Faces da desprofissionalização: A educação como mercadoria

A desprofissionalização do professor, tema da campanha internacional “Apagar o professor é apagar o futuro” lançada há pouco mais de um mês pela Contee, tem diversas faces perversas. Desde que Michel Temer assumiu ilegitimamente a Presidência da República, no ano passado, foram tiradas as máscaras de algumas delas, desnudadas nas feições dos diversos golpes desferidos contra as políticas educacionais, como a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos públicos no Brasil, inclusive em educação; a entrega do pré-sal aos interesses estrangeiros; a reforma do ensino médio; as distorções na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as reformas trabalhista, da Previdência e o escancaramento da terceirização; o desmonte do Fórum Nacional de Educação (FNE) como conquista social e a inviabilização de uma Conferência Nacional de Educação (Conae/2018) com real participação da sociedade civil. Antes mesmo do governo golpista de Temer, no entanto, outras faces da desprofissionalização já mostravam suas caras, como as tentativas de amordaçar o magistério do movimento Escola Sem Partido e as várias formas de privatização do ensino que têm avançado cada vez mais sobre a educação pública no Brasil e no mundo, as quais levaram a Internacional da Educação para a América Latina (Ieal) a também lançar em outubro, na Costa Rica, a campanha “Educar, não lucrar”.

Ao longo desta semana, o Portal da Contee vai discutir algumas dessas facetas que campanha “Apagar o professor é apagar o futuro” visa a expor e, consequentemente, combater. A começar pelos processos de mercantilização do ensino denunciados pela Confederação desde sua fundação, em 1990, e que há pelo menos uma década são o alvo de uma outra bem-sucedida campanha da Contee: “Educação não é mercadoria”. Matéria do jornal Valor Econômico do dia 27 de outubro noticiou, por exemplo, que a Estácio, segundo maior grupo de educação superior do país, resolveu entrar de vez nos segmentos de ensino médio e profissionalizante e que, em meados do mês passado, abriu o processo de matrículas para o próximo ano letivo. “A entrada da companhia carioca no ensino médio ocorre num momento em que a educação básica tornou-se a vedete do setor. Além disso, vem na esteira dos projetos de sua principal concorrente. A Kroton está em processo de negociações para aquisição de 16 colégios, sendo que com três deles já há diligências em andamento, segundo fontes”, diz o jornal.

Dois dias depois, o blog Avaliação Educacional, mantido pelo professor e pesquisador em Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Luiz Carlos de Freitas, comentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 366/17, apresentada no início de outubro pelo deputado André Sanchez (PT/SP), que estabelece a instituição do ensino superior pago proporcional ao nível socioeconômico do estudante — o que por si só já é um problema, porque pressupõe cobrança numa instituição pública — e inclui com direito à gratuidade do ensino superior o estudante que cursou todo o ensino médio em escola pública ou foi “bolsista integral em escola particular”, aproveita, segundo Freitas, para oficializar o voucher (bolsas com dinheiro público) para as escolas privadas de nível médio.

“A Estácio, que é o segundo maior grupo de educação superior do país, começa a operar no ensino médio do Rio de Janeiro — inclusive no ensino profissionalizante. Estes grupos vão pressionar por bolsas do governo para alunos do ensino médio, o que nos levará à implantação dos ‘vouchers’, ou seja, programas de bolsas com dinheiro público para que o pai ‘escolha’ a escola do filho: pública ou privada”, comentou Freitas. “No entanto, a escola pública é aquela que é gerida pelo Estado, com formas de gestão sob controle do público — inclusive com obrigatoriedade de gestão democrática. Não é apenas o dinheiro que define seu caráter, é a forma de operar sob controle público.” A adoção de vouchers, seguindo o modelo chileno, é privatista e equivale a transformar o ensino em mercadoria, dando a família um tíquete para consumi-la, tal qual um tíquete de leite ou gás, sem qualquer garantia de qualidade e de zelo pelo papel social da educação.

E em que patamar se estabelece a desprofissionalização nessa relação mercantil? Não é de hoje que a Contee tem apontado o desprezo com que o magistério é tratado pelas empresas cujo único interesse é lucrar. Exemplo disso é a prática, verificada diversas vezes após fusões, incorporações e aquisições dessas empresas de capital aberto no ensino superior, de mudanças em projetos pedagógicos construídos pelo corpo docente de cursos que já passaram por avaliação, demissão de mestres e doutores e rebaixamento da formação dos estudantes e profissionais. Com as diferentes formas de privatização, como os vouchers, atingindo cada vez mais a educação básica, parece bastante provável que ganhará força a tese cruel dos que defendem a demissão de professores de escolas que não atingirem notas satisfatórias no Ideb, por exemplo, ou outras maneiras de transformar o professor em mero gerador de índices que se transfigurem em lucros, descaracterizando o caráter de uma profissão que ajuda a formar, sobretudo, pensamento crítico e cidadania.

Por Táscia Souza

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