidades rurais, inclusive o que se denomina trabalho análogo ao escravo. Em maio de 1995 foi criado o que é hoje o Grupo Especial Móvel de Fiscalização, formado por auditores fiscais do trabalho, delegados e agentes da Polícia Federal e por procuradores do Ministério Público do Trabalho – coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), originária do Ministério do Trabalho e Emprego, incorporado ao Ministério da Economia do atual governo.

“Hoje temos no Brasil o menor número de auditores fiscais do trabalho ativos nos últimos 25 anos”, ressalta o gerente regional da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia em Caxias do Sul, Vanius Corte, que atende 43 municípios gaúchos. Segundo ele, a situação se deve à falta de concursos públicos e também se agravou com a Reforma da Previdência, que levou muitos funcionários a pedirem aposentadoria, assustados com possíveis perdas com as mudanças das regras.

Vanius Corte relata que são 2.050 auditores fiscais do trabalho ativos, apesar das 3.644 vagas criadas por lei e não preenchidas por falta de concurso público, o que resulta em um déficit de 1.594 profissionais. Cerca de 130 se aposentam anualmente.

Isso relacionado ao que garante a legislação, pois segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2012 o Brasil já precisava de 8 mil desses profissionais. O gerente regional em Caxias do Sul acentua que essa necessidade cresce à medida em que a legislação trabalhista e de segurança e saúde do trabalho são flexibilizadas, “o que tem se agravado desde a reforma trabalhista de 2017”.

Igreja mineira é campeã na lista suja nacional

Arte: Bold Comunicação

No cadastro nacional de crimes relacionados a trabalho escravo, Minas Gerais aparece disparado em primeiro lugar, com 40 casos registrados. Entre 22 estados, em fiscalizações realizadas entre 2014 e 2019, que envolveram 2.079 trabalhadores, Minas também se destaca com o maior número de trabalhadores em apenas uma operação. Foram 565 pessoas cujo registro indica a empresa Nova Visão Assessoria e Consultoria Empresarial Ltda, relacionada à Comunidade Cristã Traduzindo o Verbo, em São Vicente de Minas, acusada de aliciar fiéis que se submetiam a jornadas em fazendas, postos de gasolina, restaurantes e fábricas de roupas em condições degradantes e sem direitos laborais. As investigações também incluíram simultaneamente São Paulo e Bahia. A Justiça autorizou 22 mandados de prisão, 17 interdições de estabelecimentos comerciais e 42 buscas e apreensão.

A lista suja ficou quase três anos sem ser publicada, entre 2014 e 2017, e somente voltou a circular por conta de uma ação civil movida pelo Ministério Público do Trabalho. Neste mesmo cadastro, atualizado em agosto de 2020, há dois casos no Rio Grande do Sul. Um dos registros é de Anta Gorda, da empregadora Flávia Cutti Arossi, dona da empresa Canaã Reciclagem e Transporte de Resíduos. Em Caxias do Sul foi registrado como pessoa física o empregador Paulino Peruchin.

A plataforma SmartLab, criada pelo Ministério Público do Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que entre 2003 e 2018 foram realizadas 31 operações no Rio Grande do Sul, com 321 vítimas resgatadas. Os casos ocorreram majoritariamente em áreas rurais, em Cacequi, Venâncio Aires, Caxias do Sul, Ipê, Vacaria, Bom Jesus, Cambará do Sul, Mostardas, Uruguaiana, Canguçu, Encruzilhada do Sul, Rio Pardo, São Jerônimo, Júlio de Castilhos, Anta Gorda, Doutor Ricardo, Nova Brescia, São José do Norte e Lajeado.

O presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul (Apergs), Carlos Henrique Kaipper, ressalta que políticas públicas como a erradicação do trabalho escravo são voltadas para maus empresários, que inclusive prejudicam quem trabalha corretamente. “A exploração desse tipo de mão de obra, além de ser crime, também acarreta concorrência desleal com os bons empresários, até sob este ponto de vista é interessante a implementação dessas políticas”, observa.

Arte: Bold Comunicação

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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