“Precisamos romper com a flexibilização regulatória”
Frase proferida pelo professor Luiz Dourado sintetiza bem a Conferência Livre da Educação Privada realizada nesta terça-feira (28). Regulamentar o ensino privado é fundamental para assegurar qualidade
A coordenadora da Secretaria-Geral da Contee, Madalena Guasco Peixoto, traçou um histórico da luta da Contee pela regulamentação da educação privada, nesta terça-feira (28), durante a Conferência Livre organizada pelo grupo de trabalho temático (GTT) do Fórum Nacional de Educação (FNE) para tratar especificamente do ensino privado. “Quem criou esse termo e o transformou em bandeira foi a Contee. A Contee, durante os quase 35 anos que tem de existência, sempre lutou pela regulamentação da educação privada”, ressaltou Madalena.
A diretora da Contee dividiu a primeira mesa da Conferência Livre com a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda. O debate foi mediado pelo coordenador-geral da Confederação, Gilson Reis, e pelo 2° vice-presidente da Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Abruc), Paulo Muniz.
O debate teve como objetivo colher reflexões e propostas sobre a questão da regulamentação da educação privada e da regulamentação da educação a distância (EaD) no âmbito do setor privado, que serão levadas para a discussão na Conferência Nacional Extraordinária da Educação (Conae 2024).
O tema da Conae é “Plano Nacional de Educação 2024-2034: política de Estado para a garantia da educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável” e o eixo IV do documento referência aborda “Gestão democrática e educação de qualidade: regulamentação, monitoramento, avaliação, órgãos e mecanismos de controle e participação social nos processos e espaços de decisão”.
Princípios de Abidjan
A exposição foi iniciada por Andressa Pellanda, que esboçou um panorama dos tipos de privatização da educação, a partir da realidade da América Latina, desde o que pesquisadores chamam de “privatização latente”, no Uruguai, até “privatização incremental”, no Brasil, e, por fim, “privatização estrutural”, no Chile. O Brasil, no entanto, encontra-se, segundo ela, num processo de transição para a modalidade mais grave.
“Falar de regulação do setor privado é também falar sobre o que não deve ser feito, sobre os processos de privatização da educação”, considerou a coordenadora da Campanha. “A gente tem uma série de resultados negativos a partir da atuação desregulada do setor privado. Embora garantida na Constituição, essa atuação precisa ser regulada para garantir que a qualidade da oferta da educação seja respeitada.”
Como contribuição propositiva, Andressa mencionou os Princípios de Abidjan, lançados em 2019, que são usados internacionalmente para enfrentar processos de privatização e mercantilização da educação pública. Trata-se de princípios orientadores sobre as obrigações dos Estados nacionais, em matéria de direitos humanos, de fornecer educação pública e de regular a participação do setor privado na educação.
A coordenadora da Campanha destacou o Princípio Geral 5, segundo o qual os Estados “devem priorizar o financiamento e a oferta de educação pública gratuita e de qualidade, e podem apenas financiar instituições de ensino privadas qualificadas, seja direta ou indiretamente, inclusive por meio de deduções fiscais, concessões de terras, assistência e cooperação internacional ou outras formas de apoio indireto, se estas cumprirem os padrões e as normas de direitos humanos aplicáveis e observarem estritamente todos os requisitos substantivos, procedimentais e operacionais”.
“Isso está totalmente condizente com nossa Constituição. Os Princípios de Abidjan são uma referência para a gente ver o que falta na nossa legislação, de modo que não se viole o direito à educação [de qualidade] e não contribua para a mercantilização [do ensino]”, defendeu Andressa. “Aprofundar esses princípios com a realidade brasileira é uma forma de enfrentar a privatização desenfreada que temos tido no Brasil.”
Educação não é mercadoria
Depois da coordenadora da Campanha, foi a vez da coordenadora da Secretaria-Geral da Contee traçar o panorama histórico dessa batalha e os desafios atuais que se impõem. “A educação privada no Brasil tem caráter estrutural. Não é um fenômeno que ocorre num determinado momento histórico, mas está constituída ao longo de toda a história do Brasil”, declarou. Além disso, Madalena lembrou que o setor privado “disputa historicamente para impedir um sistema público de educação forte, universal e de qualidade”.
A começar pela própria conquista expressa no Artigo 209 da Constituição (“O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”), garantida a partir da atuação de forças que viriam a formar a Contee, a diretora da Confederação listou uma série de momentos e conjunturas em que a entidade enfrentou os interesses privatistas: a luta vitoriosa contra a inclusão da educação da Organização Mundial do Comércio (OMC); a tentativa, na discussão da Lei de Diretrizes e Bases, de assegurar gestão democrática nas instituições privadas, bem como as mesmas regras garantidoras de qualidade aplicadas à rede pública; a instituição do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e a participação na Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes); a atuação para a criação da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres); a participação ativa na Conferência Nacional da Educação Básica (Coneb) de 2008 e nas Conferências Nacionais de Educação de 2010 e de 2014; o protagonismo na criação do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) e na realização das Conferências Nacionais Populares de Educação (Conapes) de 2018 e 2022.
“Além de várias outras ações, institucionais ou não, que marcaram nossa posição de que educação não é mercadoria”, sintetizou. No entanto, é precisamente a mercantilização da educação, como observou Madalena, que coloca em risco não apenas a qualidade do ensino e as condições de trabalho no setor privado, mas que também ameaça a educação pública.
“Assistimos a um avanço das empresas privadas de capital aberto, que têm como foco apenas o lucro. Grandes conglomerados descomprometidos com a qualidade do ensino, com a formação cultural e com a formação intelectual. Quatro grandes grupos dominam 78% das matrículas e a plataforma e-MEC esconde deliberadamente os grupos aos quais as instituições de ensino estão ligadas”, indignou-se. Ela criticou ainda a ingerência desses grupos dentro do próprio MEC.
“A Secretaria de Regulação continua sem saber qual é o seu papel. Hoje, o fato de ela não estar se fortalecendo, como estão outras secretarias, é muito grave, sobretudo diante da baixa qualidade da educação superior. De nada adianta uma consulta pública sobre a EaD, por exemplo, se a Seres não cumprir seu papel”, enfatizou, fazendo referência ainda à absurda proposta de uma agência reguladora do ensino superior, contra a qual a Contee já se posicionou publicamente.
Além disso, segundo Madalena, “quem está sendo ouvido são aqueles que têm uma concepção mercantil de educação, e não as entidades que lutam, como a Contee, pela qualidade da educação como direito.”
Para enfrentar esse cenário, ela defendeu medidas que incluem: fortalecer a Seres e exigir que a pasta apresente um plano de regulação; retomar a proposta de criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (Insaes); combater a gestão privada a educação pública; incluir o setor privado no projeto que cri o Sistema Nacional de Educação (SNE); lutar pela recomposição da Conaes; impedir a desregulamentação da profissão de professor.
Regulamentação da EaD
A segunda mesa da Conferência Livre pôs em discussão a regulamentação da EaD na educação privada. A coordenação do debate ficou a cargo do 1° vice-presidente da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), Arnaldo Freire. Os palestrantes foram Luiz Dourado, da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), e Luciano Sathler, da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed).
Dourado se debruçou, principalmente, sobre o Decreto 9057/2017, que regulamenta — ou melhor, desregulamenta — a educação a distância. “O avanço do processo de financeirização impacta sobremaneira a educação superior privada no Brasil”, salientou, lembrando que ela não é hegemônica, mas formada por uma gama de instituições bem distintas, embora a fusão de instituições tenha levado à criação dos conglomerados educacionais
Dourado acrescentou que “o debate sobre EaD não é novo no Brasil”, mas que “é sobretudo a partir dos anos 1990 que vamos ter uma perspectiva de centrarmos esforços para regulamentá-la, de acordo com o Artigo 80 da LDB”. Conforme o professor, porém, o Decreto 9057 “abriu as comportas”, tornando-se a versão educacional de “deixar a boiada passar”, com um processo nocivo de flexibilização das exigências. E é essa flexibilização regulatória que precisa ser enfrentada, combatida e revogada.
Por sua vez, Luciano Sathler partiu do princípio que a “educação a distância é um dos principais eixos de democratização do ensino superior, mas propôs ao FNE pensar a EaD à luz do Sinaes. “Hoje qualquer legislação capaz de impedir a criação de novos polos beneficia apenas os grandes grupos, porque os grandes grupos já estão com milhares de polos instalados pelo país.”
Sathler também apresentou alguns dados, entre os quais chamou a atenção a relação entre número de estudantes e de professores. “Quanto mais conteudista é um curso, quanto menos o aluno interage com um professor de verdade, quanto mais estático é o material didático, pior é o curso.” O tema instigou um amplo debate, marcado por algumas controvérsias e discordâncias, mas também por outras concordâncias.
De modo geral, pareceu consenso que, nas palavras de Dourado, “o cenário é complexo” e que “precisamos romper com a flexibilização regulatória e ter uma política de Estado para garantir qualidade, tanto no ensino presencial quanto a distância”.
Segundo o coordenador-geral da Contee, Gilson Reis, o trabalho do GTT de regulamentação da educação privada, dentro do FNE, deve ser prorrogado por mais alguns meses a fim de apresentar um relatório mais consistente e mais robusto sobre o tema. A proposta de continuidade será apresentada na reunião presencial do Fórum, na primeira semana de dezembro.
Táscia Souza