Sinpro/RS: Remédio amargo

Após declarações ofensivas do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), o governo cubano anunciou a saída do programa humanitário Mais Médicos, implantado no Brasil por intermédio da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), em 2013. O resultado é a desarticulação de uma experiência inédita e bem-sucedida de medicina preventiva em um país onde 153 mil pessoas morrem por ano devido ao atendimento médico de má qualidade e 51 mil por falta de acesso a atendimento de saúde. Ao todo, 28 milhões de brasileiros ficaram desassistidos nas regiões mais pobres e de difícil acesso. No RS, cerca de 2 milhões ficam sem os serviços da atenção básica em 290 municípios, em um cenário que já era caótico com o programa. Para o Conselho das Secretarias Municipais de Saúde (Cosems-RS) o estado está em “iminente colapso na saúde pública”

Tristeza, desolação e manifestações de solidariedade marcaram a despedida dos seis médicos cubanos integrantes do Programa Mais Médicos lotados no único posto de saúde em funcionamento no bairro Cohab Santa Rita, interior de Guaíba, município de quase 100 mil habitantes separado de Porto Alegre pelo Delta do Jacuí. Muito próximo da capital do estado, Guaíba não é propriamente um grotão, mas nem por isso atrai médicos brasileiros, que na sua maioria prefere os grandes centros. Assim, a atenção básica em saúde no município ganhou corpo e estrutura pela mão dos profissionais de saúde da ilha caribenha desde 2013.

Com a saída dos seis profissionais cubanos no único posto de saúde, Guaíba ficou sem atendimento básico

Com a saída dos seis profissionais cubanos no único posto de saúde, Guaíba ficou sem atendimento básico

Foto: Igor Sperotto

As ofensivas declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), provocaram a saída de Cuba do programa humanitário Mais Médicos, implantado por intermédio da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), em 2013. Bolsonaro, que desde a votação do projeto na Câmara vem combatendo o Mais Médicos com informações falsas e declarações descabidas, afirmou repetidas vezes em meados de novembro que os médicos cubanos vinham para o país na condição de “escravos”, além de reiterar que iria impor condições para a continuidade do programa quando assumir o governo. As ofensas levaram o governo cubano a anunciar o rompimento do convênio e deixaram um saldo de 28 milhões de desassistidos nas regiões mais pobres e de difícil acesso. Ao todo, 8.332 médicos cubanos atuavam em 2.857 municípios – 35% deles em localidades de difícil acesso onde 20% da população vive em situação de extrema pobreza. No dia 19, o Ministério da Saúde publicou novo edital para preenchimento das cerca de 8,5 mil vagas abertas com a saída de Cuba do programa. Dos 8.319 inscritos, apenas 738 (8,9%) se apresentaram nos postos de saúde para os quais foram designados.

No Rio Grande do Sul, segundo estimativa do Conselho dos Secretários Municipais de Saúde (Cosems-RS), cerca de 2 milhões de pessoas ficam sem os serviços da atenção básica em saúde em 290 municípios cobertos pelo programa. A Secretaria de Saúde do estado estima que o fim do convênio deixa 90 cidades do interior gaúcho sem nenhum médico público. Em carta aberta divulgada no dia 27, o Conselho dos Secretários Municipais de Saúde (Cosems-RS) alertou que o estado está em “iminente colapso na saúde pública” e informou que a dívida do estado com municípios supera R$ 1 bilhão, sendo R$ 660 milhões para as prefeituras e R$ 550 milhões para os hospitais.

Casados em Guaíba, a caminho de Camaguey

“Quero ver quem assumirá o meu lugar”, desafia Guerra, que dormia em rede e atendia comunidade ribeirinha na ilha de Bailique, no Amapá

“Quero ver quem assumirá o meu lugar”, desafia Guerra, que dormia em rede
e atendia comunidade ribeirinha na ilha de Bailique, no Amapá

Foto: Igor Sperotto

Na sexta-feira, 23 de novembro, a equipe de médicos cubanos que atuava na periferia de Guaíba foi homenageada com um jantar oferecido pela comunidade na sede do Sindicato dos Metalúrgicos. Oriundos da cidade de Camaguey, localizada no centro da ilha caribenha, e que sedia uma das mais importantes Faculdades de Medicina de Cuba, o casal de médicos Alberto Lezcano Guerra e Mabelli Matamorro Porro relata que veio para o Brasil em 2016 para atuar na medicina comunitária por intermédio do convênio. Guerra foi designado para trabalhar em uma comunidade na ilha de Bailique, a 12 horas de barco de Macapá, no estado do Amapá. Ele permanecia na ilha prestando atendimento à comunidade durante 15 dias e folgava outros 15, que aproveitava para vir até Guaíba, a 3.345 quilômetros de distância para encontrar-se com Mabelli. Se conheceram em Cuba e noivaram no Brasil, em junho de 2018. Com a renda extra – os médicos cubanos recebem salário fixo em seu país, a remuneração pelo Mais Médicos é um complemento – aproveitaram para adquirir eletrodomésticos enviados à ilha todos os meses para montar sua casa no retorno a Camaguey.

Alberto estava no RS quando foi comunicado da suspensão do convênio e o impacto atingiu até a remessa do enxoval para Cuba. É que a transportadora que costumava cobrar R$ 2 mil por viagem resolveu quadruplicar o preço quando soube que os cubanos estavam indo embora. Sorrisos, gestos largos e o sotaque caribenho com acento africano característicos dos cubanos, os médicos falam com satisfação da “missão cumprida” e dos vínculos desenvolvidos com a comunidade – a saúde preventiva e o cuidado integral ao paciente são a marca e o diferencial da medicina que eles praticam.

Mas não disfarçam a mágoa em relação às ofensas de que foram alvo, especialmente as declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro, que tentou impor o Revalida como condição para a manutenção do Mais Médicos no país e colocou em dúvida a formação e a experiência dos médicos – formados em um país que é referência em saúde para o mundo. “Estudamos seis anos na faculdade e mais dois anos de especialização para vir ao Brasil, para qualquer pessoa duvidar de nossa competência. Quero ver quem assumirá o meu lugar. As dificuldades naquela comunidade são imensas, nem luz elétrica tínhamos a não ser a de um gerador”, lamenta Guerra.

“Chamar a um cubano de escravo é a maior ofensa que se pode fazer a um integrante de um povo que enfrenta um bloqueio econômico há 50 anos sem baixar a cabeça, pagando um preço muito elevado. Além disso, duvidar da capacidade de nossos médicos, que atuam em 67 países atualmente, é intolerável”, desabafou o secretário da embaixada cubana no Brasil, Juan Pozo Alvarez, após fazer uma palestra na Assembleia Legislativa gaúcha em 19 de novembro.

Ao todo, 8.332 médicos cubanos atuavam em 2.857 municípios – 35% deles em localidades de difícil acesso onde 20% da população vive em situação de extrema pobreza

Ao todo, 8.332 médicos cubanos atuavam em 2.857 municípios – 35% deles em
localidades de difícil acesso onde 20% da população vive em situação de extrema pobreza

Foto: Karina Zambrana/ Mais Médicos

DESMONTE DO SUS – “A saída dos médicos cubanos não se trata só de um pequeno percalço na condução das unidades de Saúde da Família, mas do desmonte total deste sistema de atendimento à população das regiões mais pobres do Brasil”, denuncia o presidente do Cosems-RS. Diego Espíndola avalia que 186 cidades onde existem unidades de Estratégia de Saúde da Família ficaram desprovidas de atendimento, uma realidade que tende a se agravar, uma vez que a Emenda Constitucional 95, promulgada no final de 2016, congela os gastos públicos durante 20 anos e tende a aprofundar a crise na Saúde ao vetar investimentos do setor público, alerta.

Secretário da Saúde de Piratini há 12 anos, o dirigente do Cosems-RS lembra que dos 21 mil habitantes deste município localizado na região Sul do estado, 16 mil vinham sendo atendidos por médicos cubanos e os outros 5 mil estavam fora do sistema. Espíndola conta que estava construindo uma nova unidade de Estratégia da Família e ia contratar, através do Programa Mais Médicos, outro profissional cubano. “Já realizamos três concursos para médicos brasileiros, oferecendo salário de R$ 18 mil e nunca tivemos interessados, apesar de, em Pelotas, que fica bem perto, haver duas faculdades de Medicina”, argumenta. Depois de quase três anos convencendo a população a frequentar a atenção básica e a não ir direto aos hospitais, o trabalho terá que recomeçar do zero, diz o secretário, lembrando que para manter a estratégia funcionando terá que deslocar especialistas de média complexidade. “Será como desnudar um santo para vestir outro”, compara. Após a publicação do primeiro edital, 630 médicos seriam contratados para suprir parte das vagas e uma segunda chamada estava prevista para 17 de dezembro. O preenchimento das vagas, no entanto, não assegura a efetivação. “Em 2015, as vagas do programa Mais Médicos privilegiaram os médicos brasileiros. Porém, eles chegavam nas cidades, viam as instalações ou a distância das unidades de saúde e desistiam”, recorda o dirigente.

No dia 19, o Ministério da Saúde publicou novo edital para preenchimento das cerca de 8,5 mil vagas abertas com a saída de Cuba do programa. Dos 8.319 inscritos, apenas 738 (8,9%) se apresentaram nos postos de saúde para os quais foram designados

No dia 19, o Ministério da Saúde publicou novo edital para preenchimento das cerca de 8,5 mil vagas abertas com a saída de Cuba do programa. Dos 8.319 inscritos, apenas 738 (8,9%) se apresentaram nos postos de saúde para os quais foram designados

Foto: Araquém Alcântara/ Mais Médicos

TEM PETSHOP – Para o representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Conselho Estadual de Saúde, Alfredo Gonçalves, o futuro governo vem sinalizando com suas ações e declarações para um desmonte do SUS para beneficiar a iniciativa privada na área da Saúde. Ele cita como exemplo a indicação para o Ministério da Saúde do deputado federal Luiz Mandetta (DEM-MS), ligado à Unimed de Mato Grosso do Sul. Gonçalves lembra que os médicos brasileiros se negam a ir para localidades pequenas e ironiza o caso de uma médica que abriu mão da vaga porque a cidade para a qual fora designada não tinha uma petshop. “A preocupação de alguns médicos brasileiros com seus animais de estimação é maior do que para com a saúde das pessoas mais pobres”, compara. Ele estima que 611 municípios brasileiros ficarão sem nenhum atendimento médico até o preenchimento das vagas, especialmente em locais mais afastados, rejeitados por médicos locais. A prefeitura de Cidreira, no Litoral Norte, já realizou dois concursos para o preenchimento de três vagas para o programa Estratégia de Saúde da Família, mas nenhum médico se candidatou. Até agora, a população do município contava com o atendimento exclusivo do Mais Médicos.

“A formação dos médicos cubanos é diferente da dos médicos brasileiros. Ela é voltada exclusivamente para o atendimento da população e os médicos brasileiros, na sua maioria, têm ainda o viés do mercado”, critica a ex-secretária estadual de Saúde, Sandra Fagundes. “Eles fazem a diferença nas suas relações com as comunidades”. Eno de Castro Filho, médico de família que foi preceptor de médicos cubanos, lembra que a Lei do Mais Médicos prevê a criação de vagas de residência em Medicina da Família exclusivas para brasileiros como já é realidade no Grupo Hospitalar Conceição, “mas Temer não cumpriu a Lei e publicou um novo edital”. Com a saída dos colaboradores cubanos “deverão aumentar os índices de mortalidade infantil, de mortalidade cardiovascular, de mortalidade por infecções tratáveis, que estavam diminuindo no estado”, adverte.

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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