STF é o barqueiro Caronte dos direitos sindicais

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Após tramitar perante o Supremo Tribunal Federal (STF) por minguados 15 anos, dois meses e 18 dias (de 10 de março de 2005 a 28 de maio de 2020), chegou ao fim, com trágico desfecho, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3431, proposta pela Contee contra a exigência de comum acordo para ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica, inserta no Art. 114, § 2º, da Constituição Federal (CF) pela Emenda Constitucional (EC) 45, de 2004.

Não se pode deixar de registrar, por oportuno, que essa agilidade processual somente foi possível porque, aos 13 de março de 2005, foi conferido à referida ADI o rito abreviado, previsto no Art. 12 da Lei N. 9868/1999, com dispensa da apreciação de pedido liminar e julgamento direto pleno do STF.

Por seis votos a quatro, o STF, em julgamento virtual, julgou improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade da citada exigência contido na ADI da Contee e nas de Ns. 3392, 3423, 3432 e 3520, com o seguinte extrato, postado no Portal do Tribunal, aos 29 de maio de 2020:

“Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o Ministro Dias Toffoli (Presidente). Afirmou suspeição o Ministro Luiz Fux. Plenário, Sessão Virtual de 22.5.2020 a 28.5.2020”.

O voto do ministro relator, Gilmar Mendes, acolhido por cinco outros ministros, formando maioria absoluta (seis, em 11 possíveis), constitui-se em mais uma prova inconteste do abissal fosso que separa a realidade social daquela que, em regra, é pintada em todas as decisões do STF que apreciam direitos sindicais.

No seu voto, surpreendentemente breve, pois que contém apenas oito páginas, dentre outras pérolas totalmente divorciadas da realidade social, o relator registra:

“I. Necessidade de ‘mútuo acordo’ para ajuizamento do dissídio coletivo Inicialmente, cabe afastar as alegações de ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF pelo art. 114, §2º e §3º, da Constituição Federal.

Em relação à exigência de ‘mútuo acordo’ entre os litigantes para o ajuizamento do dissídio coletivo, tal previsão consubstancia-se em norma de procedimento, condição da ação, e não em barreira a afastar a atuação da jurisdição.

Verifico que a sentença normativa da Justiça do Trabalho no dissídio coletivo, tradicionalmente, tinha a função de criar novas condições de trabalho a ser respeitadas na relação laboral constituída entre as partes do litígio.

O ajuizamento de tal ação representava a incapacidade das partes de chegarem a um acordo por meio do diálogo. O dissídio coletivo era, portanto, a última alternativa, cessado o acordo. Dessa forma, empregados e empregadores recorriam, unilateralmente, ao Judiciário para que o Estado interviesse e impusesse novas normas à relação estabelecida entre as partes.

De muito, esse caráter impositivo da sentença normativa da justiça do trabalho, fruto do dissídio coletivo, vinha sofrendo críticas, inclusive no plano internacional.

[…]

De fato, um dos objetivos da Reforma do Poder Judiciário (EC 45) foi, efetivamente, diminuir o poder normativo da Justiça do Trabalho e privilegiar a autocomposição. O próprio debate parlamentar durante o processo de aprovação da PEC assim o demonstra.

[…]

Ressalto que a redação dada pela EC 45/2004 não impede o acesso do jurisdicionado à Justiça.

[…]

Dessa forma, não vejo qualquer ofensa aos princípios da inafastabilidade jurisdicional e do contraditório.

[…]

Ademais, conforme destacado nas manifestações da Procuradoria-Geral da República, a EC 45, ao exigir o mútuo acordo para o ajuizamento do Dissídio Coletivo, atende à Convenção 54 da Organização Internacional do Trabalho […].

Ou seja, a OIT entende que a melhor forma de composição na resolução de conflitos coletivos deve privilegiar a normatização autônoma, evitando a imposição do poder estatal. No contexto brasileiro, como já analisado acima, isso significa enfraquecer o poder normativo que era dado à Justiça do Trabalho e expandir os meios alternativos de pacificação, como a mediação e a arbitragem, mesmo que estatal.

A jurisprudência do STF, inclusive, destaca a importância dos acordos coletivos na Justiça do trabalho, bem como da autocomposição dos conflitos trabalhistas.

[…]

Portanto, a nova norma constitucional busca implementar boas práticas internacionais, ampliando direitos fundamentais dos trabalhadores, na medida em que privilegia o acordo de vontades. Não verifico, assim, qualquer violação às cláusulas pétreas pela Emenda Constitucional 45, no ponto.

II – Legitimidade do Ministério Público do Trabalho para ajuizar dissídio coletivo em caso de greve em atividades essenciais

Quanto à alegação de que a Emenda retirou a legitimidade das entidades sindicais para propor dissídios coletivos, a simples leitura do §3º afasta essa possibilidade.

O referido dispositivo é claro ao afirmar que o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo em caso de greve em atividade essencial com possibilidade de lesão do interesse público.

Não há que se falar, portanto, em supressão de competências de entidades sindicais. Em verdade, a norma do §3º complementa o §2º, trazendo uma garantia de pacificação de conflitos no caso de greve em atividades essenciais, de modo a privilegiar a paz social.

Portanto, com base nos fundamentos acima, forçoso concluir que as alterações operadas pela EC 45 nos parágrafos 2º e 3º do art. 114 da Constituição Federal não apenas não violam direitos fundamentais, como importam em alterações necessárias, com o objetivo de privilegiar a autocomposição.

Ante o exposto, julgo improcedentes as ações diretas de inconstitucionalidade”.

Como se colhe dos excertos acima, o voto vencedor afirma que a exigência de comum acordo para ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica “busca implementar boas práticas internacionais, ampliando direitos fundamentais dos trabalhadores, na medida em que privilegia o acordo de vontades”; e que “não apenas não violam direitos fundamentais, como importam em alterações necessárias, com o objetivo de privilegiar a autocomposição”.

Cabe perguntar aos seis ministros que votaram nessa tese, fazendo-a vencedora:

I que boas práticas são essas se ao empregador é assegurado direito absoluto de denúncia vazia de contrato de trabalho, que, aliás, é reverenciada pela ministra Carmen Lúcia na ADPF 276 (igualmente, de autoria da Contee, questionando a Súmula 369 do TST), que trata de estabilidade provisória de dirigentes sindicais?

II que boas práticas são essas se a ultratividade das normas coletivas foi afastada, inicialmente, pelo STF (ADPF 323, relator ministro Gilmar Mendes) e, posteriormente, proibida pela Lei N. 13467/2017, o que faz com que cada negociação coletiva comece da estaca zero, como se não tivesse existido antes?

III que boas práticas são essas se as assembleias sindicais, por reiteradas decisões do STF (ADI 5794 e ADC 55, dentre dezenas de outras), são legítimas para decidir o nascimento e a morte de entidades sindicais, mas não o são para fixar contribuição sindical sequer para os seus associados?

IV que boas práticas são essas se o trabalhador não associado goza de todos os benefícios garantidos por convenções e acordos coletivos, mas é isento de pagar por elas, recaindo a obrigação apenas sobre os associados, conforme decisões do STF: ARE 101859, ADI 5794, ADC 55?

V que boas práticas são essas se o próprio STF declara que, em caso de força maior, pode-se afastar, por meio de medida provisória, a obrigatoriedade de negociação coletiva para redução salarial, determinada pelo Art. 7º, inciso VI, da CF (ADI 6342 e 6363)?

VI que boas práticas sãos essas se a quase sistemática recusa patronal em negociar, com a observância dos princípios da probidade e da boa-fé, não merece nenhuma reprimenda jurídica, inclusive pelo STF?

VII que boas práticas são essas se não se põe à disposição dos sindicatos profissionais nenhuma medida capaz de remediar a recusa patronal em negociar, em condições decentes, e de concordar com o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica, elegendo a Justiça do Trabalho como árbitro público?

Em casos que tais, cada vez mais presentes, o único caminho é o da greve, totalmente esvaziado pelo STF e pela Justiça do Trabalho.

Todas essas questões cruciais passaram ao largo dos seis ministros, que não só declararam constitucional a discutida exigência de comum acordo para ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica, como a incensaram como sendo a redenção sindical.

Não o fizeram não foi por descuido, mas, sim, porque para eles pouco importa se há consonância entre a norma e a realidade social; para eles, a forma é absoluta, o conteúdo não se releva.

A isso chamaram de “privilegiar a autocomposição”.

A rigor, como bem registraram em seus sucintos votos, os ministros Edson Fachin e Marco Aurélio, a impugnada exigência de comum acordo para ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica afronta a garantia inserta no Art. 5º, inciso XXXV, da CF: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O ministro Edson Fachin assevera em seu citado voto, dentre outras considerações e fundamentos:

“A leitura feita por este Supremo Tribunal Federal, em 2009, quando da concessão da medida cautelar para dar interpretação conforme ao disposto no art. 625-D da CLT, na redação da Lei 9.958/2000, confirmada em 2018, no julgamento da ADI 2.139, já referida, protegendo-se o direito dos trabalhadores de livre acesso à jurisdição trabalhista, apresenta-se adequada e atual, pois direciona-se para uma incrementação da proteção dos direitos sociais trabalhistas por ela resguardados, ainda que de forma mediata.

No caso dos autos, não merece sobrepujar-se o argumento de que é preciso estimular os meios alternativos de solução de conflitos, admitindo-se tal restrição como adequada e necessária, especialmente diante das recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT de privilegiar-se a normatização autônoma, pois que não se está a declarar a inconstitucionalidade da negociação coletiva, nem a desestimular a realização de acordos, respeitando-se, pois, as disposições da Convenção n. 154 da OIT.

O que se está a decidir, diante da questão constitucional trazida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, é a possibilidade, ou não, de exigir-se, diante da frustrada tentativa de composição amigável de dissídio de natureza econômica, o comum acordo entre as partes discordantes, para ingresso do pleito perante o Poder Judiciário competente, no caso brasileiro, a Justiça do Trabalho. Neste particular, com espeque na jurisprudência desta Suprema Corte, relativa ao âmbito de proteção do direito fundamental de acesso à Justiça, tem-se como inadequada e desnecessária a exigência de comum acordo prevista no § 2º do artigo 114 da Constituição da República, nos termos da redação dada pelo artigo 1º da Emenda Constitucional n. 45/2004, para o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica.

Outrossim, não é demais lembrar, nesta oportunidade, que o poder normativo da Justiça do Trabalho é uma conquista histórica dos trabalhadores brasileiros, expressamente previsto nas Constituições brasileiras desde a de 1946 (artigo 123, § 2º, CR/1946). A Justiça do Trabalho, devidamente instrumentalizada para regular as relações trabalhistas e vetoriada pelo princípio da Justiça Social, expressamente previsto em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988, não pode ser esvaziada de seu poder de disciplinar, com força normativa para toda a categoria, sua interpretação acerca dos dissídios de natureza coletiva.

Assim sendo, pedindo vênia ao e. Ministro Relator, julgo parcialmente procedente o pedido das ações diretas de inconstitucionalidade n. 3.431, 3.432, 3.520, 3.423 e 3.392, para declarar inconstitucional a expressão “de comum acordo”, constante do § 2º do artigo 114 da CRFB”.

Já o ministro Marco Aurélio assentou, em seu brevíssimo e certeiro voto:

“Tem-se ação direta reveladora de controvérsia atinente à compatibilidade, ou não, com a Constituição de 1988, do artigo 1º da Emenda de nº 45/2004, na parte mediante a qual dada nova redação ao artigo 114, parágrafos 2º e 3º, da Lei Maior.

Eis o teor do dispositivo atacado: Art. 1º Os arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 114 Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: […]

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito’.

Surge inobservada a unidade da Constituição Federal ao condicionar-se o ajuizamento de dissídio coletivo a mútuo acordo, no que inviabilizada, por uma das partes, a cláusula pétrea alusiva ao acesso ao Judiciário, previsto no rol das garantias constitucionais, objetivando afastar lesão ou ameaça de lesão a direito:

‘Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’.

Julgo parcialmente procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade da expressão “de comum acordo” constante do § 2º do artigo 114 da Carta da República, na redação conferida pela Emenda de nº 45/2004”.

Mais uma vez, o STF, no tocante aos direitos sindicais, investe-se na função do barqueiro Caronte, da mitologia grega, que tinha como tarefa eterna levar os mortos ao Hades, pelo rio Aqueronte, ou rio da dor, onde ficavam todos os sonhos daqueles.

Imitando-o, o STF conduz os direitos sindicais ao mundo dos mortos; mortos com a sua prestimosa ajuda.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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