Agenda 2024: A arte da resistência
O ano letivo começa na próxima segunda-feira (5) em grande parte do país. E, para acompanhar trabalhadores e trabalhadoras da educação na organização das tarefas cotidianas, bem como na mobilização da própria lua, mais uma vez a Contee lançou uma agenda anual com datas importantes, calendários mensais, espaço para anotação e bastante informação que pode ser aproveitada, inclusive, na sala de aula.
Em 2024, o tema da agenda da Contee são os 60 anos do golpe civil-militar no Brasil, mas pelo viés da resistência e da batalha pela democracia no campo das artes e da cultura.
Leia abaixo o texto de introdução da Agenda 2024, escrito pelo coordenador-geral da Contee, Gilson Reis:
Façamos a hora, não esperemos acontecer!
Era 29 de setembro de 1968 quando o já famoso cantor e compositor Geraldo Vandré entrou verdadeiramente para a história do Brasil por perder o Festival Internacional da Canção. Ao longo daquela competição, havia ficado mais do que evidente que sua música “Para não dizer que não falei das flores”, popularmente conhecida como “Caminhando” — a primeira palavra de seu primeiro verso —, era a favorita para vencer. E de fato ela quase venceu, indo para a final com “Sabiá”, releitura da Canção do Exílio de Gonçalves Dias, com letra de Chico Buarque e melodia de Tom Jobim. Conta-se, no entanto, que, pouco antes da conclusão final do júri, militares ligados ao policiamento político intervieram na discussão e determinaram que Geraldo Vandré não poderia ser campeão do festival com aquela música subversiva. Sob vaias que ecoaram pelo Maracanãzinho, ganhou “Sabiá”.
A resposta de Vandré foi caminhar até o palco, sentar-se no banco, ajeitar o microfone e botar o violão no colo. “Olha, sabe o que eu acho? Eu acho uma coisa só a mais: Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Holanda merecem o nosso respeito!”, discursou. O público demorou a se acalmar, mas o fez quando o artista paraibano começou a cantarolar seus versos. Imediatamente, o coro o acompanhou.
A canção de Geraldo Vandré havia se tornado o hino de resistência da juventude contra a ditadura militar-empresarial instaurada quatro anos antes, depois de um golpe que, em 1° de abril de 1964, derrubou o presidente João Goulart. Ironicamente, porém, como num teatro de absurdo, essa mesma música ecoou nas portas dos quartéis entre o fim de 2022 e início de 2023, entoada por aqueles que, vestidos de verde e amarelo, pediam outro golpe contra a democracia brasileira. E que, em 8 de janeiro de 2024, quase conseguiram.
A mudança de paradigma, ou a falha na interpretação da letra, ou o total apagamento da simbologia da composição, ou mesmo a mudança de posição política do próprio cantor ao longo dos últimos anos se explicam pela deturpação de alguns de seus últimos versos: “A certeza na frente/ A história na mão”. A história não ficou na mão. O processo de redemocratização do Brasil, de 1979, com a Lei da Anistia (ampla, geral, irrestrita e, portanto, válida também para golpistas e torturadores), a 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves/José Sarney para a Presidência da República, foi feito a partir do esquecimento. Entretanto, tomando emprestado um conceito da psicanálise, tudo aquilo que é recalcado, que é expulso da consciência (nesse caso, a consciência coletiva), tende constantemente a reaparecer de maneira distorcida ou deformada: com cara de Michel Temer, com a cara de Jair Bolsonaro, com as caras contorcidas de ódio dos que depredaram e saquearam os palácios-sede dos três poderes no ano passado.
“Para não dizer que não falei das flores” foi alvo da polícia política por fazer referência direta aos militares: “Há soldados armados/ Amados ou não/ Quase todos perdidos/ De armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam/ Uma antiga lição/ De morrer pela pátria/ E viver sem razão”. Naquele mesmo 1968, porém, Geraldo Vandré gravara outra música, “Aroeira”, talvez ainda mais contundente, lançando luz ao lado empresarial daquela ditadura e denunciando a opressão econômica: “Noite e dia vêm de longe/ Branco e preto a trabalhar/ E o dono senhor de tudo/ Sentado, mandando dar/ E a gente fazendo conta/ Pro dia que vai chegar ”. O dia que chegaria era o da reação: “É a volta do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar”.
Para re-agir, é preciso ter consciência de que a tarefa da memória é permanente. No ano passado, nossa agenda se propôs a defender a democracia e logo no oitavo dia do ano essa pauta se mostrou mais premente do que nunca. Neste ano, com o marco dos 60 anos do golpe de 1964, trazemos com esta nova agenda, para nos acompanhar em nossa luta diária e nossas tarefas cotidianas, o lembrete da resistência. Recordar o lá e então para agir, cipó de aroeira simbolicamente nas mãos, aqui e agora. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.
Gilson Reis
Coordenador-geral da Contee