Sinpro Itajaí e Região: Da tragédia em São Paulo à lobotomia virtual
A tragédia na Escola Estadual Thomazia Montoro vem como um sintoma de um país já anestesiado, que perde sua sensibilidade para conviver com a diferença e o contraditório
José Isaías Venera*
No último microensaio do livro A expulsão do outro, nomeado “Escutar”, o filósofo Byung-Chul Han vislumbra num futuro uma nova profissão, a do escutador. Curioso é que o psicanalista poderia se chamar escutador, mas é negligenciado por Han. Em uma das passagens: “O escutador é um espaço de ressonância no qual o outro fala livremente. Assim, o escutar pode ser curativo”. A escuta advém de uma posição de suspenção da moral e do juízo para que o outro circule a palavra desgarrada de padrões que inibem o sujeito. O que mobilizaria a presença de escutadores, para Han, seria a onipresença da comunicação digital, impessoal, que se dá sem a presença do outro, “sem olhar e sem voz”.
O escutador ausente na tragédia na escola Thomazia
A tragédia na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, que resultou na morte de uma professora, no dia 27, além de deixar outras cinco pessoas feridas, praticada por um adolescente de 13 anos, vem como um sintoma de um país já anestesiado, que perde sua sensibilidade para conviver com a diferença e o contraditório. Esse é mais um triste evento que coloca a escola no centro do alvo de práticas de intolerância e se junta a outros discursos de ódio.
Não demorou muito quando manifestações do Twitter do adolescente revelavam sua intenção: “Vcs acham que eu faço amanhã e vê o que vai acontecer sem um armamento decente ou não?”. O portal Pragmatismo Político, em 28 de março, identificou que “um usuário anônimo, dedicado a publicar vídeos e fotos homenageando os autores de crimes como os massacres de Suzano e de Aracruz perguntou: ‘Como vc vai fazer isso?’”.
Não é de hoje que a escola se tornou um mal, passando do discurso de ódio ao ato. Junta-se a esses casos mais gritantes uma discursividade ampla que disputa espaço na partilha política. A escola está no núcleo do debate político para a extrema direita no Brasil – sobretudo com o surgimento de grupos como o Movimento Brasil Livre em 2014, passando pelo debate desonesto sobre “ideologia de gênero”, até a chamada homeschooling; um dos objetivos é impedir o aluno do contato com o diferente e com ideias consideradas “degeneradas”. A escola ganha o sentido de antro de corrupção moral que desvirtua os alunos, das séries iniciais à universidade, dos valores da chamada família de bem. Em síntese, esse ponto de vista remonta a uma visão contrária aos valores universais que situa a escola como lugar de todos e no horizonte dos direitos humanos.
O distanciamento entre agressor e agredido nas mídias de conexão cria um descompasso social que inibe a empatia pelo outro. Essa é uma questão que se refere ao debate dos meios de comunicação de massa, mas que adquire novos contornos com a comunicação digital.
Mídia, anestesia e violência
Susan Buck-Morss, filósofa americana, fez este diagnóstico sobre a estética e a política na modernidade: o excesso de informações e a exploração de sensações produzem a anestesia corpórea. Na releitura das teorias de Walter Benjamin, Susan fala sobre o modo como as massas preenchem a tela no filme de Leni Riefenstahl O triunfo da vontade, de 1935: “A estética faculta uma anestesia da recepção, […] mesmo quando a cena é uma preparação, por meio de ritual, de toda uma sociedade para o sacrifício inquestionável e, no limite, para a destruição, o assassínio e a morte.”.
De um lado, os personagens da mídia (tela) estão ausentes para os espectadores; de outro, os espectadores realizam certas operações cognitivas porque os corpos enaltecidos ou em sofrimento estão no espaço representacional. O nó da questão é a ausência do corpo do outro, que inibe a sensibilidade. Para Susan, “no cinema suportamos as mais eróticas provocações, os atos mais brutais de violência, mas não fazemos nada. Corta-se a continuidade entre cognição e ação”.
No dia a dia, as notícias sobre guerras, violência nas cidades, ameaças do chamado “mercado”, intolerâncias de toda ordem causam um choque no cotidiano, levando-nos a criar uma proteção, à qual Buck-Morss chama de “escudo entorpecente” da consciência. E o cinema poderia ser a arte capaz (não faltariam bons exemplos) de atravessar esse escudo, mas, ao contrário, quando apreendido para o entretenimento das massas — Benjamin cita o fascismo como exemplo —, acaba reforçando outra forma de anestesia.
Para atualizar o debate, em outubro do ano passado, foi lançado nos Estados Unidos o filme Terrifier 2, uma experiência de dissecação do corpo ainda vivo numa narrativa fílmica miserável. Resume-se à carnificina gratuita. Seu grau de violência representacional pode ser mensurado a espectadores anestesiados. Para haver alguma reação, é preciso retirar quase toda narrativa e dar um zoom à violência. Algo semelhante no campo da pornografia, se fosse possível produzir órgãos sexuais em laboratório e colocá-los em relação, o voyeur realizaria seu desenho de forma mais objetiva, sem desviar a atenção com outras partes do corpo.
Quando a fala falta, vem a agressividade
O descompasso social com a ausência do outro de carne e osso, acrescido do fluxo frenético de conteúdos e do agenciamento por algoritmos que favorece o surgimento de bolhas da internet, contribui para a inibição à lembrança, à narrativa e à reelaboração de experiências dolorosas.
Em Recordar-se, repetir e elaborar, de 1914, Sigmund Freud nos dá pistas do caminho para mitigar a agressividade. Para o pai da psicanálise, o sujeito repete, inconscientemente, aquilo que não é possível ser lembrado. Podemos articular com as violências que estruturam nosso cotidiano, muitas delas oriundas de hierarquizações que se formam a partir da raça, da sexualidade, do gênero, do credo, da classe produzindo os “ismos”, como o racismo e o machismo. A hierarquia é um passo além da classificação, funciona para enaltecer certos grupos e humilhar outros. A psicanálise é um dos caminhos possíveis para o sujeito se desvencilhar dos seus sintomas produzidos nas relações com os “outros”.
Fazer a palavra circular é o caminho para a elaboração. Elabora-se somente aquilo que entrou para o registro da palavra. Para Freud, as experiências dolorosas que não são simbolizadas retornam em ato, em agressividade.
Da anestesia à lobotomia algorítmica
Não estamos mais no domínio dos meios de comunicação de massa, mas, sim, sob um céu aberto do ciberespaço e colonizado (não somente) por aves de rapina à espreita de presas fáceis para colocar em ato o ódio pelo outro, marcado pelo jogo de eliminação da diferença – de raça, de gênero, de classe, de opção política. Nenhum outro espaço coloca com mais propriedade a importância do convívio com as diferenças como parte do processo educativo e civilizatório do que a escola presencial. Seria esse um dos motivos de tanto ódio e combate à escola?
O convívio com a diferença pode ser entendido como a dimensão fundamental da escola, que vai muito além dos conteúdos escolares. No entanto, há um currículo fora da escola que produz mais do que a anestesia observada por Susan; esse currículo forma um novo mapa subjetivo, uma espécie de lobotomia virtual, ou uma virtualização do real, que ganha dimensões trágicas com a segregação (bolha) agenciada na grande rede.
A angústia como afeto político
Nas telas que se multiplicam nas palmas das mãos, o choque com a tragédia na escola veio com o vídeo feito por câmeras de segurança. Nesse cenário, a mídia exerce duas funções antagônicas: de um lado, torna pública a violência chocante despertando alguma reação nos espectadores; de outro, alimenta-se da violência para aumentar a audiência.
Na via de Susan, poderíamos supor que, quanto mais anestesiados os corpos, maior o grau de violência à espera de um choque de realidade, como se o internauta precisasse ser sacolejado para manifestar alguma reação. Na segunda proposição, quanto mais anestesiados os corpos, mais eficiente é o processo de lobotomia virtual até reduzir o sujeito a um corpo que realiza em ato o discurso de ódio.
Há, no entanto, uma dimensão política – compreendendo-a no sentido de dissenso proposto por Jacques Rancière – que vem, na articulação com a psicanálise, como sinal de humanidade: a angústia. Uma dimensão que escapa à racionalidade e vem como um afeto que não erra, aponta para uma verdade desconcertante. Para o psicanalista Jacques Lacan, o único afeto que não engana é a angústia. Sua causa não se encontra em um objeto da realidade, mas indica um mal-estar. A angústia, assim, pode ser interpretada como um afeto político, que sinaliza para uma realidade em descompasso com o desejo.
Uma pequena fórmula pode nos ajudar a calibrar essa dimensão ética do desejo: quanto mais o sujeito renuncia ao seu desejo, mais a angústia o acomete. Poderíamos nos perguntar de qual desejo se fala? Não pode ser sobre aquilo que está legislado, consensuado, que vem como demanda do Estado, do partido, da empresa, da publicidade, do jornalismo, dos grupos do WhatsApp, ou de uma Brasil Paralelo marcada pela produção de fake news. O desejo do sujeito se inscreve na singularidade, na diferença em jogo. A eliminação do outro pela sua diferença é a renúncia do próprio desejo naquilo que marcaria sua potência.
José Isaías Venera é professor do PPGE da Univille e membro do Fórum do Campo Lacaniano.