O procurado da Rua Bernardo Mascarenhas, 1.176
A jornalista Ângela Landau narra com a tranquilidade de quem contou essa história muitas vezes. De quem a ouviu, recordou, repetiu, repassou na cabeça incansavelmente. Dizendo em voz alta para outras pessoas. Reelaborando, em silêncio, para si. Narra quase como se estivesse contando um caso anedótico que tenha passado à margem da história da cidade e do país, e não a prisão e tortura do pai poucos dias depois do golpe civil-militar de 1° de abril de 1964, que mergulhou o Brasil em 21 anos de ditadura.
Quase. Quando chega a um nome, porém, o de José Apolônio Teixeira, sargento do Exército e integrante do serviço de informação (embora ainda não oficializado como SNI), os lábios se apertam. O superior pressiona o inferior num pê mudo, antes de ela deixar extravasar, em apenas quatro letras e duas sílabas, 59 anos de mágoa. “Dedo duro, né? Filho da p…”, e pausa. Depois completa, resoluta. “Puta. Pronto, falei. As coisas que engasgam a gente, a gente tem que falar. Têm nome.”
José Apolônio Teixeira era marido de sua prima, Miriam. E, provavelmente, o alcaguete que, naquele abril de 64, denunciou o esconderijo do sindicalista Adalberto Landau, pai de Ângela, aos militares. E, com ele, o de Clodesmidt Riani, personagem conhecido na história de Juiz de Fora.
O que chega na madrugada
O nome de Landau não consta no relatório da Comissão Municipal da Verdade, a não ser uma única vez, na lista de presos políticos detidos naquele mês, apesar de não haver informação sobre a data da prisão. “O que aconteceu com a data da prisão do papai? Dia 30 de março, 29… não sei precisar, mas uns dois, três dias antes do golpe ser estabelecido no Brasil, o Riani ligou. Estava em Juiz de Fora, ligou e falou: ‘Landau, o negócio vai desandar’”, recorda Ângela. Riani era, na época, presidente do PTB em Juiz de Fora, enquanto Adalberto Landau, tecelão e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Fiação e Tecelagem do município, ocupava a vice-presidência do partido. Muitas vezes isso implicava ser presidente em exercício, já que Riani exercia mandato de deputado.
“Riani disse isso e papai então falou: ‘mas o negócio está tão ruim?’”. Estava. “Quando chegaram ao Rio, o Jango [João Goulart, então presidente da República] e o [Leonel] Brizola falaram: ‘Olha, Landau e Riani, o negócio é o seguinte (papai estava junto com o Riani, o Brizola e o Jango): essa madrugada parece que a coisa vai acontecer. Aí vocês vêm com a gente, porque vamos pedir asilo político para poder preservar família, filho, aquela função toda. O papai falou: ‘Não, estou voltando pra Juiz de Fora, porque a Ritinha tá lá com a Ângela’. E aí o Riani falou: ‘eu tenho dez filhos’. Simples assim. ‘Eu tenho dez filhos e não vou deixar a Norma sozinha’. Naquela madrugada ocorreram os fatos que a gente já sabe quais foram”.
Ângela tinha 13 anos, faria 14 em 25 de outubro daquele ano. “O papai chegou lá em casa de madrugada, lembro que eu acordei assustada. O golpe foi dia 1° de abril. Não foi dia 31 de março, foi 1° de abril. Eles [os militares] deram o maior 1° de abril [Dia da Mentira] para o país.”
A casa nem tão vazia
Da madrugada em que o pai chegou do Rio de Janeiro, no sentido contrário das tropas que saíram de Juiz de Fora para a capital fluminense, Ângela se lembra do susto do despertar e da mãe arrumando coisas para o marido dentro de uma pasta. “Dali ele e o Riani foram pra casa do Riani, pegaram umas roupas e se esconderam na casa da sogra de uma meia irmã do meu pai. Ela já tinha falecido, a casa estava desocupada. Eles moravam numa vila ali na Rua Bernardo Mascarenhas. Número 1176, acho que é isso mesmo. Um pouco antes do Curtume Krambeck, tem essa vilazinha. É um beco onde ficava a casa da vó Ninha, que era a sogra da tia Nilda, meia irmã do meu pai. Por que meia irmã? Porque vovó teve dois casamentos. Primeiro ela casou com o seu Eduardo e depois, viúva, casou com o vô Jorge Landau, que era o meu avô. E essa meia irmã do meu pai acolheu meu pai e o Riani na casa da vó Ninha, que era nessa vila.”
O endereço que Ângela menciona se chama, no mapa, Vila Ana Domingues, a própria vó Ninha. “Minha prima Marisa, filha da tia Nilda, essa meia irmã do meu pai, tinha um ateliezinho de costura nesse beco, fazia algumas roupas e tal. Papai e Riani ficaram ali uns dias. A tia Nilda fazia comida e a Marisa embrulhava nas roupas e levava para eles na outra casa. Andava uns cinco ou seis passos, daqui até ali, com a comida e o café embrulhado nas roupas.”
Até que um dia o marido de outra prima, irmã de Marisa, descobriu que os sindicalistas estavam ali. Era o tal José Apolônio Teixeira. “A Marisa estava saindo da casa da tia Nilda com a comida coberta com umas roupas, ou café, não me lembro, acho que era garrafa de café. Caiu. Ela ficou nervosa quando viu Apolônio chegando, porque ele era do serviço de informação do Exército.”
Tanto Apolônio quanto Marisa já faleceram. “Pior que todos já estão falecidos. É a minha palavra, né? Por sorte a mamãe (Dona Rita Landau, de 97 anos) está aqui e pode confirmar pra você que não estou te contando nenhuma mentira.”
Ângela narra que o sargento percebeu, pela queda da garrafa de café, que Marisa tinha algo escondido debaixo dos panos. Literal e metaforicamente. “Na mesma hora ela se assustou, entrou lá pra dentro da casa da vó Ninha e falou: ‘Tio Bebeto, aconteceu isso, estou preocupada”. Então Landau decidiu que não dava para ficar mais ali, porque Apolônio iria entregá-los.
Não se passou muito tempo e um vizinho e amigo da família, policial conhecido como Bejo (que Dona Rita lembrou chamar-se Benjamin Hagler), apareceu à porta dos Landaus. “O Bejo bateu lá em casa, na mamãe, e falou assim: ‘Ritinha, você sabe onde o Landau está?’ A mamãe disse que não. Nessa hora você não confia em ninguém, né? Apesar de saber que ele era amigo do papai, a mamãe falou: ‘não, não sei onde ele está’. Ele falou: ‘se você souber ou tiver notícia, avisa a ele que essa madrugada eles vão entrar na casa da vó Ninha’”. Dona Rita pensou “ferrou”, mas insistiu que desconhecia o paradeiro do marido. O recado, porém, estava dado. “Sinal de que ele era amigo mesmo. Sou muito grata, porque eles poderiam ter matado o papai e o Riani aquela madrugada.”
Uma luz no fim do beco
Rita avisou Bebeto e ele pediu que ela entrasse em contato com um conhecido médico de Juiz de Fora, também amigo da família, cuja identidade Ângela prefere não revelar. A partir desse contato, ficou estabelecido que naquela noite, assim que escurecesse, um carro os apanharia.
“Nesse beco que te contei lá da Rua Bernardo, você desce até o final e tem uma portinha. Você atravessa a linha férrea e aí cai do outro lado, ali perto de onde hoje é o Forró da Marlene”. O motorista os encontrou e levou para a fazenda do médico num pequeno município vizinho. “O Riani nunca contou isso no livro dele, preservou… Por isso que te peço para preservar também. Ele [o médico] tem filho e neto conhecidos… O Riani não contou isso no livro dele, então…”
De fato, a versão de Ângela não consta no livro “Clodesmidt Riani: trajetória”, organizado por Hilda Rezende Paula e Nilo de Araújo Campos a partir de depoimentos do centenário líder sindical juiz-forano. “Riani meio que escondeu isso no livro dele, ele deu esse hiato no livro. Se você ler, vai ver que tem esse hiato aí”.
A publicação informa que Riani foi preso, depois de se apresentar voluntariamente, no dia 5 de abril. A data também está no relatório da Comissão Municipal da Verdade, onde se descreve que, acusado “de ser agitador e comunista”, Riani se entregou aos militares no 4° Regimento Militar de Juiz de Fora no dia 5 de abril”. No entanto, no mesmo relatório, dessa vez na lista de presos de Juiz de Fora em abril de 1964 — aquela em que se lê o nome de Adalberto Landau seguido da sigla S/D (sem data) —, consta que a prisão do presidente da CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria) e do diretório municipal do PTB teria sido no dia 12.
“O motorista veio e assim foi feito. Escureceu, papai e Riani juntaram tudo e desceram o beco bonitinho, atravessaram a linha do trem, o motorista estava lá e levou eles. Marisa, na mesma hora em que o papai saiu, foi lá, varreu toda a casa — porque o papai fumava muito —, limpou tudo, não deixou vestígio de ninguém ter estado lá. Deixou tudo brilhando, fechou a casa e saiu”, conta Ângela.
Por volta de meia-noite e cinco ou meia-noite e dez, a família ouviu o som de passos e botas batidas na rua. Estavam cercando a área. “Tio Quintino, cunhado do papai, contava, quando era vivo, que eles chegaram esmurrando a porta. Aí o tio ficou quieto. Quando eles esmurraram a segunda vez, ele falou: ‘hã?’. Tipo assim, ‘estou dormindo, não me enche o saco’, né? Dizia o tio Quintino que, quando abriu a porta, o cara já meteu uma metralhadora na cabeça dele e já foi entrando aos borbotões para dentro da casa. Invadiram tudo. A tia Nilda estava deitada fingindo que estava dormindo, colocaram a metralhadora na cabeça dela, um tumulto louco.”
Depois de vasculharem a casa de Nilda e Quintino, ordenaram que abrissem a casa da frente. “Eles sabiam, eles tinham informação de tudo. O Bejo, esse amigo do papai, tinha falado: ‘olha, foi uma pessoa da família que entregou que o Landau está nessa casa’. Aí a gente já sabia que era o Apolônio, porque não tinha outra pessoa.” No momento em que entraram, contudo, se depararam com a casa vazia e, graças a Marisa, limpa, sem rastro algum. “Quando viram que não tinha ninguém lá, foram embora. Mas, se o papai estivesse lá, ou o Riani, acho que eles seriam mortos naquela madrugada. Tinha uma semana, nem isso, o golpe. Era muito recente. E a gente tinha notícia todo dia de que eles estavam sumindo com um monte de amigo do papai.”
Os visitantes do general Mourão
A despeito de, após aquela noite de fuga, terem ficado aparentemente seguros na fazenda do médico amigo, Ângela diz que os sindicalistas procurados resolveram se entregar poucos dias depois. “Uma bela madrugada, estávamos lá em casa, para um carro na porta, desce papai de novo. Vindo da fazenda. As coisas começaram a se acalmar e eles acharam que podiam se entregar e que a coisa seria mais suave. Suave o cacete, né?”
Rita perguntou o que Bebeto fazia ali e ele comunicou a ela a decisão. “Preparou uma pastinha, esperou clarear o dia e se entregou. Paletó, camisa de manga comprida, tudo bonitinho, só faltou pôr terno e gravata. E foi para o QG [atual sede da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha], ali ao lado do Museu [Mariano Procópio].” Chegaram lá e procuraram o general Olímpio Mourão Filho, comandante das tropas que saíram de Juiz de Fora em 31 de março em direção ao Rio de Janeiro, com a intenção de dar o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart.
“Acho que eles pensaram que o meu pai e o Riani deviam ser do Serviço Secreto. Coitadinhos daqueles policiaizinhos lá, não sabiam quem eram e foram deixando eles entrarem e sentarem. Eles entraram, sentaram, ninguém pediu nome, nada. Diz o papai que achou estranho, porque ninguém perguntou como é que eles se chamavam, de onde eles vinham. Ele estava com uma pastinha estilo James Bond. Quando viram, já estavam na antessala do Mourão. Aí alguém lembrou de perguntar o nome para poder falar com o general. ‘Clodesmidt Riani e Adalberto Landau’. Diz ele que só escutou clic, clic, clic e aí tinha 30 metralhadoras apontadas para a cabeça deles.”
‘Não vou confessar o que não sou’
A partir de então começou outro tormento. Desde o golpe, Dona Rita já tinha proibido Ângela de ir ao colégio (ela estudava na escola Mariano Procópio), por medo de que a usassem para chegar a Landau. Mesmo com o passar do tempo, a menina seguiu trancada em casa.
“Papai orientou para que não deixasse eu sair de casa em hipótese alguma, para lugar nenhum, porque eles iam tentar me segurar para fazer o papai aparecer. Então a mamãe me trancou dentro de casa e eu fiquei ilhada. São uns períodos assim bem marcantes na vida da gente, porque a gente é muito jovem e ter, naquela época, uma compreensão disso tudo não é fácil. Mas a gente acaba digerindo com o tempo”, considera.
“Depois disso papai se entregou. E aí começou a tortura. Dentro do QG, a madrugada inteira, diz o papai que era uma loucura. Porque eles faziam interrogatórios a madrugada inteira, com aquela luz gritante no olho e eles gritando. Ele pedia: ‘estou com sede, traz uma água’. E o cara trazia um copo de água, botava na frente dele e, quando ele ia tomar, o cara pegava o copo de água e jogava na cara dele. Não teve pau de arara, mas a tortura mental, psicológica, é muito intensa. Diz que eles jogam uma luz muito forte em cima, e o papai era epilético. Ele teve uma crise num desses interrogatórios, acho que ficou muito nervoso. Colocaram ele no chão para dormir, não tinha nada para ele dormir. Aí ele deitou ali naquele chão frio. Queriam porque queriam que o papai confessasse que ele e o Riani eram comunistas. E e o papai falou: ‘mas se eu não sou comunista…’.”
Ângela repete a fala do pai, as mesmas palavras que talvez Adalberto Landau tenha repetido à exaustão: “‘Eu não sou comunista, eu sou pela reforma de base. O que eu quero? Eu quero a reforma agrária, eu quero reforma previdenciária… Mas eu não sou comunista. Não sou e nunca fui e não professo a doutrina. Não é a minha praia’. Mas eles queriam porque queriam. ‘Enquanto você não confessar a gente não para’. E aí eles continuavam, insistiam, torturavam, e isso ia virando a madrugada. Até que papai teve uma crise epilética. Acho que eles ficaram muito assustados, não sei, achando que ele podia morrer ou qualquer coisa.”
A tortura tinha prosseguido infrutífera, sem que Landau confessasse o inconfessável. E não inconfessável por ser um pecado, mas por não ser verdade. “Papai falou: ‘não vou confessar o que eu não sou, não vou falar mentira’. ‘Ah, mas o Riani já confessou que é comunista’. ‘Se ele confessou é problema dele, mas eu não vou confessar o que eu não sou e muito menos o que você quer que eu diga que ele é, e ele não é. Porque eu conheço, é meu amigo, é meu compadre.’ E aí eles chegaram à conclusão de que eles não abriam o bico mesmo. Iam abrir o bico em quê? Papai falou: ‘o que eu sou é apenas a favor das reformas de base. Isso eu quero. E é o que o Jango queria fazer e vocês não estão deixando; não deixaram. Mas eu sinto muito, não vou falar o que eu não sou.”
Para onde ele foi?
Ângela diz não ter noção de quantos dias se passaram, se três, quatro, cinco… “Um belo dia parou um camburão na porta lá de casa e desceu o papai com dois caras de metralhadora atrás dele. O que a mamãe achou? ‘Vai ser todo mundo executado aqui hoje’. Mamãe abriu o portão, vovó morava lá, vovó era cardiopata grave, se assustou muito, teve uma crise de angina na hora. Foi uma loucura. Papai desceu desse camburão e eles viraram para a mamãe e falaram: ‘ele veio se despedir da mãe, de você, da filha, porque nós estamos levando ele para Belo Horizonte’. E a mamãe: ‘mas pra onde?’. ‘A gente não sabe, a hora que a gente estiver chegando em Belo Horizonte a gente vai ficar sabendo para onde tem que levá-lo’. A essa altura o Riani já estava isolado do papai. E aí eu já não sei o que aconteceu com o Riani, ele que pode contar a história. Mas do meu pai eu posso contar. Mamãe ficou louca. Na mesma hora que papai saiu, a mamãe ligou para a tia Nilda, essa irmã do meu pai que deu cobertura para ele, e falou: ‘Nilda, nós vamos para Belo Horizonte’.”
Mesmo contratando um advogado, as mulheres ficaram preocupadas, porque, como destaca Ângela, “naquela época as instituições não tinham garantias de nada”. Sem qualquer informação, partiram para a capital mineira. “Chegaram em Belo Horizonte e onde é que está o papai? Não achava papai.” O jeito foi fazer um apelo a única instituição que ainda funcionava: a igreja. Neste caso, foi a Luterana, mas a máxima valia para outras denominações, como comprovaram o bispo católico Dom Paulo Evaristo Arns, o pastor presbiteriano James Wright e o rabino Henry Sobel no caso da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no dia 25 de outubro de 1975 (curiosamente, dia em que Ângela completou 25 anos).
“Meu pai foi criado na Igreja Luterana porque meu avô era alemão e minha avó italiana. O Pastor Bush foi o pastor que casou o papai e a mamãe em Juiz de Fora, em 31 de dezembro de 1949, para ser precisa. E aí a mamãe foi atrás do Pastor Bush, que tinha sido transferido para Belo Horizonte. Mamãe o procurou, com a Tia Nilda, com o advogado, e ele falou: ‘Olha, vou dar uns telefonemas…’. Mamãe expôs a situação: ‘Trouxeram Bebeto para cá. Aconteceu isso, isso e isso e a gente não tem notícia nenhuma e eu quero vê-lo. Quero saber onde ele está’”, relata Ângela.
“Nessa hora a igreja ainda tem muita força. É a única força que existe em qualquer momento que foge ao nosso padrão comum. E a Igreja Luterana tem muita respeitabilidade ainda no Brasil”, observa. “O Pastor Bush deu alguns telefonemas e em seguida falou com a mamãe: ‘Ritinha, o Bebeto tá preso no Dops [Departamento de Ordem Política e Social]. Nós vamos para lá agora’. Aí foram mamãe, Pastor Bush, o advogado e Tia Nilda para o Dops. Chegaram no Dops, cadê o Adalberto Landau? Procura daqui, procura dali… ‘Adalberto Landau esteve aqui, mas já tem algumas horas que ele foi transferido pra penitenciária de Neves [Penitenciária José Maria Alkmin]’. Aí o Pastor Bush: ‘Nós vamos para lá, Ritinha’. Rodaram mais não sei quantos quilômetros, chegaram na Penitenciária de Neves. Procura o Landau daqui, procura para lá, procura para cá, para não sei onde, não acharam o papai. ‘Ah, não, os presos políticos que chegaram de Juiz de Fora, que passaram pelo Dops, passaram por aqui e foram para a Penitenciária Magalhães Pinto’. Hoje nem sei que penitenciária tem esse nome. Mas mamãe correu daqui, correu dali até que localizaram papai nessa tal Penitenciária Magalhães Pinto que não sei nem onde fica.”
A Colônia Penal Magalhães Pinto fica localizada em Ribeirão das Neves, próximo a Belo Horizonte, e foi batizada com o nome do governador de Minas Gerais em 1964, um dos articuladores do golpe. Com a localização definitiva, Dona Rita conseguiu se encontrar com o marido. “O Pastor Bush pediu muito — não sei para quem, para qual general — para trazer o Landau para Juiz de Fora. Para que o que tivesse que resolver, se ele tivesse algum processo a cumprir, alguma medida cautelar ou preventiva, o que fosse, que fosse cumprida em Juiz de Fora. Mamãe ficou esses dias em Belo Horizonte e conseguiu. O pastor falou: ‘Olha, amanhã eles estão levando Landau para Juiz de Fora’. Aí trouxeram ele para o 10º BI [10° Batalhão de Infantaria Leve, no bairro Fábrica], até que o papai foi parar no RO.”
‘Pode ir embora para casa’
O RO era o 4° Regimento de Obuses, onde hoje é o 4° GAC L Mth (Grupo de Artilharia de Campanha Leve de Montanha), no bairro Barbosa Lage. “Deixaram o papai lá até o final do processo. Nisso já tinham transcorrido uns dois para três meses. Lá fizeram acareações com colegas que denunciaram. O Dr. Weber Pimenta, pai do Celso Pimenta [médico neurologista] — que é até colega de turma do João [Braile, médico ginecologista e marido de Ângela] —, presidiu o inquérito do papai. E aí foi acareação de cá, interrogatório de lá, mas não houve mais tortura. Ele não foi submetido a nenhum tipo de pressão, ele tinha direito a banho de sol, ele foi tratado como qualquer ser humano merece ser tratado. Com dignidade, com responsabilidade, com honestidade. E, quando chegou ao final, não comprovaram nada contra ele.”
Dona Rita e Ângela estavam em casa quando receberam um telefonema do RO. “A mamãe já ficou com o coração na mão, pensando que tinha acontecido algum problema, ou que ele tinha tido outra crise… Porque as crises eram muito esporádicas, mas podiam acontecer com ele sob muita pressão. Mas não. Era a soltura do papai. Com todas as honras e glórias. ‘Não comprovamos nada contra seu marido, ele é uma figura maravilhosa, meus parabéns, pode ir embora para casa, ok.’ E foi assim que meu pai foi solto. Aí você fala: ‘Pombas?!’… Mas a quem você recorre nessa hora? Se fossem os tempos atuais, você entraria na Justiça para ser ressarcida. Não é nem uma questão de dinheiro, mas é para que o Estado reconheça que fez uma lenha com você e que te peça desculpas pelo menos. Mas nem isso aconteceu.”
Mas ele não era comunista?
Depois de solto, Adalberto Landau se afastou das atividades políticas. “Até porque ele não tinha como nem para onde retornar”, diz Ângela. A não ser que se conte como atividade política ter conseguido, em conversas à boca pequena na vizinhança, minar a campanha em favor de Mello Reis e favorecer Itamar Franco na disputa pela Prefeitura de Juiz de Fora. Ou ter entrado no gabinete de Itamar para questionar o porquê de o prefeito ter se recusado a dar entrevista para a filha. Nunca, entretanto, deixou de visitar Riani na prisão, a não ser no período em que o compadre esteve cumprindo pena em Ilha Grande. “Acho que ele foi dos únicos amigos do Riani que foi visitá-lo. Um dos poucos. Não me lembro de nenhum outro que tenha sido assíduo como o papai foi. Ele não se desligou disso.”
Bebeto também não viu o fim do regime. Nem a primeira neta. “Eu agradeço que o papai tenha vivido um pouco mais, pelo menos até o meu casamento [quando ela deixou de ser Ângela da Cunha Landau para se tornar Ângela Landau Braile]. Quando eu voltei da lua de mel, daí um mês, dois meses, a gente descobriu que ele estava com problema na vista. Era câncer, ele tinha metástase cerebral e não descobriu a origem. Fiquei sabendo que estava grávida e dois dias depois fiquei sabendo que o papai tinha seis meses de vida. É puxado, né? A Bianca nasceu em 1978. Ele não chegou a conhecê-la.” Décadas depois, por ironia da vida, Bianca Landau Braile foi ser delegada regional em Ribeirão das Neves.
Em 1964, Adalberto Landau virou comunista sem nunca ter sido. Porque, em seu passaporte, tinha um visto para uma Tchecoslováquia que ele não chegou a conhecer. Porque era sindicalista. Porque era trabalhista. Porque sua casa em Juiz de Fora era frequentada por Jango e Brizola. Porque defendia reformas de base que até hoje não foram concluídas ou nem sequer começadas. Fosse vivo no Brasil de 2023, talvez Adalberto Landau, preso em Juiz de Fora em abril de 1964, fosse tachado de comunista de novo por gente que até outro dia estava na frente do QG onde ele se entregou.
“Mudou tão pouco, não é?”, lamenta Ângela. “Ainda brigamos pelos temas pelos quais meu pai brigava há 50, 60 anos atrás. E eu não vi acontecer. Infelizmente, eu não vi acontecer. Mas ainda tenho confiança de que as coisas vão melhorar. É por isso que torço.”