Nas escolas, violência de gênero segue presente e pouco discutida

Levantamento revela que violência baseada em gênero ainda não é rapidamente identificada por docentes. A escola tem papel fundamental na transformação desse cenário

Apesar de muitos avanços em termos de equidade de gênero e do aumento no número de políticas públicas de fomento ao respeito às mulheres, ainda há um longo caminho pela frente.

Esta semana, o noticiário nacional expôs uma série de atos violentos contra as mulheres, desde tentativas até realizações concretas de feminicídios (assassinato de mulheres motivado especificamente por questões de gênero).

Na sexta-feira, 28 de novembro, duas servidoras do Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) Celso Suckow da Fonseca, no Rio de Janeiro (RJ), foram mortas a tiros por um colega de trabalho que, em sequência, tirou a própria vida.

Na manhã do dia seguinte, uma mulher foi atropelada pelo ex-namorado em São Paulo (SP). Com o freio de mão puxado, ele a arrastou pela Marginal Tietê, via de grande movimentação da capital, por mais de um quilômetro. Além de sofrer a amputação de ambas as pernas, a jovem de 31 anos segue internada em estado grave.

Também no sábado, uma mulher de 40 anos,e seus quatro filhos (de 7, 4, 3 e 1 ano) morreram queimados dentro de casa após o marido, e pai das crianças, atear fogo no local. O incêndio aconteceu no Recife (PE) e atingiu 20 das quase 30 casas vizinhas. As testemunhas dizem que. Isabela sofria violência doméstica.

Esses são apenas alguns dos casos que chegam à imprensa, enquanto grande parte da violência contra mulheres continua velada no Brasil e no mundo. A OMS (Organização Mundial da Saúde) revelou recentemente que quase uma em cada 3 mulheres — o que corresponde a cerca de 840 milhões em todo o mundo — já sofreu violência sexual ou física cometida por parceiro íntimo ou por outra pessoa ao longo da vida, um índice que praticamente não mudou desde o ano 2000.

Só nos últimos 12 meses, 316 milhões de mulheres, ou 11% das que têm 15 anos ou mais, foram vítimas de violência física ou sexual praticada por um parceiro. O avanço no enfrentamento desse tipo de violência tem sido extremamente lento: a redução média anual foi de apenas 0,2% nas últimas duas décadas.

“A violência contra mulheres é uma das injustiças mais antigas e disseminadas da humanidade e, ainda assim, uma das menos combatidas”, avaliou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Em um cenário como esse, a educação tem uma missão importante a cumprir: educar para o combate à violência de gênero. Mas como as escolas brasileiras lidam com o assunto?

A recente pesquisa “Livres para sonhar? Percepções da comunidade escolar sobre violência contra meninas”, desenvolvida pelo Instituto Serenas, organização sem fins lucrativos que atua para prevenir as violências baseadas no gênero no Brasil, trouxe dados que corroboram com essa necessidade.

O levantamento mostrou que, no último semestre, 42% dos professores relataram ter testemunhado situações em que meninos tocaram ou acariciaram o corpo de meninas de forma desrespeitosa ou sem consentimento. Os que presenciaram alunos sensualizando meninas por conta da roupa ou comportamento delas representaram 23% dos respondentes.

Contudo, esse comportamento inadequado não vem apenas dos estudantes. O estudo apontou que mais da metade dos docentes ouvidos afirmaram já ter presenciado colegas fazendo comentários machistas e constrangedores a respeito do corpo das alunas e 15% deles relataram ter conhecimento sobre situações de assédio sexual de docentes contra alunas no último semestre.

“A pesquisa Livres para Sonhar mostra que a escola reproduz aquilo que está na nossa sociedade. O machismo, o racismo, LGBTfobia. Ela deixa visível para gente que os casos de feminicídio que a gente vê no jornal todos os dias e que nos últimos dias tem se mostrado ainda piores, vão continuar acontecendo enquanto o tema de violência contra meninas e mulheres não for tratado dentro de sala de aula”, afirma Amanda Sadalla, diretora da Serenas.

Um olhar para os meninos

O levantamento também deixou clara a necessidade de educar os meninos para uma nova postura, visto que o índice de reprodução de comentários e posturas machistas segue alto: 7 em cada 10 professores afirmaram ver meninos sensualizando meninas na escola.

Amanda pontua que a mudança de postura é essencial para uma virada de chave na mentalidade dos meninos. Muitos repetem posicionamentos machistas, lgbtfóbicos e misóginos porque, caso ajam de forma contrária, podem ter sua masculinidade questionada.

“Enquanto a gente não trabalhar esse tema com os meninos e os homens, a gente também vai estar enxugando gelo. A pesquisa deixa claro que os meninos estão reproduzindo os padrões machistas de comportamento que são aprendidos e reproduzidos por eles. Padrões esses que, muitas vezes, eles nem desejam reproduzir, mas o fazem porque eles aprendem que é assim que eles têm que se comportar para ser homem na sociedade”, destaca.

Essa mudança, para ela, precisa vir rápido, já nos primeiros anos de vida. Assim, quando meninos se tornarem homens, as chances de que sejam violentos física ou psicologicamente contra as mulheres, diminui.

‘Enquanto a gente não trabalhar esse tema com os meninos e os homens, a gente também vai estar enxugando gelo’

Como estratégia, ela sugere trabalhar por meio de rodas de conversas, materiais didáticos, conversas sobre masculinidades, consentimento, relações saudáveis, saúde mental e relações em geral, por exemplo.

“Os meninos hoje aprendem sobre sobre relações e sexualidade na internet, muitas vezes em fóruns masculinistas que ensinam padrões de masculinidade extremamente violentos, racistas e LGBTfóbicos. Então, é na escola que a gente precisa ter oportunidade de ensinar padrões que sejam respeitosos, baseados no consentimento, que sejam antirracistas e que sejam baseados no respeito”, complementa.

Situações que demoram a ser identificadas

A pesquisa chama a atenção para uma situação importante: nem sempre as violências de gênero são rapidamente identificadas. Segundo o relatório, geralmente professoras do sexo feminino tendem a perceber mais rapidamente essas situações do que professores homens. Contudo, a maioria não faz menção a violências baseadas em gênero quando questionada sobre os conflitos mais comuns que ocorrem na escola.

Para os organizadores, esse fator indica que ela nem sempre é reconhecida como problema presente no cotidiano escolar. O dado também indica a importância e necessidade de formação docente neste segmento.

A pesquisa realizada pela Serenas mostrou que somente um terço dos respondentes relatou a participação em palestras ou seminários sobre o tema, apesar de terem interesse em receber mais informações (77%) e 99% deles acreditam que a escola deve contribuir para prevenir violências de gênero.

O que precisa ser feito?

“A violência de gênero vai ser vivenciada em primeiro lugar na escola, porque é o maior espaço de interação social dos jovens, por muitas até mais do que a própria família, do que a própria igreja. Se a gente não tiver na escola uma estrutura com uma escuta acolhedora e com uma equipe multidisciplinar trabalhando essa pauta, não vamos conseguir lidar com a complexidade da violência”, afirmou Karinny Lima de Oliveira, mestre em educação na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisadora do projeto “Maria da Penha vai à Escola” na cidade de Caruaru, em entrevista ao Porvir.

Nesta reportagem, o Porvir elencou diferentes estratégias e iniciativas para serem aplicadas em sala de aula, como o uso da Lei 13.431/2017, de Escuta Protegida, que pode servir de apoio a docentes e gestores sobre como se posicionar e denunciar situações de violência contra mulheres.

Outro ponto importante é trazer a reflexão sobre o tema em diferentes componentes curriculares, como destaca Veridiana Parahyba Campos, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo).

“É algo que a gente luta muito dentro da educação: a violência de gênero é um tema interdisciplinar, que atravessa todas as experiências da comunidade escolar. Você pode usar até na matemática, medindo, por exemplo, qual é o maior percentual de meninas formadas em um curso como engenharia naval e comparar isso com os dados dos meninos, entre outras situações que destaquem desigualdades entre os gêneros”, recomenda.

Apoio e formação

Realizado com apoio do Tribunal de Justiça de São Paulo, o curso gratuito “Como prevenir o assédio e a violência contra a mulher” reúne conteúdos sobre desigualdade de gênero, ciclo e tipos de violência, formas de assédio e estratégias de enfrentamento.

Resultado da parceria entre a organização Serenas e a Seduc-SP (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo), o programa Violência Contra a Mulher Não é Normal oferece uma formação gratuita pelo YouTube para estudantes e professores. A iniciativa reúne conteúdos sobre prevenção e sensibilização, disponíveis na playlist oficial.

Fonte
Provir

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