Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa: Onde termina a fé e começa o poder?

Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, que chegou ao catálogo da Netflix em julho de 2025, é um mergulho sensível e incisivo na interseção entre fé, política e o enfraquecimento democrático no Brasil contemporâneo. A diretora articula o crescimento do movimento evangélico à consolidação do bolsonarismo, traçando uma narrativa que vai da ascensão da bancada evangélica aos atos golpistas de 08 de janeiro. Ao utilizar o imaginário do Apocalipse bíblico como metáfora, O filme retrata um país em colapso, ou mais precisamente em uma preocupante rota de regressão democrática, onde religião e poder se entrelaçam, moldando discursos, alianças e destinos coletivos.

A obra também lança luz sobre os bastidores do poder, acompanhando figuras centrais como o presidente Lula, o ex-presidente Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia. Petra mostra como interpretações apocalípticas são mobilizadas por lideranças religiosas para justificar decisões e influenciar políticas públicas, revelando uma engrenagem ideológica que sustenta o avanço do conservadorismo e do autoritarismo. Mais do que registrar os efeitos dessa aliança, o filme alerta para os riscos do fundamentalismo religioso na política e propõe uma reflexão urgente sobre seus impactos na democracia brasileira.

Ao optar por uma abordagem direta, Petra entrevista líderes religiosos e figuras políticas, compondo um mosaico revelador sobre o avanço de um projeto de poder ancorado na fé. Imagens simbólicas, atmosferas carregadas e recursos visuais reforçam o clima de urgência que permeia toda a narrativa.

Embora trate o tema com certa superficialidade em alguns momentos, o documentário permite vislumbrar a ascensão evangélica no país como resposta a um vácuo deixado pelo Estado. Em meio à desigualdade, insegurança, desemprego e desesperança, muitas igrejas oferecem não apenas doutrina, mas também acolhimento, redes de apoio e senso de pertencimento. Onde faltam políticas públicas eficazes de saúde, educação, segurança e cultura, surgem, em muitos contextos, as igrejas, e, em outros, o tráfico, como alternativas concretas de sociabilidade e sobrevivência.

Embora esse não seja o foco central do filme, há uma lacuna perceptível na ausência de um olhar mais aprofundado sobre a dimensão social das igrejas evangélicas. Lula aborda essa questão em um dos trechos mais reveladores do documentário, ao relembrar uma experiência dos tempos em que era dirigente sindical:

Eu conto sempre uma história, desde o tempo em que eu era dirigente sindical: um trabalhador, ele está desempregado. Ele vai ao sindicato e o sindicato fica dizendo: tem que se organizar dentro da fabrica, quando a gente estiver organizado a gente vai ter que fazer greve, tem que lutar, tem que protestar, porque o capitalismo não sei das quantas. ‘Eu vim aqui só porque eu perdi o emprego, aí querem que eu faça uma revolução’. Na Igreja Católica: ‘É, meu filho, a vida é assim mesmo. O céu é dos pobres…’. Aí o cara fala: ‘Porra, eu vim aqui pra dizer que estou desempregado e o cara…’. Aí o cara chega na teologia da prosperidade e tem duas palavras: o problema é o diabo e a solução é Jesus. É muito simples: você está desempregado porque o diabo entrou na sua vida e a saída é Jesus… Aí o cara sai de lá confortado: ‘Porra, alguém me disse que eu tenho chance’.
(LULA, 2025, no documentário Apocalipse nos Trópicos)

Esse relato mostra com clareza como a mensagem direta, emocional e personalizada das igrejas evangélicas, especialmente das vertentes neopentecostais, preenche um espaço afetivo e simbólico que nem os partidos de esquerda, os sindicatos e nem a Igreja Católica conseguiram ocupar plenamente.

Petra também revela como a estrutura do campo evangélico brasileiro foi moldada por influências geopolíticas, especialmente dos Estados Unidos, destacando o papel estratégico dos missionários evangélicos norte-americanos que, sob o pretexto de promover aulas de inglês, disseminaram valores religiosos alinhados ao anticomunismo, operando uma silenciosa penetração cultural e política. Essa influência foi decisiva para consolidar um conservadorismo que, décadas mais tarde, ocuparia posições centrais no Estado brasileiro.

Apocalipse nos Trópicos é uma obra relevante, que contribui para compreender como a fé pode funcionar tanto como ferramenta de acolhimento quanto de dominação. Seu maior mérito está em iluminar as zonas cinzentas entre religião e política, entre o sagrado e o autoritário. Em um tempo em que a democracia se fragiliza diante da intolerância e do fanatismo, Petra nos confronta com uma pergunta inquietante: quando a fé ocupa o lugar do Estado, o que resta da democracia?

Por Antônia Rangel

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