Por que as mulheres saíram do mercado de trabalho do Brasil em 2020?
A crise pandêmica causada pela Covid-19, de forma distinta de outras crises econômicas, atingiu principalmente as mulheres. Estudos que tratam sobre os impactos das crises cíclicas sobre o mercado de trabalho indicam que há diferenças importantes nos impactos sobre nível de emprego de homens e mulheres. O diferente comportamento ocorre também entre outros recortes populacionais, relacionados à idade, raça e escolaridade.
As diferenças por gênero se explicam pela segregação no mercado de trabalho. Em geral, homens estão empregados em atividades mais suscetíveis aos ciclos econômicos. A Grande Recessão Econômica de 2008/2009 que atingiu as economias de renda média principalmente na sua segunda fase, afetou principalmente as atividades industriais, e de construção, que concentra força de trabalho masculina e jovem. Já as atividades ligadas aos serviços e comércio, que empregam a maior parte da força de trabalho feminina, não foram atingidas de forma tão intensa neste período. A população mais afetada neste período, foram os homens jovens de baixa escolaridade. Ainda que os empregos mais afetados durante a recessão econômica foram os masculinos, a retomada ao mercado de trabalho ocorreu de forma mais acelerada entre os homens1.
No caso da crise pandêmica, a dinâmica é diferente, e impacta o trabalho das mulheres por dois fatores principais ligados às características do vírus. Por um lado, a necessidade de distanciamento social e o fechamento de diversos serviços como hotéis, restaurantes e escolas de educação infantil, decorreu no decréscimo principalmente de postos de trabalhos ocupados por mulheres, como serviços, especialmente ligados ao turismo, trabalhos domésticos remunerados, restaurantes, serviços de educação e outros ligados aos cuidados.
Conforme o estudo divulgado por Horn e Donoso (2021)2, no período de abril a junho de 2020, comparando com abril a junho de 2019, os setores de atividade que mais reduziram o número de ocupados foram “alojamento e alimentação”, com decréscimo de 29,9%, “Outros Serviços”, com queda de 20,8% e “Serviços Domésticos”, que apresentou redução de 26,5%.
Outro fator relacionado à maior penalização das mulheres ante à pandemia está relacionado à internalização dos trabalhos de cuidados. Ou seja, muitas destas atividades, como manutenção de alimentos e cuidados com crianças, anteriormente ofertadas no mercado, passaram a ser realizadas pelas famílias dentro dos domicílios. Além disso, houve uma profunda diminuição de pessoas ocupadas como empregadas domésticas, setor de atividade de grande importância como empregadora de força de trabalho feminina. Essa dinâmica, por um lado, retirou as mulheres do mercado de trabalho, e, por outro, intensificou o trabalho não remunerado feminino, penalizando sua participação em atividades mercantis3.
O Gráfico 1 ilustra a variação da taxa de participação total, das mulheres e homens no mercado de trabalho durante o primeiro, segundo e terceiro trimestre de 2020. Houve uma queda na participação total de pessoas no mercado de trabalho de 61% no primeiro trimestre para 55,1% no terceiro trimestre, o que representa uma variação de 5,9 p.p.. No caso dos homens, a taxa passou de 70,8% para 65,7%, o que representa uma queda de 5,1 p.p.. Já entre as mulheres, a variação foi de 52,1% para 45,8%, ou seja, uma diminuição de 6,3 p.p. no emprego feminino. As mulheres, portanto, saíram do mercado de trabalho em 2020 de forma mais intensa do que os homens, aumentando as desigualdades entre as taxas de participação por sexo no Brasil.
Além disso, as dinâmicas do emprego masculino e feminino durante a passagem do segundo para o terceiro trimestre de 2020 são distintas. Este período foi caracterizado pela flexibilização das medidas de distanciamento social e retomada de algumas atividades econômicas. Como reflexo, enquanto os homens aumentaram a taxa de participação em 0,2 p.p., as mulheres permaneceram saindo do mercado de trabalho, apresentando queda na taxa de participação em -0,5%.
A diminuição da taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho foi acompanhada ainda pela elevação na taxa de desemprego durante o período. A taxa de desemprego total entre o primeiro trimestre ao terceiro trimestre de 2020, apresentou elevação de 2,4 p.p., passando de 12,2% para 14,6%. No caso dos homens, a variação no período foi de 2,4 p.p. e dentre as mulheres, 2,3 p.p.. Ou seja, houve um aumento total levemente maior no desemprego masculino do que feminino no período (Gráfico 2).
A dinâmica da taxa de desemprego entre homens e mulheres ao longo dos trimestres do ano, entretanto, é distinta. A maior elevação da taxa de desemprego masculina ocorreu na passagem do primeiro trimestre para o segundo trimestre de 2020, com crescimento de 1,6 p.p., enquanto a taxa de desemprego feminino aumentou 0,4 p.p. no mesmo período. Neste trimestre houve relevante saída de pessoas do mercado de trabalho, em decorrência das medidas de distanciamento social. Na passagem do segundo para o terceiro trimestre, por outro lado, houve crescimento de 0,8 p.p. no desemprego masculino, enquanto o feminino aumentou 1,9 p.p.. Ou seja, em momento de retomada da atividade econômica, se observa uma maior dificuldade das mulheres reingressarem no mercado de trabalho, quando comparado aos homens.
A permanência das mulheres fora do mercado de trabalho por longo tempo, além da penalização na renda imediata, deverá incorrer em maior dificuldade de reingresso no mercado de trabalho, e, por conseguinte a intensificação das desigualdades de gênero. As diferenças devem se aprofundar em grupos populacionais marginalizados, e, em especial dentre as famílias de baixa renda com responsabilidades familiares, especialmente com filhos pequenos4.
A saída das mulheres no mercado de trabalho no Brasil, portanto, está relacionada com os efeitos da crise pandêmica e tende a se aprofundar pelas políticas de austeridade fiscal que vêm sendo adotadas e anunciadas pelo governo5. Os resultados da austeridade fiscal recaem principalmente sobre as mulheres, crianças e grupos vulneráveis, o que ocorre tanto pelo lado da demanda, como da oferta6. Pelo lado da oferta, as mulheres estão alocadas no mercado de trabalho como ofertantes de serviços de cuidados, seja de forma remunerada ou não remunerada. No lado da demanda, as crianças, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade sociais dependem dos serviços públicos, e, por conseguinte, são mais prejudicados com a diminuição do Estado. É necessário, ao contrário das políticas anunciadas, investimentos em recursos voltados para a área de cuidados, principalmente saúde e educação, a fim de mitigar os impactos da pandemia, e combatê-la.
Notas
1 HOYNES, H.; MILLER, D. SCHALLER, J. Who Suffers During Recessions? Journal of Economic Perspectives, V. 26, n. 3, 2012.
2 http://www.dmtemdebate.com.br/
3 Sobre os impactos da pandemia na intensificação do trabalho feminino no Brasil, ver pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela Gênero e Número e Sempre Viva Organização Feminista, disponível em: http://mulheresnapandemia.sof.
4 Essa dinâmica é analisada para os Estados Unidos em: ALON T.; DOEPKE, M., OLMSTEAD-RUMSEY J.; TERTIL M. This time is different: the role of women´s employment in a pandemic recession. NBER Working Paper Series, Ago. 2020. e ALON, T., DOEPKE, M., OLMSTEAD-RUMSEY J., TERTIL, M. The impact of Covid-19 on Gender Equality. NBER Working Paper Series, Abr 2020
5 Cabe destacar, dentre as medidas anunciadas, o fim do piso para a saúde e educação dos estados e municípios, relacionada na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 186, de 2019 que deve ser votada no Senada no dia 25 de fevereiro de 2021.
6 Acerca dos impactos da austeridade fiscal sobre as mulheres ver texto: ORTIZ, I; CUMMIS, M. Austerity Measures in Developing Countries: Public Expenditure Trends and Risks to Children and Women. Feminist Economics, mai 2013.
Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.