Mudanças no seguro defeso são duramente criticadas no Senado
A retirada de direitos dos trabalhadores, especialmente dos pescadores artesanais que, com a Medida Provisória nº 665/14, passaram a ter regras diferenciadas para o recebimento do seguro defeso, foi tema da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal nesta segunda-feira (27). As novas regras, um tema árido como os contidos na MP 664/14, já que ambos retiram direitos trabalhadores, foram duramente criticadas durante a reunião. A CTB acompanhou os debates e entende que as mudanças são extremamente prejudiciais aos pescadores.
O seguro defeso é um benefício pago ao pescador artesanal que fica proibido pelo Estado de exercer a atividade pesqueira durante o período de defeso de alguma espécie. O benefício tem o valor de um salário-mínimo mensal e é pago enquanto durar o defeso, até o limite de 5 meses. A duração do defeso é definida pelo Ibama, de acordo com a época de reprodução de cada espécie. A partir deste mês de abril, com a MP 665/14, a habilitação e concessão do seguro defeso cabem ao INSS e a gestão cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego.
Mudanças
Em decorrência da MP 665/14, que está na Comissão Mista, foram publicados os Decretos nº 8.424 e nº 8.425, com novas medidas para solicitação e recebimento do seguro. Os períodos de defeso iniciados até 31 de março de 2015 serão abrangidos pela legislação anterior. Os demais estão sujeito às novas regras. Com o Decreto nº 8.424, o seguro defeso passa a ser qualificado como seguro-desemprego, pago ao pescador profissional artesanal, destinado ao interessado que exerça a função ininterruptamente, de modo individual ou em regime de economia familiar.
Essa mudança foi uma das principais críticas da subprocuradora do Ministério Público Federal Débora Duprat quanto ao seguro defeso. “Surgiu esse monstro, difícil de entender e de explicar. Primeiro ela peca na sua própria ideologia, considerando que uma medida de natureza indenizatória seja visto como benefício previdenciário”, enfatizou. Para a subprocuradora, o que os pescadores fazem é uma atividade lícita, autorizada pelo próprio Estado, que diz qual período eles não podem exercer. “O Estado indeniza por esse período. Esse monstro criado começa a impedir uma atividade legítima e passa a tratar como pagamento de benefício, sendo deslocado para o INSS. Não se trata de desemprego, para ser tratado como seguro-desemprego. Há um amontoado de equívocos. Criou-se uma desfuncionalidade para a própria administração pública”, avaliou.
Com a publicação dos decretos, o benefício será devido ao pescador inscrito no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), com licença de pesca concedida pelo Ministério da Pesca e Aquicultura e que tenha realizado o pagamento da contribuição previdenciária nos últimos doze meses imediatamente anteriores ao requerimento do benefício, ou desde o último período de defeso.
Estão excluídos de receber o benefício, os trabalhadores de apoio à pesca artesanal e os componentes do grupo familiar do pescador profissional artesanal. Além disso, também não será possível acumular esse benefício com outro vínculo de emprego, ou relação de trabalho; outra fonte de renda diversa da decorrente da pesca; ou com mais de um benefício social no mesmo ano.
O pesquisador Elton Fernandes também questionou a mudança. “Incluíram os pescadores artesanais com uma visão equivocada do que é o seguro defeso”, disse. Para Fernandes, a MP trata o seguro defeso como seguro-desemprego, fazendo os ajustes nos mesmos moldes. “Esse é um equívoco. Qual a natureza do seguro defeso? Você não o recebe porque perdeu o emprego”, avaliou. Para o pesquisador, a natureza do seguro defeso é de uma compensação que a sociedade deve fazer ao pescador pela preservação ambiental naquele período. “Quem decreta e quem proíbe é o Estado, em função da preservação da natureza que beneficia toda a sociedade. Quando você proíbe alguém de exercer sua atividade, a sociedade tem que resguardar aqueles que estão sendo prejudicados. É um custo que deve ser imputado a toda a sociedade”, salientou. De acordo com Fernandes, se não for corrigida essa rota em relação ao seguro defeso “podemos remendar, mas não vamos encontrar uma solução para o que ele deve ser e sobre a fonte de financiamento”.
Debates
A edição de uma medida provisória de forma açodada e o curto tempo para o debate do tema foram outros pontos duramente criticados na audiência pública. A coordenadora do Conselho Nacional de Aquicultura do Ministério da Pesca, Roseli Zerbinato, analisou a forma como essas mudanças estão ocorrendo. “O governo quando faz uma lei tem que pensar em como ela afeta a vida das pessoas. O ideal é que, antes de ser aprovada, seja esmiuçada. Isso não ocorreu com essa MP. Estamos reunidos para tentar minimizar os impactos negativos que ela pode causar na vida de todos”, ressaltou. A subprocuradora Débora Duprat relatou que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos direitos dos povos tribais e indígenas do mundo. “A Convenção determina que antes de qualquer medida legislativa ou administrativa, os povos e comunidades afetadas sejam ouvidos. A Convenção reconheceu que havia uma mudança na sociedade e era preciso dar voz a segmentos que nunca foram ouvidos”, lembrou. No Brasil, há um decreto (6.040/2007) que expressamente inclui os pescadores artesanais como povos de comunidades tradicionais. “O governo reconhece, mas, mais uma vez, não os ouviu”, lamentou.
O senador João Capiberibe (PSB-AP), que solicitou a audiência, disse que as irregularidades pontuais no pagamento do seguro-defeso não justificam a limitação de acesso ao beneficio. “Nada justifica que se tire daqueles que mais necessitam”, frisou. A mesma opinião foi dividida pelo representante do Conselho Pastoral dos Pescadores, Raimundo Marcos Sousa Brandão da Silva, contrário à medida, já que as alterações retiram direitos dos trabalhadores que, historicamente, foram conquistados com muita luta, com muita resistência, com muita força. “É inadmissível que, de forma tão abrupta, sem nenhum tipo de discussão ou debate com a sociedade, esses direitos sejam suprimidos”, disse.
Alterações
A medida provisória impõe uma carência de três anos para o acesso ao direito do pescador ao seguro-desemprego, durante o período de defeso. Até pouco tempo, esse período era de um ano. “Isso já era bastante questionado pelos pescadores que, durante o primeiro ano de atividade, estavam impedidos de exercer um direito efetivo de ter sua subsistência garantida naquele momento, em que o Estado determina que é proibida a pesca em determinada região. Ora, se a pesca é proibida em determinada região, como esses trabalhadores e trabalhadoras que sobrevivem da pesca vão sustentar a si e a suas famílias?”, questionou Brandão. Agora, segundo o representante, a situação ficou ainda mais grave ao impor um período de carência de três anos. Segundo ele, isso trará duas implicações muito graves.A primeira delas é colocar esses trabalhadores na marginalidade, já que estarão suscetíveis a desobedecer a uma legislação que leva ao esgotamento das suas condições de vida. “Isso vai trazer uma situação de criminalização e vai trazer uma situação de sofrimento social, que não é admissível, não é razoável”, indignou-se.
Uma segunda alteração é a limitação de cinco parcelas para o acesso ao seguro-desemprego. “Se existem pescarias que são declaradas proibidas para o exercício da pesca durante seis meses, como é possível limitar o seguro-desemprego a cinco meses? Significa dizer que, durante um mês, esses trabalhadores vão estar completamente descobertos, desprotegidos de seus direitos”, avaliou.
A terceira modificação é a incompatibilidade entre o seguro-desemprego e o acesso às políticas de renda mínima, aos programas sociais do Governo a que essa população tem direito. “Esses programas são frutos de lutas e conquistas dos trabalhadores. Não existe argumento razoável que explique o fato de o pescador receber o seguro-desemprego durante um, dois ou três meses e ele ser alvo da suspensão do acesso a esses programas sociais”, frisou.
Um quarto elemento abordado por Brandão é a transferência do gerenciamento do seguro-desemprego para o INSS. “O INSS já está saturado com a quantidade de beneficiários que utilizam aquela estrutura. Repassar repentinamente para o INSS o atendimento a milhares de pescadores sem agregar à instituição condições estruturais e humanas que lhes garantam oferecer um serviço de qualidade é relegar esses trabalhadores a uma situação de sofrimento no acesso ao benefício”, avaliou.
Outra situação é a imposição do critério de atividade exclusiva e ininterrupta para o acesso ao seguro-desemprego. “A atividade pesqueira tradicional tem peculiaridades. Esses pescadores, ao mesmo tempo, exercem a pequena agricultura familiar ou exercem atividade em artesanato ou, eventualmente, exercem alguma outra atividade muito pontual para poderem sustentar suas famílias”, explicou.
Brandão, que foi bastante elucidativo quanto às mudanças em curso, falou ainda do impedimento dado aos pescadores que não estão efetivamente engajados na captura do pescado, que são, na sua grande maioria, mulheres. “Talvez 50% dos pescadores, das pessoas que exercem a atividade, sejam mulheres, mas elas estão em atividades no entorno da captura, como a limpeza, a descamação, o congelamento, a comercialização, a filetagem”, ressaltou. De acordo com Brandão, todos esses trabalhadores estarão impedidos, proibidos de terem acesso ao benefício. “Isso vai trazer uma situação de caos para as comunidades, uma situação de extremo sofrimento e uma situação de exclusão das mulheres pescadoras”, concluiu.
De Brasília,