SinproSP: A escola não é uma ilha de civilidade num país caótico
(*) Sandra Caballero, professora de História e de Sociologia e diretora do SinproSP
Impossível para qualquer professor não se sentir pessoalmente atingido por essas notícias, cada vez mais frequentes, de violência extrema no ambiente escolar. Por mais que ela seja mais explícita nas escolas públicas, sabemos que os estabelecimentos particulares também vivem essa problemática. Como não se colocar no lugar dos nossos colegas? Como não sucumbir ao medo? Como, simplesmente, seguir em frente?
Obviamente que não há respostas ou soluções fáceis para um problema tão complexo e multifatorial. Nesse momento, todos buscam uma solução mágica. Entendo, perfeitamente, o clamor de alguns colegas por mais segurança nas escolas. Mas transformar uma instituição que tem que ser acolhedora numa prisão não resolverá a questão.
O que estamos vendo é apenas a ponta do iceberg de uma sociedade histórica e profundamente violenta, que nunca foi capaz de encarar de frente o seu passado e resolver as questões estruturais que nos trouxeram até aqui.
O país se funda a partir de um tripé representado pelo genocídio indígena, escravidão e a nossa tão decantada miscigenação,fruto da violência sexual contra mulheres indígenas e africanas.
Os momentos de rupturas institucionais, onde um novo modelo civilizacional poderia ter sido adotado, não passaram de arranjos feitos pela elite para manter o seu poder político e econômico. A independência feita pelo príncipe português. O fim da escravidão sem a adoção de políticas compensatórias, e até hoje a discussão do tímidosistema de cotas raciais é marcada por polêmicas embaladas em preconceitos raciais e de classe. A República foi um golpe militar tendo um monarquista à frente e marca uma característica trágica de nossa história, a intervenção militar em assuntos políticos que deveriam ser restritos a civis. A ditadura militar inaugura uma cultura de torturas pelas instituições de segurança, que se perpetua até hoje na violência policial contra as classe populares, onde as vítimas são quase todas pretas. A anistia, no final da ditadura civil-militar, não puniu e manteve na vida institucional do país aqueles que deveriam estar atrás das grades. Naturalizamos o horror. (Vale ler o artigo “Golpe de 1964, a anatomia de um crime histórico”, do professor Ailton Fernandes)
Mais de 523 anos após a chegada dos portugueses, continuamos sendo um país agroexportador, com uma mão de obra explorada ao limite. As denúncias de uso de trabalho análogo à escravidão se sucedem. Estamos entre as quinze maiores economias do mundo, mas a nossa concentração de renda é imoral. Um país rico em meio a miséria, 0,5% dos brasileiros concentram quase 45% do PIB nacional. Em meio a tragédia da Covid, o número de bilionários cresceu. Em 2020, foram 33 novos super ricos. Já no ano de 2021 havia 17,9 milhões de pessoas em extrema pobreza. Segundo a ONU, a cada 23 minutos um jovem negro morre de forma violenta em terras tupiniquins. Somos o 5° país do mundo que mais mata mulheres. O primeiro em assassinatos de transsexuais.
Junte-se a esse cenário específico, um mundo capitalista absolutamente individualista e consumista, onde o a cidadão foi substituído pelo consumidor. O ter é muito mais importante do que o ser. Estratégias cada vez mais agressivas de sucesso profissional, que se reduz ao tamanho da conta bancária, são eticamente aceitas. Hoje trabalhamos mais que um camponês da Idade Média. As famílias são levadas a acreditar que dar uma boa vida para os seus filhos está associada a bens materiais. Estamos cansados, deprimidos, estressados e frustrados, sem tempo para a família, amigos e lazer. O suicídio mata por ano, em todo o mundo, mais do que a violência urbana e guerras somadas. A nossa felicidade se resume às postagens nas redes sociais e a obtenção de curtidas.
Nos venderam a mentira de que a evolução tecnológica nos libertaria do trabalho, mas nos tornamos escravos e estamos conectados 24 horas por dia. Os nossos patrões se sentem no direito de nos acionar a qualquer hora e dia. Temerosos por perder nossos empregos, mergulhamos nessa roda viva, a ponto de a qualidade do nosso sono ser afetada. É cada vez mais comum pessoas que acordam no meio da noite para checar mensagens.
Na ânsia de ganhar dinheiro, não temos tempo para nossas crianças e adolescentes e, muitas vezes, esgotados e infelizes, substituímos o ato de educar, que gera antagonismos, com o de ceder a desejos cada vez mais insanos. Do tênis que custa mais de um salário-mínimo a férias na Disney que estouram o orçamento familiar, tentamos compensar a nossa ausência e criamos uma geração de pobres crianças ricas, imaturas e tristes, em desesperada busca por atenção.
Legitimamos a violência como forma de resolução de conflitos. Ela está no cinema, nas novelas, nos jogos eletrônicos, na premiação do Oscar, nos esportes, no trânsito, na assembleia de condomínio, nas disputas políticas. Estamos o tempo todo lutando pela sobrevivência numa selva de pedra em que o outro é o inimigo a ser exterminado, numa competição insana. A vida foi “gamificada”.
O advento das redes sociais proporcionou a explosão de grupos extremistas que usam o submundo da web para cooptar jovens que se sentem deslocados e abandonados, a geração “incel”. A expressão vem da junção das palavras “involuntarycelibates” e descreve homens jovens que se definem como “celibatários involuntários”. Culpam as mulheres e o feminismo, em particular, pela sua incapacidade de encontrar uma parceira. São presas fáceis para grupos de extrema direita que “caçam” esse perfil nas redes sociais, proporcionando a adolescentes problemáticos a sensação de pertencimento. Incentivam e ajudam a planejar ataques na versão lobo solitário. A criação do mito do justiceiro que está vingando a todos os que são excluídos pelo sistema.
Desde 2018, o Brasil se tornou o país com o maior crescimento da extrema direita no mundo. Nos três últimos anos os grupos neonazista cresceram 270%. O discurso do ódio se naturalizou e nossas instituições não têm mostrado capacidade de enfrentamento. As medidas são tímidas e os financiadores da produção massiva de notícias falsas, discurso de ódio e atos extremistas, raramente são punidos. Em 2018, tivemos a eleição de um presidente que tem um torturador como ídolo e venceu o pleito dizendo que iria metralhar seus adversários. O discurso do extermínio se populariza e todos os nosso preconceitos saem do armário, não há mais vergonha no ódio, ele virou símbolo de empoderamento.
Esse é um fenômeno mundial, mas que no Brasil, pelo histórico descrito, ganha contornos mais sombrios. Um país que tem como modelo os EUA, imita da festa de halloween ao massacre nas escolas.
É claro que diante da repetição de tragédias anunciadas queremos uma solução para ontem, a sensação é de luto. Impossível imaginar a dor de pais e mães que, ao deixarem seus filhos numa escola ou creche, acreditam que estão em um lugar seguro e, de forma dramática, veem os pequenos corpos saindo em caixões.
Não existe solução fácil, é necessário medidas de curto, médio e longo prazo. Mudanças estruturais são imprescindíveis. No entanto, a comunidade escolar tem um papel fundamental a cumprir, é preciso investir no contradiscurso do ódio, precisamos de uma educação que valorize o respeito às diferenças, a solução negociada de conflitos, o resgate da noção de direitos humanos. Caso contrário, continuaremos todos sendo vítimas e algozes em uma sociedade insana.
Fontes:
https://operamundi.uol.com.br/