Sinpro/RS: BNCC desconstitui a autonomia docente
Em qualquer processo educacional no mundo, o engajamento dos professores e sua preparação precedem as reformas, principalmente, quando se trata de mudanças curriculares. No Brasil, não
Por Gabriel Grabowski
“Professor precisa ser formulador de proposta própria, ou seja,
precisa saber elaborar com autonomia. Enquanto sua função
de socializador do conhecimento decresce e será substituída
em grande parte, aumenta o desafio formativo, tipicamente
educativo, de fundamentar a emancipação
própria e dos alunos”. (Pedro Demo)
O mundo se transforma, o modelo atual de escola mudou, a relação com a construção do conhecimento apresenta novos desafios e o papel do professor é altamente decisivo. Não há aprendizagem sem professor e professor de qualidade, bem formado, valorizado, pesquisador e mediador. Neste contexto, “precisamos colocar foco na formação profissional do professor”, afirma António Nóvoa, especialista em formação docente da Universidade de Lisboa.
No Brasil estamos procedendo reformas curriculares desde a educação infantil até o ensino superior. Após a provação da BNCC da Educação Infantil e Ensino Fundamental (2017) e do ensino Médio (2018), está em análise no Conselho Nacional de Educação (CNE) a 3ª versão do documento sobre Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica. Em qualquer processo educacional no mundo, o engajamento dos professores e sua preparação precedem as reformas, principalmente, quando se trata de mudanças curriculares. Mas, o Brasil trilha o caminho inverso deixando o professor e sua formação por último e seu protagonismo na construção das novas propostas curriculares.
Esta nova versão da BNCC está alinhada muito mais com as perspectivas da OCDE, especialmente com a publicação Education Policy Analysis, (1998), onde utilizam-se expressões como: “trazer outra vez os professores para o retrato”; “colocar os professores no centro dos processos sociais e econômicos”; “os professores são os profissionais mais relevantes na construção da sociedade do futuro”; “os professores têm de voltar para o centro das estratégias culturais”; “os professores estão no coração das mudanças”. Tudo isso para concluir que “a centralidade dos professores nem sempre é devidamente reconhecida no plano político”.
Segundo Helena de Freitas (professora da Unicamp e ex-presidente da Anfope), a concepção do MEC/CNE foca suas análises exclusivamente na formação inicial por compreender que “entre os fatores que podem ser controlados pela política educacional, o professor é o que tem maior peso na determinação do desempenho dos alunos”, vinculando a políticas de avaliação de desempenho, premiando e punindo professores. Porém, no entender da pesquisadora, esta BNCC deveria contemplar não apenas a formação inicial e continuada de professores, mas as condições de trabalho, salário e carreira de todos os professores, bem como a infraestrutura das escolas e as condições sociais e econômicas dos estudantes e suas famílias. Não será o professor o único e maior responsável pelo sucesso ou fracasso dos estudantes no processo de aprendizagem como está subjacente na proposta de BNCC e das Diretrizes para a Formação de Professores em pauta.
Na lei maior da educação (LDB n° 9.394/1996, art. 13) está definida e afirmada a função do professor no processo educativo de forma ativa: participar da elaboração da proposta pedagógica; elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica; zelar pela aprendizagem dos alunos; estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional e colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade. Ou seja, aqui há uma compreensão alargada, aprofundada e contextualizada da docência no espaço educacional.
Já a nova proposta de BNCC e Diretrizes para formação de professores toma por base competências docentes compostas por três dimensões: o conhecimento, a prática e o engajamento profissional. Não é necessário demonstrar que são dimensões extremamente genéricas e são comuns a qualquer profissão. Os princípios para a formação docente desta proposta são: formação docente para todas as etapas e modalidades da educação básica como compromisso de estado; valorização da profissão docente, que inclui o reconhecimento e o fortalecimento das especificidades dos saberes e práticas específicas de tal profissão; colaboração constante entre os entes federados; garantia de padrões de qualidade dos cursos de formação de docentes; articulação entre a teoria e a prática no processo de formação docente; equidade no acesso à formação inicial e continuada; formação continuada entendida como componente essencial da profissionalização docente e compreensão dos docentes como agentes formativos de conhecimento e cultura. São mais intenções que princípios, de caráter generalista, sem compromisso de implementação, desarticulados das metas e estratégias do PNE 2014-2024, aliás, vigentes e, propositadamente, abandonadas.
Qual é o grande problema que temos no Brasil no campo da formação docente? Segundo Helena Freitas é que a maioria dos cursos de licenciatura é desenvolvida por instituições privadas, grande parte apenas faculdades isoladas ou integradas, em cursos noturnos e a distância. Professores horistas, sem carreira, contratos emergenciais e temporários, portanto, sem pesquisa, sem dedicação exclusiva a licenciaturas. O movimento pela formação sempre defendeu que a formação ocorra em universidades que desenvolvem ensino, pesquisa e extensão.
Em países como Portugal e Finlândia, a formação é desenvolvida em tempo maior (mínimo cinco anos), em universidades públicas, em tempo integral, com sólida formação teórica e práticas profissionais docentes em Escolas de Aplicação. A carreira docente em Portugal, com valorização da titulação – todos professores precisam ter, no mínimo, mestrado para atuar na educação infantil e, muitos possuem doutorado –, mesmo atuando na educação básica. A formação é permanente, em serviço e por pares, em Centros de Formação, localizados nas diversas regiões do país.
Na Finlândia é a carreira mais valorizada. Somente os estudantes mais destacados conseguem acessar, com formação mínima de mestrado, em universidades públicas, em tempo integral, com formação de professores baseada em pesquisas, desenvolvendo profissionais pesquisadores e líderes sociais, pois o Estado e a sociedade compreendem que bons professores formam excelentes escolas. O segredo do sucesso da educação neste país não se deve à sorte, a constantes reformas, nem a metodologia própria, mas se deve ao investimento que o país realiza na formação e no trabalho do professor. As reformas educacionais e as mudanças curriculares são pensadas pelos professores, pois eles são os maiores especialistas das ciências da educação. Neste país, um CEO ou comandante militar aposentado com méritos jamais liderariam uma escola. A direção das escolas e das secretariais municipais da educação estão nas mãos de educadores profissionais com experiência na área.
Mas, o que torna o magistério um trabalho tão reconhecido a ponto de atrair os melhores jovens para a docência e mantê-los nas escolas em alguns países que se destacam em educação? Em primeiro lugar, e mais importante, é essencial que o local de trabalho dos professores permita que eles cumpram suas missões formadoras de novas gerações. As escolas são concebidas como comunidades de aprendizagem profissional sob a liderança do professor. Em segundo lugar, a formação do professor deve ser suficientemente concorrida e exigente para atrair jovens talentosos que concluem o ensino médio (no Brasil menos 2% almejam ser professor) e, em terceiro, nível salarial, a possibilidade de crescimento salarial e desenvolvimento na carreira.
Nestes países, não há avaliação em larga escala e não há currículos padronizados, e os professores têm autonomia para desenvolver seu trabalho e o fazem sem os controles todos que a BNCC e o CNE pretendem impor. No Brasil, a proposta é padronizar tudo, desde currículo até o material didático, plataformas de aprendizagem, matrizes curriculares, avaliação, certificação, retirando do professor sua autonomia, o que de mais caro lhe pertence: a direção, a determinação sobre seu trabalho educativo, pedagógico com as crianças e jovens, de forma solidária, parceira, com o coletivo da escola. As novas determinações desestruturam essas possibilidades, embora tenha todo um palavreado nessa direção, mas que não se sustenta quando olhamos para a intenção da totalidade das propostas.
Os gestores do Brasil acreditam que seremos o primeiro país do mundo que, percorrendo um processo inverso – tipo “sala invertida” –, ou seja, improvisando na formação, desprestigiando socialmente os professores, incentivando o denuncismo contra suas reflexões, precarizando as relações de trabalho (40% possuem contrato emergencial e temporário no Brasil), impondo reformas educacionais e curriculares sem prévia discussão com eles e, o mais grave, desconstruindo o valor da profissão docente, seremos competitivos na educação e nos aproximaremos dos denominados países desenvolvidos.
Professores sem autonomia de criar, de pensar e de educar não formaram crianças e jovens com capacidade própria de agir e viver em coletividades. É por esta razão, entre outras, que as entidades nacionais representativas do campo da formação de professores manifestam-se contrárias à proposta de BNCC e DCN de Formação Inicial e Continuada de Professores em análise e discussão no CNE e, defendem que se dê continuidade à implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais discutidas e aprovadas em 2015, expressas na Resolução 02. Esta proposta de Base e de Diretrizes não corresponde nem representa nossa sociedade e nossas escolas. E, nós, ‘temos que distinguir, em primeiro lugar, uma BNCC e esta BNCC. “Uma coisa é você defender uma Base, outra coisa é defender esta Base” (Carlos A. Jamil Cury).