Frei Betto: ‘As políticas públicas só se tornam públicas quando apropriadas pelo povo’
Escritor palestrou na abertura do Seminário Internacional Democracia, Território e Participação Social, em Brasília
O primeiro dia do Seminário Internacional “Democracia, Território e Participação Social”, na Universidade de Brasília (UnB), deu lugar ao debate sobre a importância da educação popular na elaboração e consolidação de políticas públicas fundamentais para garantir o desenvolvimento das populações historicamente excluídas. A atividade ocorre nesta quarta (29) e quinta-feira (30), no auditório da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), localizado no Campus Universitário Darcy Ribeiro.
Na fala de abertura, o secretário nacional Participação Social da Presidência da República, Renato Simões, chamou a atenção para a penetração do pensamento da extrema direita nos territórios Brasil afora, sobretudo a partir de 2016.
“A caixa de Pandora que o golpe abriu, se enraizou num movimento de extrema direita que tem uma dimensão de massa no Brasil, que é uma ameaça permanente à democracia. E por isso a disputa do território é essencial”, destacou o secretário.
“É evidente que a eleição do presidente Lula criou condições institucionais importantes para que a democracia e os valores da democracia sejam retomados no Brasil. Mas isso não é suficiente”, atestou Simões. “Por isso é que o tema dessa pesquisa e desse seminário é fundamentalmente discutir como nós precisamos estabelecer novas relações políticas e sociais com milhões de brasileiros e brasileiras que acessam as políticas públicas, vivem, trabalham e constroem as suas identidades nos seus territórios e que ali devem se tornar sujeitos de participação social”, completou.
O primeiro dia de programação contou ainda com a aula magna do teólogo e escritor Frei Betto, sobre os desafios da territorialização de políticas públicas para o fortalecimento da democracia.
“Mais do que metodologia pedagógica, a educação popular é uma forma de ação política que busca democratizar o conhecimento e empoderar sujeitos historicamente marginalizados para que se tornem protagonistas da transformação social. Nascida no bojo das lutas por alfabetização e cidadania e tendo Paulo Freire seu maior expoente, a educação popular propõe uma pedagogia dialógica baseada em interlocução horizontal entre educador e educando e voltada para a leitura crítica da realidade”, propôs.
“As políticas públicas só se tornam públicas quando apropriadas pelo povo. E a educação popular é o caminho dessa apropriação”, agregou o teólogo.
“Essa perspectiva tem implicações diretas na implementação de políticas públicas. Afinal, nenhuma política, seja de saúde, educação, moradia, meio ambiente, cultura, pode ser eficaz se for imposta de cima para baixo, sem o envolvimento ativo das comunidades a que se destina”, completou, apontando à necessidade de revisar as experiências concretas.
“Experiências de educação popular, como as escolas de formação cidadã, grupos de base das pastorais sociais ou oficinas promovidas por movimentos, ONGs, universidades, tem demonstrado que quando o povo participa de forma atuante e crítica, as políticas ganham legitimidade e eficiência.”
Por outro lado, o escritor criticou as decisões “tomadas em gabinetes” que, segundo ele, “ignoram a complexidade das realidades locais”. “Governos e gestores preferem muitas vezes políticas de resultados rápidos com foco em indicadores quantitativos em detrimento de processos formativos lentos e qualitativos. Além disso, as dinâmicas políticas locais e os ciclos eleitorais curtos dificultam a consolidação de programas de formação cidadã a longo prazo”, afirmou Frei Betto.
“A democracia não se sustenta só pelo voto”, seguiu, “mas pelo exercício cotidiano da cidadania. E é a educação popular que permite ao cidadão compreender o sentido das políticas públicas e se sentir integrado a elas. É, portanto, condição da democracia participativa, não simples complemento”, afirmou, recorrendo ao pensamento do patrono da educação no Brasil, Paulo Freire, ao defender a apropriação coletiva do conhecimento.
“Paulo Freire afirmava que ninguém liberta ninguém. Ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão. Essa frase resume a função da educação popular como mediadora entre o saber técnico e o saber popular”, argumentou.
“Em última instância”, seguiu, “apostar na educação popular é apostar na capacidade do povo de pensar e decidir o próprio destino. É reconhecer que sem diálogo não há democracia, sem consciência não há liberdade. E sem educação popular, as políticas públicas correm o risco de se tornarem apenas políticas de papel de meros efeitos eleitoreiros”, finalizou.
A pesquisa
Durante o seminário, os pesquisadores apresentaram os resultados da investigação científica denominada “Políticas Públicas em Economia Popular, Trabalho Sócio Comunitário e Educação Popular na América Latina” que mapeou e analisou as iniciativas com o “propósito de fortalecer a capacidade do governo brasileiro em formular e implementar políticas públicas de trabalho e renda e educação popular” no Brasil.
A pesquisa foi iniciada em 2024, a partir de um acordo de cooperação entre os Ministério do Trabalho (MTE), Saúde (MS), Desenvolvimento Social (MDS) e a Secretaria-geral da Presidência da República (SG), em parceria com a Escola Nacional Paulo Freire e à Fundação Rosa de Luxemburgo.
Thays Carvalho, uma das coordenadoras da pesquisa, explica que o trabalho focou em sistematizar políticas públicas, com presença territorial, que articulavam educação popular, trabalho sociocomunitário e participação social nos países investigados, cumprindo uma diretriz do atual governo brasileiro.
“Nosso objetivo com a investigação era contribuir para o aprimoramento das políticas públicas de participação social no Brasil, cumprindo um desígnio, uma diretriz do nosso presidente Lula, reafirmado inclusive recentemente numa fala na Conferência em Nova York sobre democracia, em que ele enfatiza que o fortalecimento da democracia, da soberania, está associado à organização, ao fortalecimento da organização popular nos territórios”, afirma.
Carvalho relata que a seleção dos países investigados foi “desafiador”, posto que a América Latina “é um espaço muito rico de experiências”, por isso, a equipe precisou fazer um recorte dar seguimento à pesquisa.
“Primeiro, eram países que tinham as maiores economias do nosso continente e que têm uma formação social mais próxima da realidade brasileira, o que permite a gente fazer um pouco a relação entre essas realidades. Outra questão é que esses países têm uma taxa de informalidade no mundo do trabalho muito alta, porque essas políticas públicas atuam na organização, inclusive com arranjos produtivos nesses territórios desses setores da classe trabalhadora. E também países que enfrentaram ou têm enfrentado polarizações e o crescimento de grupos de extrema direita que têm ameaçado a democracia e a soberania desses países”, relata Carvalho.
A pesquisadora afirma que uma das formas de participação social e fortalecimento de políticas públicas é o reconhecimento de experiências produzidas a partir da realidade dos territórios e sua incorporação no orçamento público. O exemplo vem do próprio Brasil, onde o programa Cozinhas Solidárias foi institucionalizado, após o surgimento da iniciativa em diversas comunidades pelo país.
“É o caso da experiência do programa Cozinhas Solidárias, por exemplo, que é uma experiência gestada desde os territórios, das periferias, e que é um trabalho comunitário, de assistência a famílias em situação de vulnerabilidade, mas que pode hoje tem já um apoio, um aporte do Estado, que deve ser ampliado, mas reconhecendo a importância desse trabalho, para combater a fome e conquistar a soberania alimentar nos territórios”, comenta Carvalho.
A experiência mexicana e a disputa comunicacional
Jesús Ramirez, coordenador de assessores da Presidência da República do México, falou sobre as experiências de educação popular e participação na elaboração de políticas públicas, sobretudo a partir dos governos populares de Manuel López Obrador e da atual presidente do país, Claudia Sheinbaum.
“Nós aprendemos da experiência do nosso país, da experiência da luta popular, que a educação é um processo que se aprende e que se reconhece. E eu sei que [Paulo] Freire não vai achar ruim por dizer isso, mas eu acho que a educação popular se aprende na luta e na construção da cidadania, na construção da consciência para a participação, a consciência dos direitos e da ideia de nação inclusivo”, afirmou, destacando ainda a importância da recuperação da memória histórica.
“Nós, no processo mexicano, reivindicamos a memória como um elemento central para a construção da educação popular. Não podemos nos educar se não sabemos as lutas passadas que nos antecederam e nos deram pátria”, completou.
Por outro lado, Ramírez destacou o papel da comunicação na disputa territorial. “Sem comunicação, não há projeto emancipatório”, afirmou o mexicano, citando uma passagem da história da independência do país.
“Não celebramos a consumação da independência, que terminou em algo de que nos envergonhamos: a tentativa fracassada de um império. Em vez disso, reafirmamos o chamado à luta, o chamado à organização, o chamado à libertação. E esse chamado, assim como começou com o exército popular liderado por Hidalgo, e mais tarde por Morelos, que carregava canhões para a defesa, também carregava, com o mesmo cuidado e importância, a imprensa, ou seja, a palavra impressa, a palavra escrita que levava a voz da luta e da libertação a todos os cantos”, relatou.
“Hoje, nas sociedades da informação, na era das novas tecnologias, a comunicação não é apenas um elemento de governo, nem meramente um elemento de emancipação; é o próprio cerne da emancipação, porque é assim que a subjetividade é construída: a política, a subjetividade cultural e a forma como construímos nossa participação”, finalizou o assessor do governo mexicano.
A atividade de encerramento do seminário, na quarta-feira (30), deve contar com a presença de ministros do governo, como novo chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Guilherme Boulos; o ministros Alexandre Padilha (Saúde), Luiz Marinho (Trabalho e Emprego) e Wellington Dias (Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome).





