Trabalho escravo e morte são registrados em fazendas fornecedoras da Coca-Cola e postos Ipiranga

Fiscalização resgatou 18 pessoas que trabalhavam no plantio de cana de açúcar, mas um integrante do grupo já havia morrido

Por Cristina Fausta – Edição: Andrea Bochi

O nome dele era André*. Um trabalhador que vivia no interior do Maranhão com sua família, esposa e duas filhas. Único provedor da casa e sem trabalho, ele resolveu aceitar um emprego no plantio de cana-de-açúcar em fazendas arrendadas pela Usina Coruripe, uma gigante do setor sucroalcooleiro e fornecedora de açúcar para as multinacionais Coca-Cola e Louis Dreyfus Company (LDC) e etanol para os postos Ipiranga.

André foi atraído para o trabalho junto com outros dezoito homens, por falsas promessas do encarregado pelas contratações, que firmou o compromisso de que o grupo trabalharia por três meses nas fazendas, localizadas nas cidades Veríssimo e Campo Florido (MG), em Minas Gerais, e que nenhum deles teriam de arcar com despesas com passagem, hospedagem e alimentação. André não sabia que o trabalho análogo à escravidão o aguardava e custaria a sua vida.

O grupo chegou à fazenda no mês de fevereiro deste ano e se deparou com condições precárias de trabalho. Segundo Auditores-Fiscais do Trabalho, nenhum Equipamento de Proteção Individual (EPI) rural foi fornecido para os trabalhadores. Na tentativa de se proteger, André achou uma bota no lixo, mas o uso desse sapato lhe causou um machucado no pé. Sem conseguir tratamento, o trabalhador morreu por choque séptico causado pela infecção, no dia 4 de abril, quando estava a caminho de um hospital em São Luís (MA), duas semanas após sua esposa ter lhe enviado dinheiro para voltar ao seu estado para tratar o ferimento.

Esse episódio é contado com detalhes estarrecedores, que chegam a ter cores, cheiros e imagens que colam na retina em matéria do site Repórter Brasil publicada na última segunda-feira, dia 22 agosto. A viúva, que preferiu não se identificar, relatou à reportagem que, mesmo sabendo da morte do trabalhador, os responsáveis pela contratação de seu marido não arcaram com os custos funerários, nem entraram em contato com a família.

“Esses trabalhadores vêm de uma situação de miséria, para tentar uma remuneração mais digna e acabam se sujeitando [a essas condições]. Mas isso não é voluntário. É um modo de organização do trabalho que faz com que eles se submetam a essa condição”, afirmou o Auditor-Fiscal do Trabalho, Humberto Camasmie, que coordenou a operação de fiscalização e resgate nas duas fazendas.

Enrascada

Relatórios dos Auditores-Fiscais do Trabalho, aos quais a Repórter Brasil teve acesso, informam que a trajetória dos trabalhadores começou em 18 de fevereiro, quando saíram do Maranhão, sob falsas promessas. A primeira a ser quebrada foi em relação à passagem e alimentação, já que eles tiveram de pagar todos os custos da viagem de três dias.

A segunda surpresa aconteceu quando chegaram no alojamento e perceberam que tinham caído em uma enrascada. Um deles ficava em Igarapava (SP), a 150 km das fazendas, localizadas nas cidades de Veríssimo e Campo Florido (MG). Os dormitórios eram extremamente precários, colocando em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores. Evaldo*, que abandonou o trabalho antes da fiscalização, conta que ele e seu cunhado André ficaram um mês dormindo no chão até encontrarem um colchão no lixo.

Os trabalhadores contaram à reportagem que ganhavam entre R$ 30 e R$ 40 por hectare plantado – valor insuficiente para sobreviver. Executando um trabalho extremamente desgastante, o grupo se alimentava de ovos, salsicha e tudo de mais barato que podia comprar com pouco dinheiro.  Segundo os relatórios, até mesmo os custos com equipamentos de segurança, ferramentas, aluguel, água, luz e refeições também foram pagos pelos trabalhadores.

A jornada de trabalho era extenuante. O grupo precisava pegar um ônibus fretado, às 6h e voltavam para o alojamento às 19h, horário que paravam suas atividades porque não dava para enxergar mais nada no meio da plantação.  Segundo a reportagem, o grupo só parava para se alimentar quando já não aguentavam mais a fome, pois a rotina era estimulada pelos aliciadores que ganhavam 30% sobre a produção de cada trabalhador.

Usina Coruripe e suas relações comerciais

A reportagem da Repórter Brasil apurou que a Usina Coruripe tem cinco unidades distribuídas em Alagoas e Minas Gerais e ocupa a58º posição do ranking Forbes Agro 100, que lista as maiores empresas do agronegócio brasileiro. Em seu site, a empresa afirma que há mais de 20 anos fornece açúcar cristal para a Coca-Cola Brasil. Outra gigante que mantém relações comerciais com a Coruripe é a Ipiranga, uma das maiores redes de distribuição de combustíveis do país. Contratos celebrados entre as duas empresas para a venda de etanol, com vencimentos em 2022 e 2023, somam mais de R$ 100 milhões.

A usina também tem investido no mercado internacional, sendo os Estados Unidos o principal destino das exportações. Nos últimos dois anos, a empresa vendeu mais de 25 mil toneladas para o ASR Group, companhia estadunidense do setor de cana-de-açúcar. O segundo maior comprador no período foi a companhia francesa Louis Dreyfus Company (LDC), que adquiriu 12 mil toneladas de açúcar da Coruripe.

Questionada pela Repórter Brasil sobre as ações a serem tomadas após o caso de trabalho escravo envolvendo fornecedores exclusivos, a Coruripe disse que “está tomando as medidas cabíveis”, mas não quis detalhar as providências adotadas.

Empresas Clientes

A Coca-Cola afirmou que exige dos seus fornecedores a adoção de “práticas responsáveis no local de trabalho”, em linha com sua política de direitos humanos, seus princípios de conduta para o fornecedor, mas não respondeu à reportagem sobre quais ações serão tomadas sobre o caso Coruripe. Já a Ipiranga, após contato da Repórter Brasil, suspendeu as operações com a Usina Coruripe “até que os fatos sejam esclarecidos.

Leia aqui a integra da resposta da usina Coruripe de todas as empresas clientes.

*nomes fictícios

Sinait

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