O financiamento das entidades sindicais é dever de todos os integrantes da categoria
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O historiador norte-americano Charles Austin Beard (1874-1948), em sua obra “Written History as an Act of Faith”(citada por Adam Schaff, em História e Verdade,1971:65), afirma que:
“(…) Expulsando-se do espírito, ostensivamente, pela porta principal a grande filosofia, os preconceitos tacanhos de classe e do meio entram então pela porta dos fundos, estendendo o seu domínio, semiconsciente talvez, ao pensamento do historiador”.
A Constituição da República Federativa do Brasil (CR) de 1988 – a Constituição que tem cheiro de amanhã e não de mofo, como a registrou, com propriedade, o grande estadista Ulisses Guimarães, saudoso presidente da Assembleia Nacional Constituinte -, que implantou o Estado Democrático de Direito no Brasil, varreu, em definitivo, para as profundezas do lixo da história, de onde nunca deveria haver saído, todo o arcabouço normativo autoritário, que, desde 1937, impedia a livre organização sindical, decretando o nascimento, a vida e a morte de todas as organizações sindicais.
Tomando emprestadas as palavras de Beard, a CR expulsou-o, ostensivamente, pela porta da frente, fazendo-o para o bem da sociedade e como passo seguro para a efetiva construção democrática.
No seu Art. 8º, a CR assevera, de forma mandatória: “É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: I- a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical; (…) IV- a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo de representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”.
Pois bem. Passada a justa e inesquecível euforia pela conquista democrática, em patamares jamais alcançados pela sociedade brasileira, os tacanhos preconceitos de classe, notadamente, quanto à livre organização sindical, voltaram, sorrateiramente, estrebuchando-se para impedi-la, só que com nova roupagem; agora, travestidos de falsa e hipócrita defesa da liberdade de associação; atacando-a em várias frentes, especialmente, no tocante ao livre exercício do direito de greve e do financiamento das entidades sindicais.
Os certeiros e cotidianos ataques à livre organização sindical têm como incentivadora considerável parcela dos doutrinadores jurídicos, no campo do Direito do Trabalho, e como algozes o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Justiça do Trabalho.
No que pertine ao financiamento das entidades sindicais, o MPT, de todas as unidades da Federação, vive na espreita dos acordos e convenções coletivas de trabalho, não para os proteger, mas, sim, para os fulminar, com os odiosos termos de ajuste de conduta (TAC), e com as ações civis públicas (ACPs), quando preveem desconto de taxa assistencial, ou negocial, ou coisa que o valha; há casos de entidades que ficam sem condições de realizar sequer o seu dia a dia administrativo, pelas condenações de devolução de tudo quanto receberam de não associados a este título.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST), fazendo coro com o MPT, baixou o nefasto Precedente Normativo (PN) que reputa como inconstitucional e inaceitável descontos deste jaez.
Estas medidas, adotadas pelo MPT e pela Justiça do Trabalho, que, por mais que neguem, expressam preconceito de classe, constituem-se em incentivo de primeira hora para que os trabalhadores evitem a sua associação nas entidades sindicais correspondentes, porquanto sindicalização virou sinônimo de punição, haja vista todos os integrantes da categoria, sindicalizados ou não, beneficiarem-se das conquistas por ela amealhadas em convenções coletivas; porém, somente os associados pagam por elas, financiando as suas entidades; quem não é sindicalizado usufrui, graciosamente, de todos os benefícios.
Pois é. A isto o MPT e a Justiça do Trabalho chamam de liberdade de associação; sobre esta conduta calha perfeitamente a ácida metáfora de La Rochefoucauld, segundo a qual a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.
Felizmente, nos anos mais recentes, escutam-se sinais – parafraseando Alceu Valença, em sua música Anunciação – de mudanças no entendimento sobre o financiamento das entidades sindicais.
No ano de 2014, graças ao compromisso e à sensibilidade sociais do presidente do TST, ministro Barros Levenhagem, esse Tribunal rediscutiu o PN 119, terminando a votação com 12 votos pelo seu cancelamento e 11 pela sua manutenção. Por uma questão regimental, que exige o voto da maioria absoluta dos ministros (14 do universo de 27) para se cancelar súmula, orientação jurisprudencial e precedentes normativos, acabou o contestado PN prevalecendo, mesmo contra a decisão da maioria.
O TRT da 2ª Região, que é exclusivo da cidade de São Paulo, por meio de sua Quarta Turma, no julgamento do Processo TRT/SP N. 0000241-66.2013.5.02.0024 (Acórdão. 20140240602. DOEletrônico 28/03/2014), aprovando voto da lavra do desembargador Sergio Winnik, abriu uma nova janela para que se dê entendimento, conforme a CR, a esta conturbada questão do financiamento das entidades sindicais.
O procurador do Trabalho Raimundo Simão de Melo – também da 2ª Região e já aposentado -, em recente artigo de opinião publicado pelo Portal Consultor Jurídico, com a sua conhecida sensibilidade social e com fiel observância dos objetivos e garantias constitucionais, comentando a mencionada decisão, dá suporte jurídico e de sensatez ao debate sobre tal tema, fazendo coro com os que entendem que o financiamento das entidades sindicais é dever inarredável de todos os integrantes da categoria, sob pena de se quebrar o princípio constitucional da isonomia e de se praticar colossal injustiça, como vem acontecendo nas duas últimas décadas, no seio da Justiça do Trabalho e do quase sempre arrogante e tirano MPT.
O realçado artigo, por sua lucidez e conteúdo social, merece ser lido, debatido e divulgado, por todos quantos, verdadeiramente, almejam o fortalecimento da organização sindical brasileira. Por isso, é transcrito, aqui, em seu inteiro teor:
“TRT-2 aceita taxa assistencial dos não sócios dos sindicatos
Na forma da lei (CLT, artigo 611), as conquistas obtidas nas negociações coletivas e nos Dissídios Coletivos de trabalho beneficiam todos, sócios e não sócios dos Sindicatos. Esse é o modelo brasileiro atual (até 1967, na forma do artigo 612 da CLT, os benefícios conquistados aplicavam-se somente aos associados dos Sindicatos, passando a ter efeito geral somente com o DL 229/1967), questão que grande parte dos operadores do Direito do Trabalho desconhece.
Se assim o é, não é lógico nem razoável que somente os sócios dos sindicatos arquem com o custeio da entidade sindical, para fazer face aos custos das campanhas salariais/negociações coletivas, Dissídios Coletivos e demais despesas que são necessárias para se chegar a um resultado favorável aos trabalhadores (às vezes a greve).
O entendimento consubstanciado no Precedente Normativo 119 do Tribunal Superior do Trabalho, que tem embasado a jurisprudência trabalhista, ao contrário do esperado, está servindo para enfraquecer os sindicatos sérios e atuantes e provocar desequilíbrio de forças entre capital e trabalho. Está servindo para diminuir cada vez mais o número de associados dos sindicatos, porque ninguém quer mais ser sócio para bancar quem não o é, porque não faz diferença ser sócio ou não, uma vez que tudo o que o sindicato conquista se aplica a todos!
Esse entendimento é equivocado e representa enfraquecimento dos sindicatos sérios e atuantes, ao desrespeitar as decisões tomadas em assembleias soberanas dos trabalhadores, nas quais são aprovadas as reivindicações da categoria, as conquistas negociadas e a forma de custeio dos sindicatos. O Estado, em vez de ajudar a fortalecer os sindicatos sérios, tem interferido para dizer que os não sócios, que são beneficiados igualmente aos sócios, não devem ser solidários no custeio das atividades sindicais.
Constitucionalmente é direito de todos, inclusive dos trabalhadores, reunirem-se pacificamente em assembleia geral (CF, artigos 5º, XVI), a fim de criarem normas coletivas, as quais são reconhecidas como direito fundamental dos trabalhadores (CF, artigo 7º, XXVI), sendo direito das associações receber contribuições daqueles que participam das categorias econômicas e profissionais (CF, artigo 7º, IV; CLT, artigo 513, letra e). Assim, com o devido respeito, a orientação jurisprudencial do C. TST, que não reconhece valor às decisões dos trabalhadores, autorizando o desconto de valores para o custeio sindical, representa intervenção indevida (CF, artigo 8º, I) no âmbito da atividade sindical, inibindo o conteúdo das normas coletivas, e, por isso, constitui atentado à liberdade e autonomia sindicais.
Nesta linha de ponderação perfilhou a 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, com a seguinte e recente decisão:
EMENTA: Contribuição Assistencial. Validade. A contribuição assistencial é instituto que não contém eiva de inconstitucionalidade ou ilegalidade e o foro competente para sua cobrança é a Justiça Especializada. E, por se tratar de cláusula contratual, não se cogita de obstáculo para o exercício do direito a ausência de disposição legal sobre a matéria. Tendo em vista que os benefícios da decisão normativa ou do acordo coletivo beneficiam todos os integrantes da categoria profissional, não se configura qualquer hostilidade ao princípio da legalidade ou da livre associação (grifados). O óbice à cobrança não consiste na condição de associado ou não, uma vez que o inciso IV do artigo 8º da Constituição Federal abrange a categoria profissional, tampouco na falta de colheita de autorização, mas sim na oposição expressa do trabalhador para os descontos (PROC. TRT/SP Nº 0000241-66.2013.5.02.0024; Ac. 20140240602. DOEletrônico 28/03/2014; Rel. Des. Sergio Winnik; 4ª Turma).
Na fundamentação desta decisão constou que:
“Como é fácil perceber, a questão é enfrentada exclusivamente sob a perspectiva contratual. Todavia, conforme exposto, as convenções coletivas de trabalho superam o mero ajuste contratual, constituindo também normas jurídicas gerais e abstratas negociadas com ampla liberdade pelos entes sindicais. Não é possível ignorar esse outro aspecto importante também. Isto posto, impõe-se a seguinte pergunta: É lícito ao Poder Judiciário realizar controle prévio da atividade sindical, impondo limites preventivos ao conteúdo das convenções e acordos coletivos a serem estabelecidos e votados na assembleia geral da categoria? Isso a jurisprudência consolidada não diz. E a primeira dúvida lançada leva a um desdobramento e obrigatória indagação: Essa intervenção prévia no âmbito da atividade sindical, inibindo o conteúdo das normas coletivas, não constitui atentado à liberdade e autonomia sindicais, cassando preventivamente o direito/dever constitucional das entidades e dos trabalhadores, sócios ou não (CF, artigo 5º, XX, “Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado;”), de se reunir pacificamente em assembleia geral (CF, arts. 5º, XVI), a fim de criar normas coletivas que serão reconhecidas (CF, artigo 7º, XXVI) e “impor contribuições a todos aqueles que participam das categorias econômicas ou das profissões liberais representadas” (CF, artigo 7º, IV; CLT, artigo 513, e)” (…).
É interessante notar que essa decisão enfrentou de forma ímpar e lapidar a intervenção indevida do Estado no âmbito da atividade sindical, a qual inibe o conteúdo das normas coletivas e constitui atentado à liberdade e autonomia sindicais, porque cassa o direito/dever constitucional das entidades e dos trabalhadores, sócios ou não (CF, artigo 5º, XX), de se reunirem pacificamente em assembleia geral (CF, arts. 5º, XVI) a fim de criarem normas coletivas, que são reconhecidas constitucionalmente (CF, artigo 7º, XXVI).
Portanto, ao debate e à ação.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee