Tristeza, depressão, esperança, Uber: o fim de ano de quem viu a fábrica fechar e perdeu o emprego

Trabalhadores na Ford de São Bernardo receberam a notícia em fevereiro e passaram meses em busca de uma solução. Entre planos desfeitos e projetos interrompidos, expectativa continua.

Foi rápido: a representação dos trabalhadores correu pela fábrica para avisar os funcionários sobre uma notícia que iria parar na imprensa dali a 15 minutos. A Ford havia acabado de anunciar o fechamento da fábrica de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, após 52 anos de atividades, dizendo tratar-se de um plano de reestruturação regional. Era a tarde de 19 de fevereiro, uma terça-feira. Os metalúrgicos se mobilizaram, chegaram a ir aos Estados Unidos para uma conversa – que se revelou formal – com a direção da montadora, mas não conseguiram reverter a decisão.

Em 30 de outubro, saiu o último caminhão da linha de montagem. Um dia antes, os trabalhadores realizaram a última assembleia. O último automóvel (Fiesta) havia sido fabricado em 13 de junho. Datas que foram desanimando os funcionários e aumentando o clima de incerteza. Agora, só estão na fábrica empregados administrativos e de manutenção. No momento do anúncio, eram pouco de 4.300 funcionários, incluindo terceirizados.

Ao mesmo tempo, seguem as conversas para a compra da unidade – pelo grupo Caoa, por uma empresa chinesa, por alguém que não deixe a linha parar de vez. Enquanto isso não acontece, quem já saiu faz planos, procura outro emprego, tenta economizar e se preparar para passar um fim de ano bem mais modesto. Funcionários lembram das consequências da decisão para as famílias e até para fornecedores. Alguns relatam casos de gente que adoeceu.

“Todo mundo falava que isso (fechamento) não ia acontecer”, lembra Vanessa Rocha da Cunha, 26 anos, 6 anos e 42 dias de Ford. De auxiliar administrativa, foi trabalhar na submontagem. “Deu dor no coração. Tinha gente que tinha acabado de assinar contrato (de financiamento da casa própria). ”

“Absurdamente triste”

Bem diferente de quando ela começou, em 2013. “Todo sábado tinha trabalho”, lembra. “O espaço na linha era pequeno. Na cabine, com quatro pessoas, se você desse uma cotovelada batia no colega.” Vanessa trabalhou até 28 de outubro e já teve uma sensação ruim ao sair, porque não tinha mais crachá e teve de ser liberada. Fez homologação em 4 de dezembro. A Ford foi sua primeira experiência em fábrica. Até então era auxiliar administrativa, na Bombril e em uma ONG que ajuda moradores de rua.

“Comecei aqui, o primeiro parafuso que eu coloquei foi aqui. Foi absurdamente triste. Até a nossa ligação (entre colegas) foi abalada, só está desestressando agora”, conta Vanessa. O marido, vigilante de profissão, presta serviços de manutenção industrial. Nas horas vagas, para complementar a renda, trabalha como motorista do Uber, uma tendência que se consolidou no país pós-“reforma”, como mostram dados do IBGE divulgados neste final de ano: cada vez mais pessoas trabalham com veículos, nas ruas e em casa.

A funcionária lembra que o fechamento da Ford tem efeito multiplicador: atingiu o fornecedor de sucos, o rapaz da lanchonete, o dono da padaria, tudo nas proximidades da fábrica, no bairro do Taboão. Ela acredita que mesmo iniciativas beneficentes foram atingidas, como sacolinhas para crianças pobres que eram organizadas pelos funcionários da montadora. Com tudo isso, os planos de passar, talvez, 15 dias no interior foram cancelados. O Natal, previa Vanessa, “vai ser super em casa”.

“Não posso deixar cair”

Para Thiago Pereira de Araújo, 35 anos, as festas também serão em casa, “normal, como todos os anos”, com alguma economia na ceia de Natal. Depois de nove anos de Ford, ele tenta se recolocar – já fez testes para a GM, mas ainda não foi chamado. Por enquanto, corta despesas. “Diminuí minha internet, o seguro do carro”, conta. “O segundo plano é Uber. Quatro colegas na mesma área que eu já estão de Uber.”

Com apelido de Tigrão na fábrica – colegas o achavam parecido com um dos integrantes do grupo Bonde do Tigrão –, Thiago conta que sempre ouviu “dos mais velhos”, os funcionários com mais tempo de Ford, a respeito de boatos sobre fechamento da unidade de São Bernardo. “Acreditei que era mais uma estratégia. Já vi reverter lay-off (suspensão dos contratos de trabalho). Eu acredita que poderia (reverter), sim.” O operário vem de uma sequência de familiares que foram trabalhadores da Ford: pai, irmão e cunhado, entre outros, passaram por lá.

A notícia em si já foi um baque, recorda Thiago sobre o corre-corre do anúncio na fábrica antes de a informação chegar à mídia. “Para mim, a tristeza bateu forte quando fui me despedir dos amigos. Caras que vão ter mais dificuldade que você, e você não pode fazer nada. Tem cara que pagava 2 mil reais de escola para o filho.” Ele relata casos de desespero entre colegas e afirma que é preciso força para manter o equilíbrio emocional. Pensa na mulher, na enteada. “Tenho dois braços, duas pernas. Tenho que estar bem por elas, para não deixar tudo cair.”

Sem plano médico

Ele se diz triste porque pode não cumprir uma promessa feita à mãe, já falecida, de ajudar alguém todo final de ano. “O que me magoa muito é não dar continuidade.” O colega Leandro Pegorin Garcia tenta animá-lo: “Pelo menos você não perde a noção de solidariedade, nestes tempos”. Aos 46 anos, Leandro completaria 25 anos de Ford em fevereiro. Começou na fábrica do Ipiranga, em São Paulo, que produzia caminhões. A unidade foi fechada em 2001 e a atividade, transferida para o ABC.

Aquilo deu “sobrevida” à unidade de São Bernardo, acredita Leandro. Naquele mesmo ano, o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Marinho, viajou aos Estados Unidos e conseguiu um acordo que incluiu cinco anos de estabilidade na Ford. Agora, acrescenta, a empresa não encontrou qualquer empecilho por parte das autoridades: “O governo está favorável”.

“Nós estamos num nível de precarização que eu nunca imaginei”, diz Leandro, que antes trabalhou no comércio. Morador de Santo André e pai de duas filhas, de 21 e 14 anos, ele também é professor de História e Geografia, atividade que chegou a exercer, no período da noite, simultaneamente ao trabalho na fábrica. Prevendo dificuldades para encontrar outro emprego em indústria, devido à idade, fez os primeiros contatos em escolas. No orçamento doméstico, o primeiro corte foi na TV a cabo. “O que vai pesando agora é plano médico”, afirma, preocupado, ao contar que sua mulher tem doença degenerativa – sofre de esclerose múltipla.

Ele observa que a montadora foi “enxugando” seu quadro aos poucos, com lay-offs e programas de demissão voluntária. Recorda que a fábrica do Ipiranga chegou a ter dois turnos, e até um terceiro, parcial, o chamado “pé-quebrado”. Comenta a possível ida de Thiago para a GM e observa que teve colegas que foram para a Mercedes. “Aí você vê que a questão da Ford não é mercado”, diz. Os dois não se surpreenderam com o fim da fábrica de automóveis, mas não esperavam que a medida atingisse a produção de caminhões. “Tirar uma fatia de caminhões, que era 33% do mercado… Ninguém contava com isso. Foi surreal”, diz Thiago. Seu colega lembra que esse setor só existia no Brasil e na Turquia.

Compromisso com a região

Rafael Marques, diretor e ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, agora ex-funcionário da Ford, após 33 anos, segue em busca de uma solução. Isso significa garantir a manutenção de uma unidade industrial. “Temos que deixar a Ford amarrada com esse compromisso com a região, de que vai ser indústria. Precisamos garantir esse compromisso. Esta área tem que continuar como indústria”, diz. A indefinição persiste. Desde o começo, o grupo Caoa apareceu como principal interessado na aquisição das instalações. No final do ano, seu presidente do conselho, Carlos Alberto Oliveira Andrade, declarou que o interesse continuava, mas que a chance, naquele momento, era “remota”. Em novembro, uma representação dos metalúrgicos reuniu com gestores do BNDES em busca de informações.

A Ford diz que tem novos interessados, conta Rafael, que critica a empresa por, de alguma forma, ter “virado as costas para a região” do ABC. Para ele, em algum momento a montadora anunciaria, como fez, o fim do Fiesta, mas a extensão dessa decisão para o setor de caminhões pegou todos de surpresa. O fato de a Ford falar em “rejuvenescimento da marca” soa como alerta para Rafael, hoje à frente do Instituto Trabalho, Indústria e Desenvolvimento (TID). “É uma coisa que requer avaliação do mercado de trabalho local. É obrigação dos gestores da região refletir sobre isso”, afirma.

Isso passa pela busca da inovação, de conhecimento da tecnologia, e também por articulação regional, por meio de suas entidades. “O Consórcio (Intermunicipal) tem de ser fortalecido, a Agência tem de ser reinaugurada.” É uma questão estratégica, assinala: “Temos de recolocar o mundo do trabalho aliado a essa questão tecnológica”.

Rafael estava no último dia de produção, tanto de automóveis como de caminhões. Filmou a fabricação do último caminhão, em que Leandro e Thiago estavam presentes. Conta que nos últimos tempos teve sonhos frequentes envolvendo a fábrica. Ele escreveu recentemente um artigo no qual cobra posicionamento da empresa. O título é claro e resume angústias e expectativas: “Onde a Ford quer chegar no Brasil?“.

CTB

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