Reforma política e financiamento eleitoral: alternativas em discussão e sua adequação*
Luiz Alberto dos Santos**
Durante a apreciação da Proposta de Emenda à Constituição nº 182, de 2007, no dia 27 de maio de 2015, a Câmara dos Deputados aprovou, em primeiro turno, alteração ao art. 17 da Constituição para permitir, expressamente, a doação de recursos financeiros ou bens estimáveis em dinheiro de pessoas jurídicas para partidos políticos, e que doações para candidatos sejam feitas apenas por pessoas físicas. A lei definirá limites máximos de arrecadação e gastos de recursos para cada cargo eletivo, mas não está prevista a limitação do valor que poderia ser doado por empresa ou pessoa física, em cada ano ou ciclo eleitoral.
A deliberação resultou de emenda aglutinativa, apresentada pelo deputado Celso Russomano, e reverteu, parcialmente, decisão tomada na noite anterior, quando a Câmara rejeitou outra emenda aglutinativa, de autoria do deputado Sérgio Souza, que pretendia inserir na Constituição a autorização para doações de recursos e bens, nos limites de arrecadação para cada cargo eletivo estabelecidos em lei, a partidos políticos e candidatos. A primeira emenda votada recebeu apenas 264 votos favoráveis, dos 308 necessários; a segunda foi aprovada por 330 votos.
No intervalo entre essas duas votações, foi rejeitada a emenda aglutinativa da deputada Jandira Feghali, que pretendia limitar o financiamento eleitoral a doações de pessoas físicas e recursos públicos, isolada ou combinadamente, conforme decisão dos órgãos partidários, podendo partidos e candidatos arrecadar recursos e efetuar gastos apenas após a fixação em lei de limites para doações de pessoas físicas, em valores absolutos e percentuais. A emenda obteve apenas 164 votos.
Na sequência, foi rejeitada a emenda aglutinativa do deputado Leonardo Picciani, que proibia o recebimento de doações de pessoas físicas e jurídicas, estabelecendo financiamento exclusivamente público, na forma da lei. Nesse último caso, a emenda obteve apenas 56 votos favoráveis – e o próprio autor da emenda, Líder do PMDB, encaminhou voto contrário a ela…
O nível de divergências e alternativas em discussão já demonstra a complexidade e sensibilidade do debate que ora se coloca diante de todos os cidadãos brasileiros a respeito da legitimidade do sistema de financiamento eleitoral vigente, em que pessoas jurídicas, que não têm personalidade de eleitores, são capazes de contribuir para o financiamento de partidos e candidatos.
Segundo dados do International Institute for Democracy and Electoral Assistance, em uma amostra de 170 países, 40 proíbem empresas de fazer doações para partidos políticos. Em 39 países, as empresas são proibidas de fazer doações para candidatos. Entre os países que preveem limitações de um ou outro tipo, ou ambas, estão Bélgica, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, Filipinas, França, Israel, Japão, Coréia do Sul, México, Moçambique, Paraguai, Portugal e Estados Unidos da América [1].
A tese subjacente a essas proibições é a de que somente indivíduos devem ser capazes de expressar preferências eleitorais, e, nessa condição, de apoiar financeiramente candidatos ou partidos políticos.
E mesmo assim, 55 países limitam o valor que pode ser doado a partidos políticos, independentemente dos ciclos eleitorais, 68 limitam os valores das doações a partidos durante os ciclos eleitorais, enquanto 49 limitam os valores que podem ser doados a candidatos. Essas limitações visam, em diferentes medidas, a reduzir a assimetria de influência e participação que resulta do maior poder econômico individual, vale dizer, buscam tornar mais isonômico o exercício da influência política dos indivíduos no processo eleitoral.
Tais preocupações estão diretamente relacionadas à qualidade da democracia e a legislação brasileira tem buscado, da mesma forma, estabelecer algumas limitações ao poder econômico, porém de forma ainda insuficiente. A Lei 9.504, de 1997, prevê no seu art. 23 que pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, mas limitadas a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição. No caso de o candidato usar recursos próprios, cabe ao próprio partido fixar o limite de gastos para aquela campanha.
O art. 24 veda, a partido e candidato, receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de diversas espécies de pessoas jurídicas [2], e, nos casos em que permite doações dessa origem, o seu valor (art. 81) é limitado a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.
Trata-se, sem dúvida, de valores elevados: um cidadão com renda anual de R$ 2 milhões pode doar até R$ 200 mil. Uma empresa com faturamento anual de R$ 20 milhões, pode doar até R$ 400 mil. Uma empresa com faturamento de R$ 100 milhões, pode doar R$ 2 milhões. Em 2014, os dez maiores doadores para candidatos responderam por um total de R$ 39,4 milhões, sendo que o maior doador destinou R$ 12 milhões a todas as campanhas e candidatos apoiados. As doações dos 20 maiores doadores para comitês ou partidos alcançaram R$ 154,2 milhões, e a soma das doações do maior doador foi de R$ 40 milhões. [3]
Se, por um lado, tramitam no Congresso Nacional, há muitos anos, propostas visando estabelecer o financiamento público e exclusivo das campanhas políticas, a fim de impedir qualquer doação ou aporte de recursos privados, sem que se chegue a um acordo sobre isso, é também necessário, por outro, reconhecer que essa tese ainda não obteve o consenso necessário para a sua aprovação. Pelo contrário, a recente rejeição dessa proposta pela Câmara dos Deputados é um indicativo das dificuldades de sua aceitação, num conceito de grandes questionamentos quanto à legitimidade desse financiamento.
Em 2015, a simples elevação do valor destinado pela Lei Orçamentária ao Fundo Partidário gerou grande polêmica. Uma emenda do Relator do PLOA 2015, senador Romero Jucá, ampliou a dotação inicial prevista de R$ 289,6 milhões para R$ 867,6 milhões, beneficiando 32 partidos políticos e representou um crescimento de 133,3% sobre o que foi destinado aos partidos políticos em 2014. O ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa, chegou a apontar a sanção desse acréscimo pela Presidente da República como “erro político imperdoável” e “gesto absolutamente insensato”, por considerar “irracional” o aumento do valor aprovado pelo Congresso. [4]
Por outro lado, o financiamento privado empresarial já conta, no âmbito do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.650, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com maioria de votos pela declaração de inconstitucionalidade do art. 81 da Lei 9.504, de 1997, assim como dos dispositivos da Lei 9.096, de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) que permitem essas doações, havendo grande expectativa quanto à conclusão desse julgamento, interrompido desde 2/04/2014 por pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes.
A decisão da Câmara dos Deputados, ainda em primeiro turno, e que requer a posterior aprovação pelo Senado Federal, representa, assim, uma reação do Poder Legislativo para impedir que o Judiciário estabeleça a “regra do jogo”, embora se saiba que, independentemente da decisão congressual, dificilmente esgotará o debate. Isso porque, como já apontado por membros do próprio STF, se aprovada a norma legal regulamentadora do financiamento privado fixando limites exagerados, ou desvirtuando a “tese” de que pessoas jurídicas não podem apoiar candidatos diretamente, estará igualmente eivada de inconstitucionalidade. Nas palavras do ministro Luiz Barroso, relator da ADI 4.650, “uma regulamentação que não impõe limites mínimos de decência política e de moralidade administrativa será inconstitucional”.
O avanço da democracia no Brasil demanda, sem dúvida, limitações ao abuso de poder econômico e sua influência no processo eleitoral. Esse abuso hoje se manifesta, inclusive, na permissividade do sistema vigente, que confere a pessoas abastadas (físicas ou jurídicas) a possibilidade de apoiarem financeiramente até mesmo candidaturas opostas, em eleições majoritárias, visando, talvez, a assegurar a “boa vontade” de quem quer que seja o eleito.
Os limites legais existentes são fluidos, e facilmente contornados. As regras vigentes estão longe de ser eficazes ou efetivas. As doações empresariais são vistas, em grande medida, como forma disfarçada (ou nem tanto) de corrupção, ou pagamento de “pedágios” pelo acesso a contratos e favores governamentais. Mesmo doações de pessoas físicas, sem uma limitação razoável e objetiva, produziriam distorções.
Não há, assim, em relação ao financiamento privado, soluções únicas, nem totalmente capazes de impedir o desequilíbrio no sistema representativo. O financiamento público também não tem, ainda, a legitimidade necessária para sua aceitação, notadamente em um país como o Brasil, que passa por crise fiscal e que precisa eleger, a cada minuto, novas prioridades.
Nesse contexto, a reforma política, necessária e inadiável, deveria conduzir a uma solução transparente, fruto de amplo debate, e não de decisões precipitadas. Se a reforma possível reclama financiamento privado, que ele seja, pelo menos, limitado por pessoa física e jurídica, em valores razoáveis, e que não haja, na distribuição pelos partidos aos candidatos, hipótese de favorecimento ou discricionariedade que desvirtue a impessoalidade da doação. Lamentavelmente, porém, não parece ser esse o rumo que está sendo adotado, neste momento, pelo Congresso Nacional.
(*) Título original do artigo
(**) Consultor Legislativo do Senado Federal. Advogado. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais. Professor da EBAPE/FGV. Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil – PR (2003-2014)